por Marcos Eduardo Neves
Certa tarde, no jardim de sua casa, perguntei a ele o que achava desse negócio de 3 de março ser comemorado feito Natal pelos rubro-negros. Ele jurou que não gostava, achava fanatismo. Compreendo. Mas, confesso, todo dia 2 de março me deixa ansioso demais. É véspera de mais um aniversário de Zico. Preciso sempre escrever.
Zico completa neste 3 de março 67 anos de uma das mais belas histórias de predestinação, talento, trabalho, família e idolatria. E ídolo é algo que Zico sabe ser com I maiúsculo. Não só fora como dentro de campo.
Quem não se recorda do menino Leonardo, lateral-esquerdo então com 17 anos, chorando horrores num mágico Flamengo x Santa Cruz disputado em 1987. Eu estava lá, nas arquibancadas. Foram os únicos três gols de Zico que presenciei no Maracanã. Naquela tarde, vivi uma emoção indescritível.
Estava 2 a 1 para o Flamengo, dois de Zico, quando Alcindo sofreu falta. O juiz olhava o relógio: 45 do segundo tempo. Eu e mais umas 40 pessoas amontoados no túnel, deixávamos o estádio, quando decidimos ver dali mesmo a cobrança. Falta? Da entrada da área? Adivinha quem vai bater… Zico cobrou, a bola fez um efeito surreal, o goleiro Birigui ficou pasmo como nós, observando a redonda tocar a rede na costura lateral. Eis que aconteceu o milagre. Aqueles mais ou menos 40 torcedores, eu inclusive, saímos da boca do túnel e voltamos a nos sentar no cimento da arquibancada (não, não tinha cadeiras naquele tempo). Se Zico estava em campo e o jogo não havia sido encerrado, qualquer coisa ainda poderia acontecer.
Sou alucinado por futebol e talvez o primeiro grande nome que aprendi desse meio foi Zico. Minha primeira lembrança dele que trago na memória é do dia em que pulei entusiasmado por enfim ter conseguido a figurinha dele para o álbum da Copa de 1982. Nunca masquei tanto chiclete Ping-Pong quanto naquele tempo. Eu tinha quase 7 anos, não completei o álbum, mas, azar do álbum, eu queria era a figurinha do Zico!
Aos 10 anos, lembro do golaço que ele fez no Paraguai pelas Eliminatórias. No dia seguinte, todos os meninos da sala tentamos na escola levantar a bola na velocidade com a parte externa do pé e chutar de primeira. Ninguém conseguiu.
Aos 11, entrei de sócio no Flamengo e passei a ver Zico das arquibancadas treinando na Gávea. No ano seguinte virei gandula. Ficava atrás do gol até de noite – porque Zico era o único que permanecia ao fim das atividades, para cobrar faltas. Eu só não devolvia as bolas para os goleiros Zé Carlos, Cantareli, Hugo ou Milagres quando elas morriam no fundo das redes. Quase não tive trabalho.
Nessa época, comecei a ir aos poucos ao Maracanã. Na minha família, meu pai era Botafogo e meu avô, tricolor – assim sendo, eu ia com um porteiro do prédio ao lado, não era sempre. Fui ao Caio Martins vê-lo marcar, de pênalti, exatamente um ano após a maior dor que passei com a seleção brasileira: vê-lo perder a cobrança diante de Bats, da França, pela TV. Nunca mais chorei pela seleção; gastei todas as lágrimas naquela fatídica tarde.
Em 1989 cheguei a meu ápice como gandula. Vi de dentro de campo Zico dar uma aula de civilidade ao goleiro Maurílio, do Nova Cidade, que gritava para seus zagueiros pararem na porrada o ataque do Flamengo, quando o jogo estava 6 a 0. Zico, dedo em riste, saiu da sua posição caminhando até o arqueiro para dizer algo como “Estamos aqui jogando bola e vocês, aprendendo. Ninguém vai bater em ninguém, não”. Acabou 8 a 1. E ele ainda deu um lançamento de bicicleta cinematográfico para Zinho na ponta esquerda. Que aula!
Neste mesmo ano, eu ficava horas na garagem da Gávea aguardando Zico sair para lhe pedir autógrafos. Praticamente, todos os dias. E nunca um só. Eram dois, virou três, e nas últimas vezes eu chegava a pedir oito autógrafos (julgava que 10 era esculacho). Certa vez, ele saiu do sério e me disse: “Você deve estar vendendo, né?” Acertou em cheio. Minha merenda na escola era autógrafo dele. Se fosse só “Zico”, eu ganhava do comprador uma Coca-Cola. “Com abraço, Zico” era coca e hambúrguer. E se fosse dedicatória, com nome e tudo, ganhava o melhor dos lanches: hambúrguer, batata frita e refrigerante.
Sofri como 90 mil pessoas in loco e milhões Brasil afora na sua despedida do futebol. Guardo até hoje o canhoto do bilhete – comprei dois: um apenas para colar num caderninho de preciosidades. Depois daquele fevereiro de 1990 demorei a voltar a ver Zico. Até que ele deixou de ser o herói das tardes de domingo, o meu primeiro ídolo no esporte, para começar a se tornar meu amigo.
Em 2003 fui ao lançamento de seu livro sobre os 50 anos de vida, aproveitando que era aluno de Jornalismo Esportivo de Roberto Assaf, um dos coautores da obra. Me apresentei, como todos da fila. Garanto que ele nem se lembra. Dois anos depois, pela primeira vez liguei para ele, quando editava revistas para o jornal Lance!. Nunca suei tanto antes de discar números e apertar o derradeiro enter no celular.
Em 2011 comecei a escrever um livro sobre os fundadores da construtora Servenco. Numa ocasião, ele foi entregar o cheque da renda do seu ‘Jogo das Estrelas’ na instituição filantrópica dessa empresa, o Instituto Rogério Steimberg. Só eu sei a comoção que Zico causou quando apareceu no escritório naquele dia.
Em 2012 lancei a biografia do Heleno. Um de seus filhos tinha namorado uma das netas do craque alvinegro. Zico seguramente soube da minha existência por volta dessa época. No ano seguinte, fui chamado para editar a Revista Zico 10, um projeto da marca que ele espalha em todo país, disseminando cidadania e esporte a meninos do Brasil. Pronto, entrei para a equipe Zico. Conheci o CFZ, fiz amizade com seu compadre Fagner, fui aos poucos chegando mais perto. Logo, fui convidado a conhecer sua casa, me aproximei de seus filhos, cheguei a jogar como goleiro reserva cinco ou seis partidas pelo interior do país junto com Zico – uma delas, transmitida ao vivo por um canal de TV a cabo. Que glória!
Num desses jogos, achei que o mundo tinha virado ao avesso. Saí do banco para o gol e Zico deixou na mesma hora o campo para descansar. Eu tinha levado uma câmera profissional, que Zico pegou e começou a tirar fotos minha agarrando. Veja você: eu sendo fotografado pelo Zico! Esse cara não existe.
Numa dessas viagens tive total dimensão da grandeza de Zico não mais como jogador, mas como pessoa, vendo as situações pelas quais passava, nunca se negando a atender um fã, gravar um depoimento, atender o telefone de um desconhecido para dar um alô a outrem mais desconhecido ainda. Zico era perturbado até em restaurante, entre uma garfada ou outra, mas nunca deixava de dar um carinho àqueles que lhe entregavam carinho. Fiz baterias de entrevistas com Zico, sanando todas as minhas dúvidas de jornalista. Conversei também sem gravador, sanando minhas questões como amigo. Que caráter!
Numa manhã, fui acordado por ele. Tinha dormido tarde e estava prestes a estourar com quem estava discando, quando vi no celular: ZICO. Meu dia começou bem. Em 2014, horas antes do histórico 7 a 1, conversamos pelo telefone. Ele, otimista como eu, acreditava na tarefa ingrata que teríamos pela frente: “Não tem essa, Marcos. Hoje é Brasil e Alemanha, tudo pode acontecer”. Mais tarde, realmente aconteceu.
Minha ex-mulher chegava quase a implorar para eu interromper minha vida sedentária e voltar ao peso ideal. Eu postergava. Mas no momento em que Zico se virou para o time, no interior do Pará, e brincou dizendo que o goleiro que defenderia a equipe naquela noite estava “gordinho”, pronto, entrei até na academia.
Depois de ter jogado a favor, no ano passado tive o privilégio de enfrentar Zico. Saí frustrado de campo. Não pelos dois gols que sofri dele. Mas por não conseguir fazer uma única defesa.
Nos livros que escrevi, tive a honra de gigantes como Ruy Castro, Paulo Coelho, Arnaldo Jabor, James Taylor, Marina Colasanti, Luiz Mendes, Rivellino, Tostão e Paulo Vinícius Coelho, dentre outros, assinarem prefácio, orelha ou quarta capa. No entanto, apenas um nome repeti em mais de um livro. Zico assinou a quarta capa de um livro meu sobre o Flamengo e a orelha da biografia do Alex. Além da biografia que editamos, da Marilene Dabus. Espero que ainda volte a dar o ar de sua graça mais vezes.
Hoje não sei se Zico me deu mais alegrias dentro ou fora de campo. Sincero, honesto, íntegro, é das pessoas mais humanas que conheci. Não se nega a ajudar o próximo. Numa véspera de Natal, fui ao Qatar entrevistá-lo. Como forma de presentear amigos, imprimi imagens de uns 20 camaradas meus, alguns com os filhos, e levei na bagagem. Na casa onde morava, perguntei se se importava de me deixar fotografá-lo segurando as imagens. Ele tirou foto com todos. E ajudou os meus próximos a terem um Natal ainda melhor.
Ou um Carnaval. A única vez que desfilei foi quando Zico virou enredo da Imperatriz. Nunca esqueço que, ao invadir a pista dos sonhos, na Marquês de Sapucaí, vi Zico sorrindo, feliz, num cantinho, curtindo enquanto não subia no último carro, cantando seu samba, agradecendo a gente. E nós, que passávamos, ficávamos mais felizes ainda. Por desfilar. Por ser Zico na Avenida. Por ver Zico na avenida.
Ao fim do desfile, claro, para ‘sobreviver’, seguranças imediatamente cercaram Zico blindando-o da multidão que o aguardava para fotos. Eu vinha com uma amiga e fiz um sinal, tímido, para ver se pelo menos com ela Zico tirava uma. Ele deixou. Foi um arranca-pau para conseguir, mas ela saiu feliz pela realização de um sonho. O Super-Zico foi incrível mais uma vez.
Voltando ao Qatar, passei cinco dias ao lado de Zico. Ele me levou de carro para conhecer os melhores cartões-postais de Doha. Eu estava quase em transe: Zico dirigindo e eu na carona. Peguei o celular e gravei, sem que ele visse, uns 15 segundos desse passeio, com ele me apresentando prédios futuristas. Não para mostrar a alguém ou tirar onda. Mas para eu me certificar de que não era sonho. Acabei de rever esse vídeo agora. Não foi sonho mesmo. Aconteceu. Tomara que ele nunca saiba que fiz isso sem o consentimento dele. Como se fosse criança. E quem não vira criança diante dele?
Ainda durante essa viagem, teve vezes que Zico ficou treinando o Al-Gharafa e eu rodava pela cidade. Todas as noites Zico ligava para o meu quarto de hotel perguntando se correu tudo bem e me dava boa noite. Inacreditável. Meu ídolo, meu camisa 10, um dos maiores nomes do futebol, do mesmo patamar de Beckenbauer, Cruijff, Zidane, Eusébio, Puskas, me ligando para saber como foi o meu dia. Zico, você não existe.
E é por não existir, e por existir para o todo e sempre, que venho aqui, mais uma vez, demonstrar toda a minha admiração e, por que não, o meu amor por você. Você me fez chorar e me fez sorrir quando jogava. Hoje me faz chorar e sorrir por me dar o privilégio de me colocar dentre os seus amigos.
Por você eu discuto, brigo, faço campanha, só não coloco as mãos no fogo porque sou goleiro e escritor – duplamente preciso delas. No resto, conte sempre comigo, Zicão. Fui, sou e sempre serei grato a ti. E, consequentemente, a Deus, por ter me dado estas oportunidades: primeiro, poder te ver jogar; depois, por ter nos aproximado. Que Ele ilumine seus caminhos neste novo aniversário. Que te proteja eternamente. Escrevi linhas e linhas e tenho a impressão de que não disse nada. Porque é impossível dizer tudo o que sinto. Obrigado, Deus. Feliz aniversário, Zico.
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