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zé roberto padilha

TU CONTINUAS O MESMO

por Zé Roberto Padilha

A partida entre Fluminense e Flamengo pelo estadual juvenil de 1969 era realizada no Maracanã, acreditam? Era bom para todo mundo, menos para o gramado padrão FIFA, porque o atleta ia se acostumando com o burburinho do estádio (no primeiro tempo, só os familiares) e os torcedores que vinham chegando descobriam os novos valores que lhe dariam futuras alegrias. Quando éramos lançados no time de cima não tinha o impacto psicológico que os juvenis de hoje sentem por lá.


O placar era de 1×0 para o Fluminense quando, aos 23 minutos do segundo tempo, tentando salvar uma situação de perigo dentro da área, nosso zagueiro central Abel Carlos da Silva Braga, o Abelão da Vila da Penha, optou pela forma mais bonita, dando um chapéu no meia-direita que vinha em velocidade contrária. Fez isso em vez da jogada mais condizente com o futebol que praticava, segundo o qual um bico para frente cairia bem.

O Maracanã, templo sagrado do futebol, sempre atordoou seus atores ao fechar sobre cada um deles aquele toldo de cimento armado, no qual o eco do torcedor soa como uma bomba relógio – nas grandes jogadas e pixotadas também. Ao realizar o chapéu, Abelão calculou mal a batida na bola e o atacante rubro-negro, portador de um topete louro, rápido e franzino de apelido Zico, conseguiu evitar o drible, tocando de cabeça, invadindo a área e empatando a partida.


Todo o elenco tricolor era traumatizado pelo enorme pito das segundas. Nosso treinador, João Baptista Pinheiro, reunia todo mundo no centro do campo, sentava sobre uma bola Drible, e mesmo quando ganhávamos de goleada sobrava uma dura para alguém. Naquela segunda Abelão era pule de 10. E seu Pinheiro jogou pesado como sempre, contando a história daquele “meninão” empolgado, que veio do subúrbio e, no lugar de seguir suas limitações, ficava tentando fazer gracinhas dentro da área para as meninas da zona sul. Com seu lençol furado, havia comprometido todo o elenco. Rigoroso, exigente, ajudou a formar junto a Roberto Alvarenga, José de Almeida, Dr. José Rizzo Pinto uma geração de homens sérios e desportistas corretos, entre eles Rubens Galaxe, Edinho, Pintinho, Cléber, Gilson Gênio, Mário, Zezé, Paulinho, Edvaldo, Tadeu, Silvinho e tantos mais.

Bem, o tempo passou, nós crescemos, trocamos de clubes e o futebol do Abel evoluiu mais do que o de todo nós, tanto que ele chegou a seleção brasileira jogando exatamente como o Lúcio: aplicado, fazendo o simples como Pinheiro queria e com enorme eficiência. Mas quis o destino que no limiar das nossas carreiras, 14 anos depois, quatro personagens daquele episódio se reencontrassem uma nova equipe, o Goytacaz FC, então disputando a primeira divisão carioca. Pinheiro era o treinador, Abel era o zagueiro central depois de um longo período na França, Rubens Galaxe também após rodar bastante foi contratado e eu vinha do Americano, tentando uma sobrevida com meu joelho tri operado. Nada de ficção, tenho fotos ilustrativas acompanhando o texto.


Tínhamos uma boa equipe, com o Petróleo de centroavante fazendo a diferença ao lado do seu xará que trazia riqueza para aquele região na Garoupa. Totonho na lateral direita e um impressionante Índio na cabeça de área. Eu e o Abelão estávamos casados de novo, e saíamos sempre juntos para jantar. Por conta da sua temporada na França, o amigo nos apresentou o vinho no lugar da cerveja, um saudável hábito que cultivo até hoje. Então veio o clássico contra o Bangu. Casa cheia e nas arquibancadas a presença das nossas novas mulheres. De repente, o Abelão toca para o Totonho e dá um pique para receber de volta às costas do lateral esquerdo do Bangu e no lugar de cruzar para o Petróleo tentou mais um drible. E perdeu a bola. Veio o contra ataque e só não tomamos porque o Rubens entrou no túnel do tempo e realizou a cobertura.

Não era, de fato, uma jogada ensaiada, foi improvisada, mas aquele filme do Maracanã me veio logo à mente e na descida para o intervalo comentei com o Rubens:

– Você está pensando o mesmo que eu?


Abel Braga com a camisa do Flu em 1971

Rubens discordou na hora, deu uma risada e retrucou:

– Agora tudo é diferente, éramos garotos, somos todos casados e seu Pinheiro cresceu com a gente!

Chegamos ao vestiário, recebemos nossas laranjas, águas e quando a preleção começou, seu Pinheiro, implacável, virou-se para o Abel e disparou:

– Tu continua o mesmo!

Poucos ali entenderam o sentido da dura. Reza a lenda que a pau cantou, houve empurra-empurra, não sou mais aquele moleque que ouvia suas merdas calado e….. quantas saudades dos meus amigos. Sem o Pinheiro e suas cobranças, muito antes da era Bernardinho, não seríamos os cidadãos que somos. E sem o vinho, o piano do Abel, não teria aquela taça na mesa na hora do almoço, e sem a cobertura e aplicação tática do Rubens teríamos perdidos para o Bangu. E ganhamos de 1×0.

PARTIDA PERFEITA

por Zé Roberto Padilha


O Estádio Rei Pelé, em Maceió, é um daqueles templos sagrados do futebol brasileiro que foram construídos durante o milagre econômico, na década de 70. Quando você está lá dentro jogando, a laje fecha sobre você e te engole, como no Mineirão, canalizando o eco da torcida para perto de onde você vai bater o corner ou o lateral. Como no Serra Dourada, no Olímpico e no Maracanã.

De lá, bem longe, entre a Bahia e o Pernambuco, numa quarta-feira à noite durante o Campeonato Brasileiro de 1978, em uma partida entre o meu Santa Cruz e o CRB, guardo uma das mais gratas lembranças e lições de toda a minha vida como atleta profissional. Em 17 anos de carreira foi por ali que exibi talvez a única atuação perfeita com a bola nos pés. Qual desportista, ator, médico ou engenheiro não se lembra do dia em que acertou tudo durante a prática do seu ofício? Naquela noite iluminada, em que Júpiter devia estar alinhado com Netuno, o Biorritmo, badalado na ocasião, estava favorável e as cartas e os búzios conspiravam a meu favor. Dos 70 passes em média que realizo por partida dera-me ao luxo de perder, no máximo, uns quatro. Jogadas de linha de fundo? Em quatro das cinco tentativas deixei o lateral para trás e ao tentar os cruzamentos sobre a grande área adversária acabei acertando quatro passes, dois na cabeça do Nunes, um para o voleio certeiro do Betinho e o ultimo para um peixinho de Luis Fumanchú que decretou a nossa vitória por 4×1.
 


Durante esta abençoada partida, eu não corria. Voava. Roubava as bolas do meio campo do CRB com quem tirava pirulitos de bebês e iniciava os contra ataques com uma rapidez e eficiência impressionantes. E enquanto jogava, pensava: mas por que justo aqui, longe da grande mídia, apenas diante das ondas médias da Rádio Clube de Pernambuco e da Gazeta de Alagoas, que transmitiram a partida, e sem qualquer canal de televisão, teria que ser o local do meu melhor momento? Por que não joguei tudo isso no Maracanã, dois anos antes, quando defendi o Flamengo e disputei a concorrida final da Taça Guanabara contra o Vasco frente a 174 mil pessoas, o quarto maior público da história do Maracanã? Por que tal inspiração não aconteceu há três anos, quando disputei as semifinais do Campeonato Brasileiro pelo Fluminense, contra o Internacional, e fui incapaz de impedir que Falcão, Caçapava, Paulo Cesar Carpeggiani, Flávio e Lula nos eliminassem da competição?

Se tivesse tal inspiração naquelas ocasiões, jogando na Cidade Maravilhosa e defendendo camisas mais poderosas, certamente seria convocado para a Seleção Brasileira. Mas aprendi a não discutir com o destino. É ele que nos conduz, e se ele quis que fosse ali o meu dia de Rivelino…então que tal um chute de fora da área? Confiante, quando clareou na intermediária não virei o jogo para os laterais, como normalmente fazia. Resolvi arriscar e juro que ela passou raspando a trave a torcida coral gritou úúúúúúú…….Dribles, então, que eu pouco tentava por jogar a base de dois toques, acabei dando uns quatro de tão abusado que estava. É impressionante o que pode fazer a mente, eu jogava e pensava nisto, uma vez desobstruída das limitações cotidianas que me condicionavam a executar um bom, eficiente e previsível futebol.

Terminado o jogo parti para o vestiário como Cesar Cielo se dirigiu ao pódio olímpico na China: pisando nas nuvens. Afinal, eu era um dedicado atleta profissional, disputava a pole na corridas das Paineiras e Vista Chinesa, me entregava nas partidas à exaustão e merecia, nem que fosse por uma noite, num palco pouco iluminado ou reconhecido, jogar como sempre sonhei. Exibir o futebol que sempre busquei. Passei pelo meu treinador, Evaristo Macedo, que disse o de sempre após nossas vitórias: “Valeu, garoto!”. Mas como valeu se eu nunca havia jogado daquele jeito com nenhum dos 16 treinadores anteriores? E fui encontrando pelo caminho repórter alagoano, narrador baiano, torcedor invasor local protestando contra a arbitragem, passando por adversários e ninguém deu a mínima para o que havia realizado.

Será que eles pensavam que eu jogava sempre assim? E se assim fosse, o que estaria fazendo ali, no Santa Cruz, em Recife, turismo em Boa Viagem? Pagando promessas? Ou visitando a Feirinha de Olinda e o Porto de Galinhas? Quando alcancei o vestiário já era 50% alegria e 50% frustração. Eu que havia sacrificado noitadas, evitado as cervejas, jamais tocado em um cigarro para tentar com meu futebol atingir a perfeição, quando a atinjo ninguém foi capaz de reconhecer. Não havia medalha, um Motorádio, nem um abraço mais apertado. Já nos vestiários de banho tomado, notei meus companheiros felizes com a vitória que nos faria avançar na classificação do Brasileirão, e pela goleada alcançada fora de casa. Igualmente, nenhum deles reconheceu minha iluminada partida. Nem um tapinha nas costas recebi.

Decepcionado, me dirigi à balança na qual seu Amauri, um simpático funcionário do clube, tinha a missão de nos pesar antes e depois das partidas. Quando subi e ele conferiu o que tinha perdido, confidenciou baixinho: 

– Que bela atuação esta noite, hein, Zé Roberto? Parabéns, você foi brilhante!

E que alívio senti naquele instante! Não fiquei prosa ou mascarado, apenas feliz. Afinal, de que valeria uma busca pela perfeição, em qualquer profissão, se quando a alcançamos, nem que seja por apenas 90 minutos, o tempo dos holofotes da nossa carreira, ninguém for capaz de reconhecer o seu esforço e obstinação?

De lá para cá, até 1985, quando encerrei minha carreira jogando no Bonsucesso FC, não me recordo de nenhuma atuação parecida, de desequilibrar uma partida, embora continuasse treinando passes, aperfeiçoando chutes, cabeçadas e domínio de bola. Continuei a ser o Zé Roberto de sempre, mas nunca mais um Zico, um Rivelino, um Gerson como naquela partida perfeita. E foi com seu Amauri que aprendi a maior lição de todo este episódio: sempre que assisto de perto, seja como treinador ou espectador, uma atuação acima da média, em qualquer modalidade esportiva, faço questão de esperar o final da partida e dar uma força e incentivo ao autor da proeza. Se for longe, pela TV, escrevo um artigo ou procuro lhe enviar um e-mail. Só eu sei o que foi preciso para conseguir um dia ser perfeito no que fazia, e jamais me esqueci como a indiferença e o descaso são capazes de encobrir o reconhecimento que você tanto lutou por merecer.

MUSEU DA IGUALDADE

por Zé Roberto Padilha


Zé Roberto Padilha

Certa vez deixei de visitar o Louvre porque só havia um dia livre para passeio, compras em Paris, e estava passando Emmanuelle. Corria o ano de 1975, a Máquina Tricolor se apresentava por lá e o ineditismo de sacanagem explícita, com Sylvia Kristel no papel principal, estava há muito proibido pela censura por aqui. E nós, jogadores de futebol, tínhamos absoluta certeza de que o mundo da bola nos aguardava no Galeão não para saber considerações sobre o sorriso da Mona Lisa, mas sobre o montinho artilheiro, que mudaria o rumo do sexo na história do cinema. E toda a delegação se mandou para assistir uma obra tão prima que dispensava legendas em inglês, áudio em francês, para ser compreendida em português.

E quando você para de jogar, dá uma olhada no retrovisor da sua carreira e coloca suas opções na balança, o filme ainda se encontra à disposição nas locadoras por 10 pratas. Mas para caminhar até o Louvre e conferir o quadro imortalizado por Leonardo da Vinci não tem preço. O modismo passa e com ele a oportunidade de ganhar uma passagem aérea Rio-Paris-Rio com tudo pago, diárias no Sheraton e com três peladas de luxo marcadas contra o Porto, Paris-Saint Germain e Ajax num tapete verdinho conhecido como Parc des Princes. 

Jogador de futebol, ô raça! Tenho muito orgulho da profissão que exerci. Mas como a Sylvia, que tem a minha idade e fez seu ultimo filme como uma velha dona de bordel, para não perder o mote que lhe tornou famosa, um dia saímos de cena. E a única fita que passa com cenas da gente é exibida no Show do Intervalo dentro do Baú do Esporte. E em todas elas, à exceção do Maurício, cujo gol tirou o Botafogo de duas décadas sem títulos, do Basílio, que também marcou um histórico gol que terminou com o jejum da Fiel, das figurinhas carimbadas de sempre, nós, coadjuvantes das grandes conquistas ou aparecemos antes das tomadas, roubando uma bola ou realizando a assistência, ou depois, correndo para abraçar o herói da conquista. Mesmo assim não alcançamos a tomada para apontar para nossa família: “Olha o papai ali, filho!” Quem mandou não ser o Nunes? Ou não se tornar arroz de festa tricolor como o Romerito?

Mas um dia uma alma caridosa com a nossa carreira, o jornalista Sergio Pugliese, entre a genialidade de um pincel e a câmera libidinosa de um diretor de cinema, mas com a sensibilidade artística de ambos, resolveu construir um museu da igualdade. Não do futebol que este já existe e tem a genialidade no papel principal. Como Pelé, Zico e Roberto Rivelino. Mas de pelada onde reencontraríamos o Mendonça, o Denílson, o Rei Zulu, e notícias sobre os rumos tomados por Carlos Alberto Pintinho. Um local democrático onde se faria, ainda que tarde do que nunca, justiça a bela carreira de Luis Pereira. E quem mais se lembraria da classe e humildade de Nei Conceição a desfilar pelo meio campo do Botafogo?

Em nome de todos nós que passamos uma vida dentro de um esporte coletivo que vive a exaltar feitos individuais como se um time fosse formado por Usain Bolt ou Cesar Cielo, que enfrentam o tempo, não onze adversários, obrigado Museu da Pelada. Desde sua fundação nós, ex-jogadores de futebol, coadjuvantes de tantas conquistas, ganhamos mais que o direito de posar em um quadro na galeria do futebol brasileiro. Mas um lugar onde a sacanagem com a história do ostracismo da gente deixará de ser exposta. E quem sabe com seu exemplo, ser respeitada para sempre.

TRAUMAS DE UMA PAIXÃO

por Zé Roberto Padilha


Trabalhei nas divisões de base do Fluminense, em Xerém, na fase braba entre 1987 e 1990. Não tinha aqueles campos bonitos, nem hotel ou estrutura alguma, como refeitórios, departamento médico e alojamentos. Durante três anos,  saía de Três Rios no ônibus das 6h30, chegava na entrada da cidade Pagodinho por volta das 8h e ficava aguardando no posto da Polícia Rodoviária o Tubarão, velho ônibus tricolor, chegar com os jogadores. Isto quando ele aparecia, vivia quebrado e, quando passava das 9h30 e sem notícias, pegava o Caxias-Centro para as Laranjeiras porque não havia comunicação pelo celular. Mesmo assim, o time era tão bom que ganhamos o estadual infantil em 87 e o juvenil 89.

Nossos atletas, nascidos em 1972, iriam fazer história no clube se um amigo não cruzasse comigo na rodoviária e perguntasse: “Está indo para Três Rios?”. Para responder, fui verificar o bilhete. Não mais sabia se estava indo ou voltando, estava mesmo na hora de parar. Ou infartar. Ninguém poderia dizer que não tentei vencer no meu time também como treinador de futebol. Detalhe: mesmo após os treinos, não poderia saltar na Rodoviária com o Tubarão, tinha que ir até o clube, fazer relatório, tentar um ticket de almoço que não tinha direito para, aí sim, pegar o longo caminho de volta para casa. Pouco via meus filhos e encontrava minha esposa poucas vezes acordada.

De volta à terrinha, organizei profissionalmente os clubes locais e ainda fui treinador de cada um deles. Com o América FC-TR, alcançamos a primeira divisão em 1991 e com o Entrerriense FC, vencemos a segunda divisão de 1994 e participamos do octogonal decisivo de 95. Mas foi um ano antes, 1993, que o Edinho nos ligou das Laranjeiras. Assumira o profissional e me queria no comando dos Juniores. Trabalhava, na ocasião, na distribuidora Brahma de Três Rios como supervisor de Marketing e estava muito bem, carteira assinada, sem depender de resultados para continuar empregado. Mas quando a bola quica à nossa frente, todos na família sabiam que iria arriscar. Entreguei o cargo pensando mais em mim do que nos meus, e tomei o rumo novamente da rodoviária, Catumbi-Laranjeiras, Pinheiro Machado, Fluminense FC.


Passei três meses trabalhando com o Edinho. E o Fluminense foi às finais com o Vasco e ele me puxara como seu auxiliar técnico. Recebera uma proposta de Portugal, iria trabalhar no Marítimo, e declarou para todos que eu seria seu substituto. Só não combinou com o Presidente Arnaldo Santiago, que permanecia em silêncio. Como quem cala consente, pedi a minha irmã, a Jane, que mora no Rio, seu Santana do ano emprestado, carro imponente da época, para chegar ao estacionamento do clube com ele. Depois do meu curso na ESPM, não daria a brecha desembarcando de ônibus com o Ézio e o Bobô chegando com seus carrões. O Jornal do Brasil fez uma matéria de capa comigo antes da final, onde perdemos para o Vasco, e Edinho se despediu dos jogadores no vestiário. Depois me abraçou e disse:

– Agora é contigo, parceiro!

Sem saber o que fazer, ninguém do clube confirmou ou desmentiu minha posse, voltei para o hotel nas Laranjeiras, que o supervisor Roberto Alvarenga arranjara para mim e ele disse:

– Se apresenta normalmente às 9h e vamos aguardar!


Voltei para o hotel e não dormi, claro. Tinha um Torneio Rio-São Paulo que começava no domingo, contra o Palmeiras, e tratei de armar meu time no papel. Lançaria minha maior descoberta, o meia Nilberto, irmão do Nélio e o Gilberto, entre as feras. Afinal, todos os treinadores anteriores dos juniores foram interinos, nem que fosse por uma derrota: Vanderlei Luxemburgo, Sérgio Cosme, Sebastião Rocha e Rubens Galaxe. Poderia até perder o cargo, mas estrear até contratarem um medalhão seria o normal. E cá entre nós, poucos fizeram tanto por merecer: oito anos como atleta e cinco títulos profissionais conquistados, quatro como treinador da base e dois títulos estaduais e torcedor do clube. Era uma questão de justiça, pensava.

Às 9h30, para disfarçar a ansiedade, entrei pelo portão da Rua Álvaro Chaves, 41, mais nervoso e inseguro do que naquela manhã de 1968, aos dezesseis anos, quando cheguei para fazer testes nos juvenis. Naquela ocasião, dependia apenas do meu futebol, nesta não havia bolas ou chuteiras à disposição para defender o lugar que cobiçava. Fui entrando e uma leva de jornalistas passou por mim vindo do Departamento de Futebol. E timidamente me acenaram no lugar de cercar-me com papel e caneta. Não havia ninguém a me esperar para saber a escalação do time para domingo. Totalmente sem graça, desviei-me da sala de futebol e dirigi-me aos vestiários. Lá, perguntei ao roupeiro Ximbica:

– Quem é o novo treinador?

Ele respondeu:


Nelsinho Rosa

– É o Nelsinho Rosa. Ele é muito amigo do Arnaldo!

Talvez tivesse passado algo parecido quando fiz meu primeiro vestibular pela Cesgranrio e não encontrei meu nome entre os aprovados no Jornal dos Sports. Decepção somada à frustração que vira angústia com doses cavalares de desespero felizmente contidos. Talvez a tristeza tenha sido próxima daquela vez que abri a Revista Placar e constatei, após liderar as últimas seis semanas como melhor ponta esquerda do Campeonato Brasileiro de 1975, que acabara de perder a Bola de Prata na ultima semana para o Ziza, do Guarani, “por não ter completado o mínimo de quatorze partidas exigidas pelo regulamento”. Jogara exatamente treze, a última nas semifinais contra o Internacional, onde perdemos por 3 a 1. Mas naquela manhã doía diferente. Não estavam me negando uma vaga na universidade ou um cobiçado troféu esportivo, estavam tirando uma oportunidade de assumir um cargo que, tinha absoluta certeza. Ninguém tinha mais conhecimento do grupo e tesão tricolores para abraçá-lo naquele momento. Poderia até perdê-lo no domingo seguinte, mas pro resultado, que é o que define nossa permanência no cargo, jamais por desconhecimento de causa.


Zé Roberto fez parte da Máquina Tricolor

Retornei ao hotel, fiz minhas malas e alcancei a Rodoviária Novo Rio guiado pelo meu anjo da guarda. Só ele poderia ter feito aquilo, desviado-me do Departamento de Futebol pois tinha algo pior para acontecer e ele concedeu-me duas horas de viagem pela aprazível Serra das Araras para respirar, admirar a paisagem de Itaipava, lembrar que estava vivo, sadio, e que tinha uma família maravilhosa para me proteger e amparar. Como técnico da equipe de juniores, imaginava, ainda poderia um dia ter uma nova chance no clube.

Ao chegar em casa, o telefone tocou. Paulo Alvarenga, irmão do Roberto e supervisor dos juniores, ligou para anunciar o tiro de misericórdia: o novo treinador exigira uma comissão técnica inteirinha sua e indicou seu filho como novo treinador dos juniores. Não havia perdido apenas a chance de chegar à equipe profissional, estava demitido também do clube. Olhei para uma latinha da Brahma sem mais trabalhar na Brahma e devo ter pensado alguns goles de besteira. Apenas isto, graças a Deus. Porém, tal foi a extensão do trauma que mesmo passados décadas da minha demissão, toda vez que o time que mais demite treinadores no mundo dispensa um Levir Culpi, eu fico com medo do telefone tocar das Laranjeiras. Não pela boa notícia que certamente não me darão, mais que outros sonhos minha eterna paixão verde, vermelha e branca poderá ainda sufocar do outro lado da linha.

ABEL E CAIM

por Zé Roberto Padilha



Abel Braga vocês conhecem. Trata-se de um bom zagueiro central revelado pelo Fluminense e que, ao defender o Vasco e preparar o terreno para se tornar treinador de futebol, teve uma ideia brilhante, digna do melhor jeitinho brasileiro: convidou seu Diretor de Futebol, Eurico Miranda, para ser seu padrinho de casamento. E o Vasco, através do seu eterno mandatário, lhe abriu não uma, mas várias portas até que seus gritos à beira do campo, potencializados pela altura e visibilidade das cordas sonoras e suas bases de sustentação, alcançassem o país. E ele atingiu seus objetivos, já aí com méritos, diga-se de passagem, e sem precisar de doações da Odebrecht: foi campeão estadual, brasileiro e mundial.

Mas no livro Gênesis do futebol, corroído de traições e ciúmes, Abel tinha um irmão mais velho, Caim, que se tornou cartola tricolor. Caso o Fluminense o contratasse, cairia sempre com ele. E assim aconteceu no Brasileirão de 2013, Caim (Rodrigo Caetano) e Abel Braga apresentaram diferentes ofertas ao todo poderoso local (Peter Siemsen). O filho mais velho queria resultados imediatos e o mais novo um trabalho de renovação com as ovelhinhas ordenhadas em Xerém. Mas ao perder para o Grêmio por 2×0, completar cinco derrotas consecutivas e deixar o time na zona do rebaixamento (17º lugar), Caim, com o aval do comandante do Éden, demitiu Abel.


Abel Braga conversa com Rodrigo Caetano nas Laranjeiras

Se na Bíblia “o tempo é o senhor da razão”, nos Jardins das Laranjeiras ele, tempo, não passa de um adolescente em pura emoção. Porque a nova versão de Caim e seu criador eleito, apoiados por Peter, traz de volta, menos de três safras depois, Abel para dirigir suas ovelhas. O que leva, então, um treinador demitido há pouco retornar como solução? Mudou o Abel, que vai buscar resultados imediatos, Caim, que vai permitir que o gramado das Laranjeiras receba os meninos e aposente as velhas raposas, como Magno Alves, ou foi o paraíso que de vez se perdeu?


Acabo de abrir os jornais em busca de respostas. E acabaram de delatar todo o Éden. Do presidente e seus comparsas, sem exceção, todos levaram um trocado para manter erguida uma farsa chamada Brasil. Perante tal inferno dantesco seria muito exigir lisura, ética, correção em um mero clube de futebol. Então que venha esta nova versão da gênesis da bola. Pois se Caim matar de novo Abel na primeira rodada da Taça Guanabara e não voltarmos às ruas para retirar estes canalhas do poder, vai ficar provado que por lá habitava não um povo. Mas uma horda de cidadãos e torcedores tão frouxos e passivos como aqueles que empossaram para julgar seu juízo final.