por Zé Roberto Padilha
Era uma jogada boba disputada em um treinamento de dois toques, terça-feira, no Estádio do Arruda, às vésperas do embarque do Santa Cruz FC para o Maracanã, onde enfrentaríamos dia seguinte o Fluminense pelo Campeonato Brasileiro de 78.
Aos 26 anos, na melhor fase da carreira, pretendido pelo Internacional, fui disputar a jogada com o freio de mão puxado, mas Pedrinho, um lateral esquerdo gladiador, que veio do Bangu, entrou dividindo de verdade. E dividiu, naquele lance, os rumos da minha carreira ao acertar meu joelho esquerdo.
Nunca mais fui o mesmo. Passei por várias cirurgias depois que a primeira foi uma barbárie cometida por um plantonista do SUS, já que o DM do Santa Cruz esgotara seus recursos e ainda colocara em cheque minha contusão.
Em meio a tratamentos, dificuldades para a renovação do contrato, cobrança da imprensa que questionava minha ausência na ponta esquerda, eis que surge para o clube coral uma proposta de excursão à Europa e Arábia Saudita. E vinte e uma passagens foram disputadas como jamais vi em minha vida. Surgiram lobbies de tudo que era lado.
Sem condições clínicas, soube que precisariam de um intérprete. E não fiz por menos: na semana que antecedia o embarque ao chegar ao clube para tratamento passava pela sala do supervisor Edgard Campos e soltava: “How are you, my friend? Good Morning?” O supervisor do clube, assustado com tamanha intimidade com a língua que abriria os caminhos lá fora, exclamava: “Caramba, Zé, você fala inglês?”
Sempre estudei muito inglês e nunca falara. Acho que ele circulava dentro do meu corpo e só não se aproximara ainda da língua. Mas naqueles dias eu precisava gastar o pouco que sabia. Convenci uma banca pouco exigente e embarquei para a melhor excursão da minha vida.
Não foi difícil minha tarefa. Carregar aquele bando de homens pelas ruas de Ryad, Doha e Dubai entre barracas de ouro, pedras semi preciosas, e diante de uma balança dizer apenas a palavrinha mágica: “Abra-te sésamo!” Isto é “How much is it”.
Porém, se o intérprete se virou, pisei na bola ao acumular minhas funções como guia turístico.
Três anos antes havia estado em Paris com o Fluminense. E entre assistir Emannuele, com Silvia Kristel, e comprar um LP do Black Sabbath mais um pôster da reta oposta de Monza com Cevért, Hill, Regazzoni e Bruce McLaren disputando a ponta, fiquei com o LP e o pôster e desprezei a pioneira da sacanagem explícita nas telinhas.
Na volta ao Brasil, poucos me perdoaram não assistir o primeiro dos filmes eróticos de todo o mundo, proibido no país pela censura militar e alvo de cobiça em qualquer conversa na cidade do Rio de Janeiro. Foi imperdoável perdê-lo e não tirar onda nas rodas do La Mole, na New York City Discotheque, mas na outra oportunidade que se apresentava, disse aos meus colegas pernambucanos: “Nada de dormir na escala em Paris, todos ao cinema!”.
Consegui levar oito deles comigo enquanto outros se recolheram para seus quartos. Nas telinhas de 1978, na Montparnase, em estreia mundial a novidade era Superman. Mesmo com as legendas em inglês, o áudio em francês e o personagem principal passando na velocidade da luz, poucos entenderam o filme, mas o intérprete insistia: “Vão tirar onda em Boa Viagem. Nós vamos ver o Super-Homem antes de todo mundo!”. Eles acreditaram em mim, entraram calados, saíram mudos e nunca mais acertaram o fuso horário.
Depois da 28 dias em Paris, Grécia e Emirados Árabes, retornamos ao Brasil. A delegação seguiu para Recife carregados de ouro, histórias, recordações e eu desci em Salvador carregado de incertezas para negociar um contrato com o Bahia. Despedi da delegação no Galeão, mas quando desembarquei na capital baiana notei que entre os outdoors espalhados ao longo da pista um deles convidava para uma pré-estréia mundial: Superman.
Fiquei imaginando meus convidados querendo aqueles poderes para voar lá dos Guararapes e vir me enforcar na Bahia. Está certo que jogador de futebol não pensa, reza a lenda, mas poderia ter feito um esforço naquela ocasião: “Por que a censura iria implicar com o homem de aço se nem Louis Lane ele levou para a cama?”.
Como era de carne e osso e meus meniscos danificados de cartilagem, fui vetado pelo DM do Bahia e desembarquei desempregado nos Guararapes. Carregava um pôster da F1, um LP de Rock Progressivo, uma pulseira de ouro para minha esposa, uma cordão para minha primeira filha e uma certeza: para sobreviver no planeta em que seus heróis da bola são esquecidos quando saem de cena, precisaria mais do que noções em inglês.
Quem sabe superpoderes para entender o idioma da ingratidão e da falta de oportunidades que encontraria dali pra frente.
Aí foi a minha vez de perguntar pra vida: How much is it?