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Vozes da Bola

VOZES DA BOLA: ENTREVISTA PEPE


“Mais santista de todos os santistas”. Era uma segunda-feira de Carnaval quando José Macia veio ao mundo naquele 25 de fevereiro de 1935, na cidade de Santos. Muito antes de tornar-se ídolo da torcida alvinegra praiana, ser considerado o maior ponta-esquerda da história do Santos e vestir o branco emblemático no uniforme do clube da Vila Belmiro em 750 partidas e 403 gols marcados, Pepe se tornou o segundo maior artilheiro da história do clube. Mesmo assim, enfrentou intempéries para ser jogador de futebol.

Convencer o pai, conhecido como ‘Espanhol’, a deixá-lo mostrar seu potencial jogando futebol, foi uma das maiores marcações cerradas que o ponta-esquerda eterno do Peixe sofreu. Suplicou ao pai para deixá-lo fazer o que mais amava na vida: jogar futebol e mostrar seu dom. Driblar o preconceito social à época e a fungada no cangote de uma marcação homem a homem do pai pode ser considerada uma das grandes jogadas da vida dele.

Mas Pepe estava certo e fez dos números, argumentos, que confirmariam a certeza da escolha pelo esporte bretão – viveu as maiores glórias da história dos Santos entre 1954 e 1969. Conquistou 25 títulos, sendo 11 Campeonatos Paulistas, seis Campeonatos Brasileiros, duas Copas Libertadores da América, dois Mundiais Interclubes e quatro Torneios Rio-São Paulo. Isso quer dizer que Pepe tem o feito, a honraria, de ser o jogador com mais títulos por uma única equipe.

Mais números? Na Seleção Brasileira, entrou em campo 40 vezes, anotando 22 gols, e integrou o elenco que ganhou as Copas do Mundo de 1958 e 1962, na Suécia e Chile, respectivamente. Mas antes dos números significativos, realizações profissionais e títulos conquistados, a primeira vez que Pepe, conhecido como o ‘Canhão da Vila’, pela potência do chute, entrou em campo foi vestindo a camisa do São Vicente, time da Baixada Santista, antes de chegar à Vila Belmiro em 1951, estreando na equipe profissional três anos depois. Pepe é o quarto maior artilheiro do futebol brasileiro vestindo apenas uma camisa. Somente Pelé, Roberto Dinamite e Zico balançaram mais as redes adversárias do que ele.

Depois de 20 anos de incômodo jejum de títulos, em 1955, marcou o gol do título do Campeonato Paulista na partida contra o Taubaté, vencido pelo Peixe por 2 a 1, que seria o primeiro de muitos troféus em sua vitoriosa trajetória pelo clube de vários Reis do futebol.

Ademais, na forma mais sublime de quem tem a plena consciência da relevância para o Santos, a perna esquerda de Pepe fala por si só e já se auto-proclamou por diversas vezes como o maior goleador terráqueo do único time que defendeu como atleta profissional: “Eu sou o maior artilheiro da história do Santos, porque o Rei não conta, ele é de outro mundo”, brinca, sorridente, o ex-atacante, referindo-se a Pelé, que balançou as redes 1.091 vezes com a lendária camisa 10 santista.

Entre risadas, lembranças e um show de simpatia de quem tirou tantas histórias empoeiradas pelo tempo, os jornalistas Marcos Vinicius Cabral e Fabio Lacerda, com o toque de categoria de Gisa Macia, também jornalista craque e filha de José Macia, entrevistam mais um craque para o Vozes da Bola.


Por Marcos Vinicius Cabral
Edição: Fabio Lacerda

Pepe, é verdade que seu pai, mais conhecido por Espanhol, era contra sua carreira de jogador de futebol, já que naquela época a profissão era considerada como reduto de malandros?

Naquela época, jogador de futebol não tinha uma fama muito boa e diziam que muitos deles gostavam de noitadas, bebedeiras e de farras. O passar do tempo fez meu pai enxergar o futebol por meio de outro prisma. Passou a considerar a carreira de jogador tão digna quanto qualquer outra profissão. Eu, como não era favorável a nada que fosse contrário a jogar futebol, queria ser atleta de futebol, mas o meu pai, pela própria rigidez que ele costumava educar os filhos, com carinho é claro, mas com as mãos firmes e fortes, relutou muito.

Como foi sua fase amadora jogando no infantil do Mota Lima Futebol Clube, no juvenil do Comercial Futebol Clube e no Clube Recreativo Continental?

Uma fase muito boa. O Comercial era um time nas cores vermelha e branca, e meu irmão, Mário, foi um dos responsáveis pela fundação deste clube. Havia naquela época uma rivalidade enorme entre Comercial e Vila Melo. Os jogadores, craques de bola, só jogavam descalços, e os jogos eram muito disputados. Certa vez, os diretores destes dois clubes, depois de tanto se enfrentarem e criarem essa grande rivalidade, se reuniram, e ao invés de jogarem um contra o outro, fizeram a fusão e surgiu o Clube Recreativo Continental. Era um bom time. A intenção era enfrentar o Corinthians da Vila Cascatinha e o Paulistano da Vila Toloi.

Como foi o dia 4 de maio de 1951 quando o jovem Pepe, então com 16 anos, pisou pela primeira vez no gramado da Vila Belmiro e ter sido aprovado no teste pelo técnico Salu?

Eu fui levado pelo ‘Cobrinha’, goleiro do Comercial e do Continental, e como ele era o camisa 1 do infantil do Santos, falou com o Salu, treinador. Fui fazer o teste e tive a aprovação. Naquela época, para jogar no profissional, era necessário ter pelo menos 20, 21 anos. Não é como agora que há garotos despontando cada vez mais cedo e lançados aos profissionais de suas respectivas equipes. Então, a gente tinha que fazer um vestibular, que era passar pelo infantil, juvenil, amador, até chegar nos profissionais, a faculdade de todo atleta de futebol. Mas foi em maio de 1951, na Vila Belmiro, não havia Centro de Treinamento. Neste dia eu marquei um gol na baliza de entrada do estádio. Lembro que foi um belo chute de fora da área e fiquei muito feliz em ter pisado no palco sagrado dos craques do Santos. Depois indo embora, o Salu me chamou e disse:”Pepinho, eu vou ficar com você. Traz os seus documentos que eu vou te cadastrar e você será jogador do infantil do Santos”. Poxa, foi um dos dias mais felizes da minha vida!

O senhor pode nos contar como foi sua estreia no dia 23 de maio, partida diante do Fluminense, no Pacaembu, pelo Torneio Rio-São Paulo?

Foi a minha primeira experiência no time do Santos. Eu já vinha me destacando na equipe profissional e na mista, pois naquela época, era comum quatro ou cinco atletas profissionais jogarem também na equipe mista. E aí, teve um treinador italiano que passou um curto período no comando da equipe chamado Guiseppe Ottina, que me viu jogar, gostou e me lançou na equipe profissional contra o Fluminense, no Pacaembu, pelo Torneio Rio-São. Eu, lógico, fiquei extremamente feliz, pois ia enfrentar Castilho, Pinheiro, Pinga, Bigode, Telê Santana, Didi, ou seja, um timaço, e faltando uns 20 minutos para terminar o jogo e eu entrei em campo. Foi assim a minha estreia, algo inesquecível para mim!

Como surgiu o apelido de Canhão da Vila?

Tudo começou na Mota Lima, que era uma rua do bairro de São Vicente, na Região Metropolitana da Baixada, em que morávamos. Nesse bairro, jogávamos em um time que era considerado muito bom. Os jogos eram descalços e o chão era uma areia muito fofa chamada por nós de areião, Era nosso estádio. De cada lado, lógico, bambus representavam as traves e por ter um chute forte, eu vivia derrubando o travessão (risos). Certa vez, deu um chute tão forte, mas tão forte, que o travessão caiu na cabeça do Cobrinha, o mesmo goleiro que me levou para fazer um teste no infantil do Santos. Quando eu calcei as chuteiras e comecei o processo de adaptação e a me habituar com a bola, percebi a força que o meu chute começou a alcançar. Nas equipes de base fiz muitos gols de fora da área e de faltas, que eram o meu forte. Um radialista de Santos chamado Ernani Franco, que tinha uma voz impecável e era muito ouvido, começou a me chamar de Canhão da Vila. Mas o meu chute era muito forte mesmo, e você e os leitores do Vozes da Bola conseguem imaginar a velocidade de um carro a 120 quilômetros por hora? Pois é, era o meu chute! Mas velocidade, drible e chute forte, eram as características que um ponteiro precisava ter para se destacar naquela época. O meu drible era razoável, mas o chute era uma potência que foi aos poucos sendo aprimorado em treinamentos e em muitas conversas com Jair Rosa Pinto. Foi meu companheiro de clube e me ensinou a bater de três dedos na bola. Modéstia à parte, não existe no futebol brasileiro até hoje, jogador que tenha feito mais gols de falta como eu marquei.

Podemos dizer que dentre as partidas importantes em sua carreira, a segunda do Mundial Interclubes de 1963, diante do Milan, no Maracanã, foi a mais marcante?

Sem dúvida. E por vários aspectos. Na Itália, o Santos havia perdido por 4 a 2. Nós, então, tínhamos que reverter esse placar porque era decisão do Mundial de 63 e preferimos jogar no Maracanã por se tratar de um grande estádio e com dimensões maiores do que as dimensões da Vila Belmiro. E se fôssemos jogar no Pacaembu, os corintianos, palmeirenses e são-paulinos iam torcer contra, pois naquela década, o clube não tinha tantos torcedores como têm hoje. Além de enfrentar o excelente time do Milan, tinham os torcedores adversários. Jogar no Rio de Janeiro, se não me engano, partiu do Lula, nosso treinador, que segundo a sua ideia, os torcedores do Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco, torceriam a nosso favor e nos ajudariam a reverter esse placar. Sabíamos que nossa missão não era nada fácil e terminamos o primeiro tempo perdendo por 2 a 0. No intervalo, o nosso treinador deu uma preleção e disse: “Eu acredito em vocês e vamos reverter isso!”. Mas todos do elenco santista sabiam que ganhar aquele jogo era ‘improvável’. O time dos caras era ótimo. E para piorar, uma chuva torrencial caiu no Rio de Janeiro. Mas vou te contar um segredo: foi essa chuva que nos beneficiou, sabia? Eu me aproveitei disso e como chutava muito forte, marquei dois gols de falta no grande goleiro Ghezzi, que foram o primeiro e o quarto, respectivamente, na goleada por 4 a 2 contra o super Milan Ganhamos sem Zito, Pelé e Calvet, que estavam contundidos. E fomos para a terceira partida decisiva, novamente, no Maracanã e vencemos com gol de pênalti do falecido Dalmo, criador da paradinha, nos sagrando bicampeões mundiais. Um ano antes, havíamos vencido o Benfica, que diferente do Milan, era um time que jogava e deixava jogar, com craques como Eusébio, Simões, Torres e etc. Mas vencer o poderoso Milan, equipe forte, com marcação cerrada e jogadores que chegavam duro nas jogadas, teve um sabor especial, sem dúvida! Particularmente, acho que essa vitória é até hoje a maior da história em 109 anos de existência do Santos Futebol Clube por tudo o que aconteceu nestes 270 minutos da decisão.

É verdade que, mesmo, às vezes, sendo caçado em campo por marcadores violentos e maldosos, o senhor jamais foi expulso de campo, e por essa rara disciplina recebeu o troféu Belfort Duarte?

Verdade. Foi um troféu conquistado por disciplina, pois para ganhar essa honraria era necessário não ter sido expulso e eu nunca fui em toda minha carreira. Foram 750 partidas pelo Santos, mais 42 na Seleção Brasileira e nunca recebi um cartão vermelho em toda minha vida como atleta profissional. Mas me orgulho muito de ter recebido este prêmio, pois no futebol brasileiro são três ou quatro jogadores, no máximo, que receberam este troféu. Agora, como treinador é difícil receber este prêmio (risos). Porque você fica muito dependente de jogadores e passa a não depender de si próprio. Mas como treinador eu não ganharia o Belfort Duarte. Na verdade ninguém ganhará! Mas é um prêmio que eu guardo com carinho aqui em casa até hoje. Significou um marco na minha carreira de lealdade, de honestidade, e principalmente, de disciplina.

O senhor foi convocado para as Copas do Mundo de 1958, na Suécia, e 1962, no Chile, mas se machucou nas vésperas das duas Copas e não pode atuar em nenhuma partida nestes dois primeiros títulos mundiais da Seleção Brasileira. Queria que falasse das contusões e se não ter disputado as Copas do Mundo foi a maior tristeza na carreira?

Sim, me machuquei no Santos na véspera da Copa de 58, e quatro anos depois, tive a infelicidade de me machucar também. Um jogo contra o País de Gales. Estava me preparando para ser o titular da seleção, pois os treinadores Vicente Feolla em 1958 e Aymoré Moreira em 1962, gostavam muito de ponteiros ofensivos e jogando no Maracanã senti um estiramento na panturrilha. E por ser uma competição curta, fiz o tratamento à base de gelo e compressa de água quente, considerados remédios da época. No quarto jogo, quando faltavam dois para o término da competição, eu melhorei, mas era um risco jogar dessa forma, pois se o atleta se machucasse, teria que jogar sem um jogador. As substituições eram bem diferentes de hoje em dia. Até mesmo o número de jogadores no banco de reservas era reduzido. Mas o Aymoré Moreira, que adorava o meu futebol, preferiu não correr o risco e manteve a equipe que vinha ganhando com o Zagallo na ponta-esquerda.

“Eu sou o maior artilheiro da história do Santos, porque o Rei Pelé não conta, ele é de outro mundo”, disse o senhor certa vez ao ser questionado sobre os seus 403 gols, o que o torna o segundo maior artilheiro da história do Santos. O que representou ter feito tantos gols com a camisa do Peixe?

Fazer tantos gols em uma equipe apenas é um feito histórico. A gente sabia que o Pelé era o maior jogador de todos os tempos e era o grande artilheiro com seus 1.282 gols. Eu, com meus 403 gols, me sentia extremamente feliz. E quando eu falo disso, o Pelé até ri, mas eu me considero o maior artilheiro do Santos mesmo, pois o Rei não conta (risos). Eu lembro como se fosse hoje quando o Pelé, ainda menino, chegou para fazer teste no Santos. Curiosamente, eu estava nesse dia na Vila Belmiro, e o Waldemar de Brito se virou em minha direção e me apresentou o Pelé: “Pepe, estou trazendo esse garoto para fazer teste aqui no clube e tenho certeza que vocês vão gostar do futebol dele”. O Pelé apertou a minha mão com tanta força que quase quebrou meus dedos. Ele chegou estreando o seu terno azul marinho e calças compridas, e o Lula quando viu aquele menino treinar ficou boquiaberto e profetizou: “Meu Deus, o que é isso? Esse vai ser o maior jogador do Brasil!”. Errou. Pelé se transformou no maior jogador do mundo!

O que o senhor lembra daquele 3 de maio de 1969, diante de um público de 22. 810 espectadores, quando deu adeus à carreira de jogador junto a torcida santista com uma volta olímpica no gramado da Vila Belmiro antes da partida entre Santos e Palmeiras, vencida pelo visitante por 1 a 0?

No Santos, os dirigentes do clube gostavam muito de mim por vários motivos, como nunca ter sido expulso, ter sido um jogador que só deu alegrias à torcida santista, e por ser um atleta disciplinado. Mas o contrato era de um ano e surgiam naquela época, dois pontas-esquerdas de muita categoria que eram o Edu e o Abel. Mas foi emocionante dar a volta olímpica, ser aplaudido de pé pela grande torcida do Santos, e ouvir de muitas pessoas o apelo para não parar de jogar. Mas te confesso, sem arrependimento algum, que foi a decisão certa, pois em seguida me tornei treinador respeitado e com uma carreira vitoriosa no próprio Santos, no São Paulo, Fortaleza, Inter de Limeira, Athletico Paranaense e Verdy Kawasaki, do Japão. Sem contar que uma das maiores alegrias, foi ouvir, certa vez, do renomado treinador Pep Guardiola, que aprendeu muito comigo quando foi meu jogador no Al-Ahli, do Qatar.

Em 1973, o senhor já era treinador e dirigiu a grande equipe que conquistou o título paulista, o seu primeiro como treinador e o último da carreira do Rei Pelé. Como foi viver essas duas emoções em um único ano?

Fomos campeões em 1973 e era o treinador da equipe. Os diretores haviam observado que eu era querido no clube e com um bom relacionamento com todos, desde os faxineiros, passando pelos jogadores e seus torcedores, até a imprensa. Deram-me esta oportunidade e quebramos um longo jejum com a conquista do título. Foi meu primeiro título, e aos 38 anos, mantive-me incentivado pelos desafios que surgiriam dali por diante. E as coisas aconteceram. Poder fazer com que a minha família pudesse, por meio do meu trabalho, conhecer países e culturas diferentes, foi recompensador. Por onde trabalhei, exigia nos meus contratos a presença da minha família por perto.

E o que o senhor tem a dizer sobre o Pelé? Na sua opinião, é o maior jogador de todos os tempos?

Depois que o Pelé nasceu, ‘seu’ Dondinho e ‘dona’ Celeste rasgaram a fórmula do sucesso e nunca vai aparecer um jogador como ele foi. De vez em quando aparece algum bom jogador, não preciso citar nomes aqui, pois foram vários grandes craques surgidos antes e depois do Pelé, mas igual ou superior, nunca vai existir. Pelé era completo. Batia com a perna direita e com a esquerda tendo a mesma precisão, exímio cabeceador, impulsão, chute, velocidade, visão de jogo, sabia fazer lançamentos, gols e dotado de uma categoria inigualável. O mundo conheceu jogadores excepcionais como o Puskás, Eusébio, Di Stéfano, Bobby Charlton, Beckenbauer, Cruyff, Rivellino, Zico, Maradona, mas o Pelé está degraus, eu disse degraus, acima deles todos.

Quando o senhor treinou o Al-Ahli, do Catar, entre 2003 e 2005, orientou o espanhol Pep Guardiola, que se mostrou interessado pela história do Santos bicampeão mundial de 1962/63. O senhor tinha certeza de que o Pep Guardiola se tornaria um ótimo técnico e adepto do futebol ofensivo?

Ele era bem jovem e havia jogado contra o Santos algumas vezes. Percebi o quanto ele jogava bem. Depois, o tempo passou, ele amadureceu mais como jogador e era um cabeça de área que entregava muito bem a bola para os meias criarem as jogadas ofensivas. Certa vez, tomando um chá na companhia do meu filho e do sheik que me perguntou: “Do you want to have Pep Guardiola on your team?” (Quer o Guardiola no seu time?”) Eu respondi: “Can bring it to tomorrow!” (Pode trazer ele para amanhã!). Dito e feito. Na semana seguinte, lá estava ele conosco. Lembro que na apresentação, ele me disse que havia escutado falar de mim e que eu tinha um chute forte e coisa e tal. Começamos a trabalhar e nossa equipe era modesta, sem grandes nomes ou jogadores de seleções. Guardiola se tornou um líder do time. Eu achava curioso que ele era um jogador de meia cancha, um volante de contenção, que jogava à frente dos zagueiros como brilhantemente faziam o Clodoaldo e o Dunga. Mas ele fazia bem essa função e entregava muito bem a bola para os meias criarem as jogadas de perigo do nosso time. Foi um sucesso sua participação na equipe e depois já se tornaria um excelente técnico, sendo considerado o melhor técnico do mundo, sem esquecer que aprendeu muito com meus ensinamentos.

Em 2012, o senhor lançou um livro de memórias, com o título “Bombas de Alegria, meio século de memórias do Canhão da Vila”, no qual conta histórias curiosas do futebol. Sua biografia foi escrita por Gisa Macia, sua filha, formada em jornalismo, não é mesmo?

Fui incentivado pelo José Luiz Tahan, editor da revista Mais Santos, a lançar um livro sobre a minha vida. E assim foi feito, com passagens extremamente curiosas, casos interessantes no futebol, O livro tornou-se um sucesso. E como tenho, graças a Deus, uma memória muito privilegiada, convidei a minha filha e jornalista Gisa Macia para escrever o livro que conta um pouco do que vivi dentro das quatros linhas como atleta profissional e à beira delas como treinador. Confesso que a biografia ficou muito boa, pois a Gisa Macia, além de minha filha, é muito inteligente e muito capaz nas coisas que se propõe a fazer. Foi um projeto bem bacana, onde viajamos bastante para o lançamento do livro e até hoje somos convidados a fazer o relançamento da biografia em determinadas cidades. Onde o Pepe vai, em companhia da sua filha Gisa, é sucesso total (risos). O maior barato disso tudo é que a curiosidade parte mais dos torcedores de outros clubes, e não somente os do Santos.

Como tem enfrentado o isolamento social em razão da Covid-19?

Eu estou com 86 anos e não é apenas em virtude da minha idade, mas é bom evitar riscos. A pandemia requer muito cuidado, e os meus quatro filhos, e a minha esposa, não permitem a minha saída. Mas quando alguns de seus colegas jornalistas querem fazer o trabalho deles comigo, tem que vir aqui em casa e me entrevistar, é lógico que mantemos o distanciamento usando máscaras e álcool em gel a todo momento. Mas sem máscara, nada feito, pois existem alguns irresponsáveis que não utilizam, e eu não largo a minha em hipótese alguma. A CBF mandou três máscaras para os campeões mundiais, e a gente vai usando sempre que pode. Achei uma atitude muito bonita por parte do órgão maior do futebol brasileiro fazer isso em um momento delicado como o que estamos vivemos.

Como o senhor definiria Pepe numa única palavra?

Decisivo. Às vezes, eu não estava em uma boa jornada, era muito vigiado pelos marcadores e encontrava dificuldades dentro de campo. E aí, eu resolvia tudo com um ‘foguete’ de fora da numa distância de 40 metros. O radialista Ernani Franco narrava, deste jeito: “Pepe não estava em um grande dia, mas decidiu a partida com um canhão”.





VOZES DA BOLA: ENTREVISTA RICARDO ROCHA


O ditado ‘a rapadura é doce, mas não é mole!’, alimento este, energeticamente muito rico, que já foi servido a soldados das forças aliadas na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, tem seu contraditório de sabedoria. Ao dizer que, apesar de ‘doce’, saborosa, ela tem outro lado, que mostra a consistência do produto traduzida na dureza da vida. Serve como metáfora para deixar claro e evidente que tudo tem dois lados.

Assim foi a infância de Ricardo Roberto Barreto da Rocha, que antes de ser reconhecido como um dos maiores zagueiros do futebol brasileiro e mundial, encarou muitas provas da rapadura’ no decorrer da vida. No dia 11 de setembro de 1962, três meses após a conquista do bicampeonato mundial, no Chile, era prenúncio que mais um supercampeao, nascido na cidade que ganhou projeção a partir da chegada de Maurício de Nassau, escreveria seu nome no Olimpo do Futebol como seus conterrâneos campeões mundiais vestindo a ‘amarelinha’ – Vavá, Zequinha e Rivaldo.

A começar pelo par de kichutes surrados que não saía de seus pés, e com ele, pelas ruas de terra batida do bairro pobre de San Martin, Zona Oeste de Recife, encarava sob sol ou chuva, a pé, os seis quilômetros para ir treinar na modesta Associação Atlética Santo Amaro. Quando conseguia uma bicicleta, era raridade. Não havia dinheiro para o ônibus. Esta era a dureza da rapadura! Já o ‘doce’ era caminhar mais seis quilômetros de volta para casa no fim do dia. E mesmo extenuado, devido a carga puxada de treinos, saber que tinha o homem do pão que passava nas casas deixando seu produto recém-saído da fornata e que o humilde trabalhador recebia o pagamento por mês ou por semana.

“Não quero nem imaginar o dia que o homem do pão não aparecer! Como vocês vão comer?”, confidenciou certa vez a mãe que criava a prole trabalhando como doméstica em algumas casas no bairro e era ouvida por Ricardo que se preparava para o banho.

Mas Ricardo Rocha viveu duas incertezas muito marcantes na sua vida: na infância, buscando seu lugar ao sol no futebol amador, e preocupado com a alimentação familiar, e a lesão que o tirou dos jogos da Copa do Mundo de 1994 quando o Brasil encerrou o jejum de seis edições sem sequer ver o brilho do troféu.

Mas Ricardo lutou, incansalvemente, contra o desânimo e dificuldades, adversários difíceis de serem vencidos. E por ironia do destino, foi nos momentos mais complicados que ele saboreou o doce da rapadura quando foi trocado por 20 pares de chuteiras, 20 bolas e dois jogos de camisas para transferir-se ao Santa Cruz. A chegada no Gigante do Arruda, em 1983, dava início à trajetória de um craque dentro e fora de campo.

Passados 11 anos, na Copa do Mundo dos Estados Unidos, já consagrado como um brilhante zagueiro – que defendendo o São Paulo, foi considerado o melhor jogador do Campeonato Brasileiro de 1991 – viveria mais um episódio triste com a lesão muscular na estreia da seleção brasileira no Mundial, diante da Rússia. Poderia ser o fim, mas Deus escolheu que ali fosse o começo.

Campeão Mundial pela seleção brasileira, camisa 3, capitão da equipe, homem de confiança de Carlos Alberto Parreira e Zagallo, técnico e coordenador-técnico à época, Ricardo Rocha foi o primeiro a desembarcar do avião prefixo DC-10 trazendo o troféu da Terra do Tio Sam. Ao desembarcar no Aeroporto Internacional de Guararapes, em Recife, em ato profético, beijou o chão como fazia o Papa João Paulo II (1920-2005).

Mas, no hiato entre o ‘doce’ e o ‘não é mole’, que foi a vida de Ricardo Rocha dentro dos campos. O zagueiro se transformou em um dos mais respeitados zagueiros do futebol mundial. O xerife usou sua segurança e qualidade para impor respeito na grande área. Do bigode grosso e calção sobre o umbigo, já deixava na aparência o cabra da peste que os atacantes teriam que superá-lo. Defendeu nove clubes brasileiros, uma camisa do maior clube do século XX, e por fim, a camisa rubro negra do Newell’s Old Boys, da Argentina, um ano antes de vestir a preta e vermelha do Flamengo.

No jogo da vida, enfrentou o destino, jogou com garra – uma de suas marcas – venceu a pobreza, conquistou títulos e se tornou campeão e referência de caráter, companheirismo e liderança.

No dia em que completa 59 anos, 11 de setembro, Ricardo Rocha é o 38° personagem na série Vozes da Bola, escrita por Marcos Vinicius Cabral fazendo tabelinha na edição com Fabio Lacerda.

Por Marcos Vinicius Cabral

Edição: Fabio Lacerda


Como foi sua infância, no Recife, cidade que apresentou vários craques para o futebol brasileiro? Cite alguns craques conterrâneos de Ricardo Rocha, da mais antiga capital estadual do país?

Muito tranquila. Eu sou de San Martin, em Recife, bairro pobre e de famílias humildes. Fui criado ali e minha infância passei toda jogando futebol nas quadras e, principalmente, nos campos, já que existiam muitos naquela época. E isso foi muito importante na minha criação como pessoa e na minha formação de atleta profissional de futebol, pois Recife sempre teve grandes jogadores que viveram essa época boa de campos de futebol como Rivaldo, um dos maiores do mundo na minha opinião, Juninho Pernambucano, Leonardo, Chiquinho, Ramon, Givanildo, Ademir Queixada, Zé do Carmo e Biro-Biro. Agradeço muito a Deus pela infância que tive e por ter seguido o caminho que tantos outros grandes jogadores seguiram.

Sua mãe sempre apoiou o seu sonho de ser jogador. E você não mediu esforços para isso, pois caminhava 12 quilômetros – ida e volta – para treinar no Santo Amaro. Quantos anos você tinha e pode recordar esta dura rotina?

Minha mãe foi o esteio de tudo, junto com meu pai, é claro! Mas minha mãe, muito mais, porque ela me apoiava para que eu continuasse a jogar futebol. E na época do Santo Amaro, eu deveria ter uns 17, 18 anos, e por não ter recursos naquela época, eu andava muito a pé para ir e voltar dos treinos. Tudo era difícil nesse processo de realização do meu sonho. Para se ter uma ideia, eu nunca tive chuteiras, sabia? Eu usava um kichute que era usado para tudo (festa, aniversários, casamentos, treinos, jogos. Enfim, aquilo era salvação da lavoura). A vida era sofrida e minha mãe trabalhou muito para que eu pudesse tentar a sorte de ser jogador de futebol. Cansei de andar seis quilômetros para ir e seis quilômetros para voltar dos treinos. Mas foi nas dificuldades que a vida moldou o homem que sou hoje. Mas cada dificuldade que enfrentei me ajudou ir além em busca de me tornar jogador de futebol. E graças a tudo isso, aqui estou!

Pouca gente sabe que, antes de jogar no Santa Cruz, em 1983, você foi trocado por 20 pares de chuteiras, 20 bolas e dois jogos de camisas. Pode nos contar essa história e relatar a coincidência dos empates no triangular entre Santa Cruz, Sport e Náutico na decisão do Supercampeonato Pernambucano na qual a Cobra Coral venceu o Timbu nos pênaltis no jogo derradeiro do campeonato?

Isso foi verdade mesmo. Quando saí do Santo Amaro para o Santa Cruz, fui trocado por 20 pares de chuteiras, 20 bolas e dois jogos de camisa, já que não se tinha dinheiro na época. Depois de ser trocado dessa forma, eu fui jogar de lateral-direito no Santa Cruz em 1981. Dois anos depois, conquistei com meus companheiros, o tri-supercampeonato Pernambucano que foi uma competição muito difícil de ser conquistada em uma final equilibradíssima contra o Náutico. Lembro que a gente estava ganhando esse jogo por 1 a 0 e a torcida alvirrubra já havia saído do estádio quando, aos 43 minutos, o Mirandinha empatou e a torcida voltou. Foi uma loucura, um sofrimento aquele jogo e vencer foi um sacrifício enorme. Lembro que eu torci muito forte meu tornolezo no final do jogo, e no vestiário, eu já estava decidido a não voltar para a prorrogação. No entanto, o Zé do Carmo, que completou 60 anos no dia 22 de agosto, havia torcido o joelho. Não restou alternativa. Voltei a campo para jogar a prorrogação na cabeça de área, no sacrifício, e conseguimos levar a decisão para os pênaltis para delírio dos quase 80 mil presentes no Estádio do Arruda. No final, o Luiz Neto pegou uma cobrança e a vitória veio por 6 a 5. Foi o título da superação e se tornou inesquecível para quem participou daquela campanha.

Da lateral-direita no Santo Amaro para a zaga central no Santa Cruz por sugestão do ex-técnico Carlos Alberto Silva (1939-2017), que, à época, disse: “desloquei ele para a zaga pois ali ele chegará a seleção”. Como foi esta transição defensiva de estilos diferentes entre laterais e zagueiros?

Essa transição veio mesmo no Guarani e não no Santa Cruz. Lá em Recife, eu era zagueiro e quando cheguei no Guarani, acabei indo para a lateral-direita por causa dos grandes defensores que a equipe tinha, muitos campeões brasileiros de 78. Era difícil arrumar uma vaguinha ali no meio de tantas feras do Bugre, mas o Carlos Alberto Silva já me conhecia do Santa Cruz e sempre dizia que a minha posição, de fato, no futebol, seria zagueiro. Minha primeira convocação para a Seleção Brasileira foi com ele em 1987, então, sou muito grato pelo conselheiro, amigo e pai que foi para minha carreira.

A partir da sua chegada ao Brinco de Ouro, você ganhou chance na seleção brasileira destacando-se nas primeiras oportunidades – Pré-Olímpico de 1987, e na conquista do ouro no Pan-Americano de Indianápolis, nos EUA, no mesmo ano. Ser convocado para a seleção jogando por um clube longe dos holofotes das capitais tem alguma importância diferenciada para você?

Em primeiro lugar, eu acho que acertei quando saí do Santa Cruz e fui para o Guarani em 1985. Naquela época, o clube tinha uma estrutura maravilhosa e revelava muitos jogadores. Basta voltar um pouco no tempo e lembrar do Careca que foi cortado da Seleção Brasileira de 1982 e que era jogador do Guarani, do zagueiro Júlio César, que foi titular na Copa do Mundo do México, em 1986, e era do Guarani também. Mas outros jogadores do Guarani fizeram histórias em outros clubes e tiveram passagens importantes na Seleção Brasileira como Neto, Evair, João Paulo, tantos outros bons jogadores. Fui campeão Pré-Olímpico e Pan-Americano jogando pelo Guarani.

Uma pesquisa feita por um site esportivo,em 2020, sem levar em considerações muitos craques bugrinos e suas respectivas posições de origens, a equipe escolhida pelos internautas foi – atenção para o meio de campo totalmente desfigurado sem jogadores de contenção – Neneca, Mauro, Ricardo Rocha, Julio Cezar e Miranda; Zenon, Djalminha e Neto; Amoroso, João Paulo e Careca. E qual é o seu Guarani de todos os tempos?

Eu fiquei muito feliz com a minha escolha pelos internautas por meio dessa pesquisa. Mas com todo respeito, eu acho muito injusto, pois tem muita gente boa e que foi deixado de fora. Por exemplo, colocar um Careca e deixar Evair e Luizão de fora, já que o Guarani sempre teve muitos bons atacantes, é complicado. Então você analisa e vê que deixar de fora alguns é injusto. Você olha os eleitos do meio-campo e vê que Zenon, Djalminha, Neto, Amoroso e na frente Careca e João Paulo, é uma equipe extremamente agressiva e ofensiva. Mas o time escolhido é composto por jogadores de alto nível. Particularmente, eu fico feliz de estar no meio entre os melhores da história do clube.

Como foi trabalhar com Carbone (1946-2020) na forte equipe do Guarani, em 1988?

Foi ótimo. Trabalhar com o Carbone, um profissional maravilhoso, um cara do bem, muito amigo e que me ajudou muito no Guarani. Foi uma experiência que jamais vou esquecer. Só tenho palavras de agradecimento ao grande treinador e ser humano que ele foi.


Qual foi o melhor time do Guarani que você jogou?

É muito injusto falar ou eleger o melhor time do Guarani na época em que joguei. Convivi com grandes jogadores que foram importantes para mim, e principalmente, para o clube. Confesso, que dizer quais foram os melhores não é tão relevante quanto dizer que foram excelentes profissionais, atletas dedicados e que honraram a profissão de jogador de futebol. Isso é, pelo menos, para mim, mais importante do que escalar o melhor time.

Pode relembrar a campanha no Paulistão de 1985 quando o Guarani foi terceiro colocado?

Eu cheguei como lateral-direito no Guarani, em 1985, e com a ajuda do treinador Lori Sandri, com quem havia trabalhado no Santa Cruz, a adaptação foi rápida para atuar no miolo de zaga. O campeonato exigia isso. Na primeira fase, os clubes jogavam todos contra todos, em turno e returno. Cada turno teve contagem de pontos, e os campeões de cada um deles, classificaram-se para as semifinais. A Portuguesa, primeira colocada por ter somado mais pontos, pegou a Ferroviária, quarta, e nós do Guarani, terceiro, pegamos o São Paulo que foi segundo. Os jogos foram de ida e volta. Empatamos em 1 a 1 e perdemos por 3 a 0. No geral, fomos terceiro colocado.

Depois daquele empate injusto no Morumbi, em 1988, na decisão do Paulista, quando Neto fez um gol de bicicleta contra o Corinthians, pode-se dizer que o título fugiu das mãos da equipe bugrina graças à sorte do Viola?

Não é que fugiu das mãos. Não sei se foi cagada ou sorte aquele chute do Wilson Mano ter saído errado e encontrado o garoto Viola no meio do caminho para desviar a bola para dentro do gol e dar o título ao Corinthians. Faz parte do jogo. O Guarani jogou muito bem e o gol de bicicleta do Neto foi um dos três mais bonitos que eu vi na vida dentro de campo. Mas o Corinthians fez aquele gol e acabou sagrando-se campeão. Não sei se é sorte! Eu acredito em trabalho e naquela decisão, eu acho que o Corinthians, por ser uma grande equipe, trabalhou bem e alcançou o objetivo que foi o título.

Quais foram os atacantes mais difíceis que você marcou?

Muito difícil escolher um. Ainda mais quando se enfrenta atacantes com uma qualidade técnica elevada como enfrentei. Jogadores do nível de Careca, Bebeto, Romário, Gullit, Van Basten, Zamorano, Batistuta e Balbo. Fica difícil escolher um e ser injusto com os demais.

Sua passagem pelo São Paulo foi marcante. Jogou entre 1989 e 1991. Se não fosse o Sorato, você teria feito a dobradinha 1989 e 1991 com os títulos Paulistas e Brasileiros. Uma passagem vitoriosa abrindo caminho para o São Paulo seguir em profusão de títulos nos anos seguintes. Foi sua experiência mais vitoriosa da carreira?


A minha passagem pelo São Paulo foi muito marcante, e isso se refletiu nos títulos que conquistei no clube, como o Paulista, em 1989, e o Brasileiro de 1991. Isso sem falar que chegamos em três finais consecutivas no Campeonato Brasileiro que foram contra o Vasco, em 1989, o Corinthians, em 1990, que não joguei por tratar um estiramento em que fiquei tratando, e o Bragantino, em 1991. Sabemos que o Brasileiro é considerado uma das competições mais difícieis do mundo. Mas para mim foi uma satisfação imensa e uma das melhores experiências que vivi no futebol por tudo que o São Paulo representava no cenário nacional, já que era uma equipe muito equilibrada, financeiramente, bem estruturada e que não devia nada as equipes lá de fora, como o Real Madrid para onde fui transferido. O São Paulo é um clube espetacular e só tenho palavras de gratidão.

Você lembra como surgiu o apelido xerife?

Na realidade, o bigode impunha respeito, afinal de contas, bigode é bigode (risos). O apelido, se não estiver enganado, foi o Galvão Bueno que deu numa das suas transmissões. Chamou-me de xerife por causa daquele bigodão e ficou batizado assim.

Eliminado na Copa do Mundo de 1990, na Itália, e lesionado para estreia na Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos. Qual foi o momento mais difícil para você nesses dois mundiais?

Para mim foi ruim a eliminação, em 1990, porque a gente ficou uns quatro anos sendo xingado no Brasil inteiro em virtude daquela derrota por 1 a 0 para a Argentina. Até chegar nos Estados Unidos, em 1994, foi um sofrimento muito grande para nós jogadores. Em relação à minha lesão, se você me perguntasse assim: “Ricardo, você preferia ficar bom em 94 mesmo machucado ou ter ido mais longe na de 90 jogando?”. Sem dúvidas, que eu fico com o título de 94, pois eu era titular, machuquei e fiquei no banco na final. Esse título foi muito importante, mas é claro que a eliminação e a lesão, como foram no meu caso, doeram muito. Mas tenho a consciência de que iniciei a Copa do Mundo nos Estados Unidos jogando e terminei no banco.

A Copa da Itália, em 1990, foi marcada pela eliminação da Seleção Brasileira nas oitavas de final. A campanha do Brasil está entre as piores da história. Titular do time de Sebastião Lazaroni, você admitiu numa entrevista que os problemas começaram antes mesmo da viagem à Europa. O Vozes da Bola quer saber: quais eram esses problemas?

Concordo que aquela eliminação está entre as piores na história das Copas do Mundo, e isso, custou muito para nós. Mas, foi muito difícil absorver aquela derrota, até porque, todo mundo sabe que tivemos problemas na preparação, na discussão da premiação que era para ser realizada no Brasil e foi feita na Itália em um momento inoportuno. Pessoas entrando e saindo da concentração em que estávamos é um dos exemplos de erro naquela Copa do Mundo. No entanto, mesmo com tantos problemas extra-campo, conseguimos jogar melhor que a Argentina. O Brasil massacrou a Argentina e não jogamos mal, muito pelo contrário, jogamos muito bem e merecíamos a vitória. Mas é isso, tem vezes que você joga melhor que o adversário e não vence.

É verdade que, quando a equipe brasileira era contestada nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1994, foi sua a ideia de entrar de mãos dadas, em Recife, e mostrar que a seleção estava unida para reverter a situação na competição?

Foi. Eu lembrei do gesto de jogadores entrarem em campo de mãos dadas em 1983, quando a equipe do Santa Cruz em que jogava, treinada por Carlos Alberto Silva, era mais fraca do que as do Sport e do Náutico e mesmo assim conquistamos o tri-supercampeonato Pernambucano daquele ano. E aquilo veio na minha mente de entrar de mãos dadas, que inclusive, coincidentemente, foi no mesmo Estádio do Arruda. Na realidade, o Brasil não vinha fazendo uma grande Eliminatórias, mas vinha ganhando. A gente sabia que a tendência daquela seleção era o crescimento e foi no jogo contra o Bolívia, em Recife, que surgiu a ideia de entrarmos de mãos dadas. Na ocasião, ganhamos por 5 a 0 e aquilo foi importante para a gente seguir adiante e mostrar ao povo brasileiro que aquele ‘dar as mãos’ mostrava que a gente estava muito unido.


Os leitores do Museu da Pelada querem saber: qual a sensação em ter sido o primeiro jogador a descer do avião em Recife com a taça de campeão do mundo nas mãos e ter beijado o chão como o papa João Paulo II fazia?

A sensação foi a melhor do mundo. Uma alegria muito grande. A gente queria descer em Recife para agradecer por tudo que aconteceu nas Eliminatórias, e em especial, pelo jogo contra a Bolívia em que entramos em campo de mãos dadas e dali partimos confiantes para a conquista do tetracampeonato mundial. O meu gesto de beijar o chão da terra onde nasci, como fazia o papa João Paulo II, foi um momento no futebol que jamais vou esquecer.

Mesmo perdendo a decisão do Campeonato Brasileiro de 1989, você foi eleito o melhor jogador da competição ganhando a Bola de Ouro da Revista Placar. Mas qual das decisões de Brasileiros foi mais dolorosa para você: contra o São Paulo em 1986, com você no Guarani, ou São Paulo e Vasco, em 1989, com você vestindo a camisa do Tricolor Paulista?

Perder para o São Paulo, em 1986, e para o Vasco, em 1989, doeram bastante. Mas eu acho que a final de 86 contra o São Paulo dói mais porque estava no final do jogo de uma prorrogação. Uma partida marcada pelo equilíbrio. Jogo quente, disputado, a gente ganhando por 3 a 2, e no final da prorrogação, faltando um minuto e meio, o Careca acertou aquele belo chute empatando a partida. A gente fez um grande jogo, jogamos muito na prorrogação e perdemos nos pênaltis. Essa doeu mais.

Quem foi seu melhor companheiro de zaga em toda sua carreira e por quê?

Que pergunta difícil, cara! Escolher um companheiro de zaga é muito, muito, mas muito complicado mesmo. Eu joguei com grandes jogadores como Mozer, Ricardo Gomes, Márcio Santos, Alexandre Torres, Wilson Gottardo, Júlio César, ou seja, é a mesma coisa que escolher os 11 melhores de cada time nessas eleições que são feitas. Tive grandes companheiros de zaga e escolher o melhor desses, considero uma injustiça!

Como foi a história do diretor do São Paulo que precisou ficar 12 dias em Portugal para te contratar porque o Sporting não queria sua liberação?

Pois é. O diretor que foi me buscar lá em Portugal foi o Leco que era advogado do São Paulo. Eu lembro que a gente tinha acertado com ele para ficar dois ou três dias e ficou doze, pois teve um probleminha lá em relação a pendências na transação. Mas graças a Deus tudo foi resolvido, vim para o Brasil, cheguei no São Paulo, e em 45 dias, já coloquei a faixa no peito sendo campeão paulista em 1989.


No Real Madrid, você jogou com muitos craques como Zamorano, Butrageño e Hugo Sanchez, e foi o primeiro zagueiro brasileiro no clube e o quinto na história (atrás de Fernando em 1935, Didi e Canário, ambos em 1959 e Evaristo em 1962). O título de campeão da Copa do Rei da Espanha em 1993 não foi pouco para um jogador como você?

Me sinto lisonjeado por dois motivos: primeiro, em ter jogado com esses grandes jogadores citados na pergunta. Em seguida, por ter sido depois de 30 anos contratado pelo Real Madrid e ter aberto a porta do mercado espanhol para tantos outros brasileiros jogarem lá como Vítor, Sávio, Roberto Carlos, Marcelo e Vinícius Jr. Já sobre a Copa do Rei da Espanha, não foi pouco não, pois o título foi justo, mesmo sabendo que o Barcelona tinha a melhor equipe. Foi aí que surgiu o Cruijff que montou aquele belo time que todos nós conhecemos. Com sua visão de grande atleta que foi, com as camisas do Ajax-HOL e da Seleção da Holanda, ele fez história quando ganhou sua primeira Copa do Rei na temporada 1989/90 e a Liga dos Campeões da UEFA em 1991/92. Isso tornou a conquista da Copa do Rei pelo Real Madrid como muito importante.

Já parou para imaginar se não tivesse ido para o Santiago Bernabeu você seria campeão da Libertadores e Mundial Interclubes em 1992 pelo São Paulo? E possivelmente em 1993?

Não, não parei para pensar nessa possibilidade porque naquela época era uma coisa boa para todo mundo, e é claro, ninguém tinha bola de cristal para saber o que aconteceria no futuro. Posso te garantir que aquele grupo do São Paulo que ganhou o brasileiro de 1991 era muito forte, afinal de contas, a base era a dos anos anteriores de 1989 e 1990 quando se conquistou dois vice-campeonatos perdendo para o Vasco e o Corinthians, respectivamente. Isso sem falar da garotada que voava naquela época e surgia no clube como Bernardo, Cafu, Raí, Macedo e Elivélton. Mas assim, analisando friamente, depois de tantos anos, não tenho arrependimento, pois joguei e fui campeão pelo São Paulo, considerado um grande clube do futebol brasileiro e fui para um cenário importante futebolístico para jogar em um dos maiores clubes do mundo que era o Real Madrid. Fui feliz, saí tranquilo e se tivesse que fazer tudo de novo, faria da mesma forma.


Como foi sua experiência no Vasco no qual conseguiu levar o time ao único tricampeonato carioca? Uma conquista repleta de lutas, drama em virtude do acidente que levou a vida do Dener, e a união do time tendo você como um dos mais experientes ou o mais experiente daquele plantel?

Vou confessar uma coisa: eu sempre tive vontade de jogar no Vasco da Gama! Tive duas oportunidades que bateram na trave e na terceira não deixei passar e fechei com o clube. Tenho um orgulho imenso em ter jogado em São Januário, e mesmo nunca escondendo de ninguém que sempre fui Santa Cruz-PE na infância, mas meu coração era Cruzmaltino aqui no Rio. Lembro, quando criança, em que adorava ver aquelas disputas entre Roberto Dinamite e Zico no Maracanã. Que saudades dessa época! E realmente, o tricampeonato, único que o clube tem, foi especial e a convivência com aquela garotada foi o mais legal de tudo. Agradeço muito a Deus por ter tido a oportunidade de jogar nesse clube gigante do futebol brasileiro que me proporcionou conhecer um dos melhores amigos que fiz, não só no futebol, mas na vida que é o Alexandre Torres. Então, para mim foi uma honra ter jogado lá, conhecido sua torcida, que é linda, maravilhosa, forte e faz a diferença para qualquer jogador que veste a cruz de malta no peito. Já a morte do Dener foi um período difícil para quem estava no clube naquele ano. Lembro que conseguimos superar essa perda com muita conversa e união. O Eurico Miranda, presidente, o Jair Pereira, treinador, e eu como um dos mais experientes do elenco, conversamos muito e conseguimos dar a volta por cima e conquistar o título que serviu para dedicar a ele pelo grande jogador que foi

Quem foi o seu melhor treinador?

Eu tive grandes treinadores como Telê Santana, Lori Sandri, Carbone e Gainete, mas é muito difícil você escolher o melhor deles todos. Destes grandes treinadores, eu faço questão de falar de um, porque minha carreira mudou muito depois que ele foi treinar o Santa Cruz-PE. Vivi os melhores momentos da minha carreira chegando à seleção brasileira com o Carlos Alberto Silva.

Em setor que não tem renovação há muito tempo, se fosse técnico da Seleção Brasileira, quais seriam seus quatro zagueiros para disputar as Eliminatórias?

É preocupante. A gente, nos últimos anos, não conseguiu dar sequência a essa juventude em virtude de ter laterais e zagueiros que jogaram por muito tempo na seleção. Mas eu acho que temos condições de renovar a defesa do Brasil, pois temos bons jogadores como Rodrigo Caio, o Éder Militão, o Marquinhos, que particularmente eu gosto, e aí você pode fazer a mescla com Thiago Silva, por exemplo. Mas essa renovação tem que existir e acho que o Tite já vai começar essa reformulação ali atrás.

Como tem enfrentado esses dias de isolamento social devido ao coronavírus?

Apreensivo e preocupado como todo mundo. As informações, que antes eram mínimas, agora vão sendo aos poucos mais esclarecidas do que é o vírus e como ele age no organismo do infectado. Mas, com os devidos cuidados, como o uso do álcool em gel, distanciamento social e máscara, vamos virar esse jogo. Não tem jeito! Acho que a vacinação é o caminho, todos devem se imunizar e é a maneira para diminuir tantas mortes, não só no Brasil, mas no mundo. Eu peço aos que estiverem lendo essa entrevista que se cuidem e sigam todos os protocolos de saúde. Esse vírus já matou e continua matando muitas pessoas. Mas se Deus quiser, isso tudo vai passar!

Defina Ricardo Rocha em uma única palavra?

Amigo. Acho que essa palavra define quem o Ricardo Rocha é.

VOZES DA BOLA: ENTREVISTA PAULO ROBERTO


Taxado por seu conterrâneo e mestre do radiojornalismo esportivo, Luiz Mendes (1924-2011), como o ‘lateral do cruzamento certo’ – a história de um lateral, seja direito ou esquerdo, passa por este fundamento para os arremates ao gol adversário.

Paulo Roberto saiu de Viamão para ganhar o futebol brasileiro até chegar à seleção, onde não teve êxito por motivos que não estavam ligados ao seu poderio físico, aeróbico e técnico.

Foi um lateral digno de estar na galeria dos grandes da posição. Não é para qualquer um ser campeão Brasileiro, aos 19 anos, e aos 21, campeão da Libertadores da América e do Mundial Interclubes.

Foi desta forma que Paulo Roberto iniciou sua saga de levantar troféus pelos clubes que tiveram a honra de tê-lo na faixa direita do campo.

Em 1984, arriscou-se no São Paulo, e no ano seguinte, no Santos. Em ambas as passagens pelo futebol paulista foram suficientes para encerrar sua passagem pelo futebol bandeirante.

Em 1986, chegou ao Rio de Janeiro para fazer história com a camisa do Vasco. Sagrou-se bicampeão Carioca, em 1987/1988 – a última vez que o Vasco foi campeão duas vezes consecutivas do Carioca havia acontecido em 1949/1950 – Paulo Roberto também marcou sua história no Botafogo, ao chegar em 1989.

No ano seguinte, bicampeão Estadual com o time da Estrela Solitária – a última vez havia sido em 1967/1968.

Nas Alterosas, foi campeão nos dois clubes. Chegou primeiro à Toca da Raposa para voltar a ser campeão de títulos nacionais e internacionais. Também foi bicampeão Mineiro, desta vez de forma inusitada, pois em 1994 vestindo a camisa do Cruzeiro, e no ano seguinte, já com o figurino preto e branco do Atlético-MG.

Saber qual o gol mais bonito que fez na carreira, é uma curiosidade que ficará no ar e poderá ser respondida pelos leitores do Museu da Pelada: um pelo Vasco contra o Flamengo pelo Carioca de 1988, quando chutou quase do meio de campo enquanto Zé Carlos (1962-2009), a muralha rubro-negra, bebia água após a saída de bola do Vasco em virtude do gol de empate do Flamengo; ou o gol de falta pelo Cruzeiro contra o Vasco na Copa do Brasil de 1993 lá do meio da rua igualando o placar e levando o time Celeste à final e ao título, consequentemente, da competição?

O nosso 37° personagem do Vozes da Bola enaltece os clubes que defendeu, a amizade com Renato Gaúcho desde as categorias de base, sua reverência ao ídolo Nelinho, carregando consigo a honraria de ser o jogador que mais vezes vestiu as camisas de clubes de massa no Brasil – nove. Ele, cuja mãe era professora, deu aulas na faixa direita dos campos de futebol Brasil afora.

Por Marcos Vinicius Cabral

Edição: Fabio Lacerda


Como foi a infância de Paulo Roberto Curtis Costa, em Viamão, no Rio Grande do Sul?

Inesquecível. Cidade pequena, todo mundo próximo um do outro e todos se conheciam. Eu tenho as melhores recordações dessa fase da minha vida. O mais legal era quando moravávamos nessa cidade do interior e jogávamos bola na rua e nas folgas das aulas dentro da escola. Havia, lá em Viamão, onde nasci ,e passei minha infância, dois campos, e o pessoal adorava jogar futebol. Até hoje está marcado na minha vida tais recordações.

Você jogava em um pequeno clube de futebol amador de Viamão chamado Tamoio Futebol Clube. Como foi descoberto pelo Grêmio?

Eu jogava no infantil do Tamoio Futebol Clube e graças a um amistoso contra o Grêmio, me destaquei jogando no meio de campo. Cheguei a marcar um gol nesta partida. Depois disso, houve o convite para fazer um teste. Fui para Porto Alegre, fiz o teste e passei. Joguei por três anos conquistando títulos e me tornando um ídolo do clube.

No Tricolor gaúcho, você foi campeão Brasileiro de 1981, da Libertadores, e do Mundial Interclubes em 1983. Como foi escrever seu nome na história do clube com esses títulos?

Poxa, foi muito importante isso! Conquistamos os principais títulos da história do clube como. Fomos o primeiro time gaúcho a conquistar títulos dessa magnitude. Eu vou completar 26 anos que parei de jogar nesse ano de 2021, e tenho o maior orgulho de saber que o Paulo Roberto está na história do Grêmio. E tenha certeza, que meus filhos sabem disso e, futuramente, os meus netos vão saber.

É verdade que você era meio-campo e quem te colocou para jogar na lateral foi Ênio Andrade? Como foi isso?

É verdade. Quando comecei a jogar no Tamoio Futebol Clube eu era meio de campo e cheguei no Grêmio como tal. Mas de vez em quando, na base, atuava na lateral-direita e o ‘seu’ Ênio Andrade me viu e sabia das minhas características. Não demorou muito e surgiu uma oportunidade no profissional. Como ele sabia que eu tinha jogado na base como lateral, me aproveitou. Nós acabamos sendo campeões brasileiros em 1981 e devo muito ao professor Ênio Andrade por ter enxergado em mim o jogador que ele precisou na ocasião.


Você formou com Renato Gaúcho um ótimo lado direito no estádio Olímpico e campos afora. Como era jogar com ele?

Foi maravilhoso. O Renato é um grande amigo, e a gente começou junto nas categorias de base do Grêmio quando ele veio do Clube Esportivo Bento Gonçalves. Nossa parceria começou aos 15 anos quando começamos a jogar juntos e criamos um bom entrosamento pelo lado direito. Mas não foi apenas no Grêmio que jogamos juntos e tivemos bom entrosamento. Depois repetimos nossa parceria no Botafogo, Fluminense, Cruzeiro e na seleção brasileira. Mas o Renato foi um grande jogador, um cara que cresceu comigo no Grêmio. Tenho uma ligação forte e um carinho especial. Foi muito legal ter jogado com ele nos clubes e sou grato por essa experiência e por um ter ajudado o outro. Desejo a ele toda sorte do mundo nesse desafio que é treinar o Flamengo.

Achou justo a estátua que fizeram dele?


Muito. Acho justo e merecida. O Renato é o jogador mais importante na história do clube tendo conquistado 19 títulos como jogador, sendo uma Libertadores e um Mundial, em 1983. Como treinador, dirigiu a equipe do Grêmio em 411 oportunidades, ultrapassando o Oswaldo Rolla que era o recordista com 383 jogos. O Renato merece, pois além de ser uma grande figura, tem uma história que se confunde, no bom sentido, é claro, com a rica história do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense.

Sua ligação com o Grêmio é muito forte, mas você jogaria no Internacional?

Lógico que minha história com o Grêmio é forte, não se apaga tão facilmente assim, pois foi onde comecei nas categorias de base e conquistei os títulos mais importantes como profissional. Mas o Internacional, apesar da grande rivalidade do Gre-Nal, é um grande clube. Eu não teria problema algum em jogar no Beira-Rio.

Pela seleção brasileira, você atuou sete vezes, e participou do vice-campeonato da Copa América de 1983, quando jogou contra a Argentina, Paraguai e na final,contra o Uruguai. Foi seu melhor momento com a camisa da seleção?

Desde os meus 17 anos eu participei da seleção. Confesso para os leitores do Vozes da Bola que foi um momento importante sim! Sem dúvidas! Mas pela importância da competição, que é a Copa América. Infelizmente, eu machuquei, não pude jogar as Eliminatórias, e mesmo assim, tudo acabou se tornando marcante.

Em 84, houve um desmanche no Grêmio e você foi um dos primeiros a sair, se transferindo para o São Paulo, onde não foi bem, e depois para o Santos. Porque você não rendeu o que poderia nesses dois clubes?


Vaidade, imaturidade e adaptação, para resumir. Mas não só a minha saída, mas como a de outros jogadores do Grêmio, em virtude de um planejamento mal feito pela diretoria da época. Houve um desmanche de uma equipe que havia conquistado os títulos mais expressivos e não era um time caro para os padrões daquele ano. Houve sim, a vaidade de diretores, e isso afetou o clube. Eu fui para São Paulo, um grande clube, mas confesso que tive problemas de adaptação, pois era muito novo na época e, além do mais, tive problemas de relacionamento com o treinador que não vale citar seu nome aqui nessa oportunidade. Mas tenho um orgulho imenso em ter jogado no Tricolor paulista. No entanto, não consegui ser o Paulo Roberto que era.

Apesar do grande lateral que foi, a concorrência pela camisa 2 da seleção brasileira era acirrada com Leandro, Josimar, Édson, Jorginho, Luís Carlos Winck, entre outros. Na sua opinião, porque você não foi aproveitado com a ‘Amarelinha’?

Um dos motivos está respondido na sua pergunta: a concorrência. Havia, naquela época, muitos jogadores de alto nível, craques mesmo, e disputar com eles a titularidade da ‘Amarelinha’ era complicado. Eu tive a oportunidade de jogar na seleção brasileira, mas machuquei em duas ocasiões que foram a Copa América de 89, em que o Sebastião Lazaroni improvisou o Mazinho de lateral-direito, e em amistosos na Europa, quando tive uma grave torção no tornozelo e fiquei no departamento médico por um bom tempo. Eu não reclamo por não ter tido uma sorte melhor na seleção e agradeço a Deus por ter jogado nela, que é o ápice na carreira de qualquer atleta profissional. Mas fui muito prejudicado por não ter mantido uma sequência na seleção devido as contusões que tive, numa época que a camisa 2 era bem representada por grandes laterais.


Como foi jogar no Vasco entre os anos de 1986 e 1989, quando você viveu um grande momento ao lado de Mauricinho, Geovani, Romário, Vivinho, Zé do Carmo, Tita, Dunga, Roberto Dinamite, Acácio, Fernando, entre outros, reencontrando seu futebol?

Um honra. Um clube que eu tenho um enorme carinho pelo que vivi ali em São Januário e pelos grandes jogadores com quem tive a oportunidade de jogar. No Cruzmaltino, conquistamos títulos, fizemos grandes clássicos contra Botafogo e Fluminense, mas contra o Flamengo, considerado até hoje o maior rival, era muito bom vencê-lo. Era um campeonato à parte! – relembrando as palavras do ex-vice de futebol e ex-presidente Eurico Miranda.

Pelo Vasco da Gama, você sagrou-se bicampeão carioca em 87 e 88, em cima do Flamengo. Como foram esses títulos em cima do rival?

Foram maravilhosos. Recordo que chegamos a ficar dez jogos sem perder. Como esquecer o bicampeonato de 87 e 88 em cima deles? Uma prova da nossa hegemonia no Rio e diante do nosso maior rival à época. Isso marcou minha história em São Januário, e até hoje, quando vou ao Rio, os torcedores me reverenciam muito pela história bonita que ajudei a construir no clube. Isso me deixa feliz e sou muito mais feliz em ter escrito meu nome na história deste clube considerado o Gigante da Colina


Mesmo fora de São Januário, você continuou ganhando títulos. Em 1990, no Botafogo, foi campeão carioca (atuava no time do meia Paulinho Criciúma, do zagueiro Mauro Galvão, do goleiro Ricardo Cruz e dos meio-campistas Carlos Alberto Santos e Carlos Alberto Dias). Como foi vestir a camisa alvinegra?

O futebol é um esporte coletivo e você não ganha ou perde sozinho. Tive a felicidade de jogar em grandes clubes e com excelentes jogadores. No Botafogo, justificando a sua pergunta, não foi diferente. Muitos jogadores de nível técnico excelente, e esse conjunto nos fez conquistar títulos importantes pelo Alvinegro, como o bicampeonato carioca em 1989/1990, que ficou marcado na história do clube. Mas tenho orgulho dessa época e saudades em ter vestido uma camisa tão maravilhosa em que o ‘seu’ Emil Pinheiro conseguiu montar um grande time.

Quem foi sua grande inspiração no futebol?

Quando eu era mais novo, eu gostava muito de imitar o Nelinho, que naturalmente, se tornou fonte de inspiração para um jovem que iniciava no mundo do futebol. Quando estava na base do Grêmio, ele veio jogar no clube e eu ficava assistindo os treinamentos dele. Certa vez, tive a oportunidade de conversar com ele e recebi muitas dicas. Nem sei se ele vai lembrar disso se ler essa entrevista, mas absorvi conselhos importante e aprendi muito nesta nossa conversa. Quando subi ao profissional, comecei a imitá-lo e quando cheguei em Belo Horizonte para jogar no Cruzeiro, acabei sendo comparado a ele. Cara, que privilégio ser comparado com meu ídolo em cada gol de falta que eu fazia. Foi muito legal. Mas o mais barato de tudo que envolve nossa história foi quando ele treinou-me no Cruzeiro por um curto período – uns dois ou três meses, se não me engano. Mas falar do Nelinho é motivo de orgulho, não só como jogador, mas como homem e grande ser humano que é.


Quem foram seus melhores treinadores?

Foram o Ênio Andrade, o Valdir Espinosa e o Jair Pereira.

Quem foi o maior lateral-direito do futebol brasileiro na sua opinião?

Nelinho, sem dúvidas, incomparável e o melhor de todos!

Qual ponta-direita era enjoado de ser marcado?

Difícil escolher um, até porque, enfrentei muitos pontas talentosos e bons de bola. Mas eu era um lateral mais ofensivo do que defensivo.

É verdade que em 1993, você chutou uma bola por cima do Mineirão, coisa que só Nelinho e o goleiro Victor, em 2015, haviam feito?

Engraçada essa pergunta. Como já falei, o Nelinho sempre foi meu ídolo e quando cheguei no Cruzeiro, houve essa comparação com ele por vários aspectos: estar no clube, vestir a camisa 2, jogar na lateral-direita, chutar forte e fazer gols. Dessa forma, era inevitável ser comparado com o Nelinho, o que sempre encarei com naturalidade. Mas teve esse fato sim, em que ele havia chutado a bola para fora do estádio do Mineirão depois de a Tede Globo propor o desafio. Chutei a bola para fora do estádio, que acabou se tornando mais uma particularidade com o meu ídolo (risos).

E sua passagem no Atlético Mineiro, como foi?

Foi uma fase excepcional que tive no Galo. Uma honra ter vestido uma camisa tão marcante na história do futebol brasileiro e o clube não conquistava um título desde 1990. Quando lá estive, afirmei que seríamos campeões e foi o que aconteceu, em 1995.

Depois Fluminense, Cerro Porteño-PAR, e Canoas, onde encerrou a carreira. Se arrepende de alguma coisa?

De forma alguma. Não me arrependo de nada e sou grato a Deus por ter sido jogador de futebol, ter jogado em nove grandes clubes do país, conquistado títulos e honrar cada camisa que vesti.


Grêmio, São Paulo, Santos, Vasco, Botafogo, Cruzeiro, Corinthians, Atlético-MG e Fluminense, nesta ordem. Qual desses nove clubes você viveu o melhor momento da carreira e qual deles se arrepende em ter jogado?

Absolutamente. não me arrependo de nada que aconteceu na minha carreira e, muito pelo contrário, agradeço a Deus por ter me dado força e capacidade de jogar futebol e fazer dele minha profissão. Acho que devo muito mais ao futebol, pois joguei em grandes clubes, em alto nível e conquistei muitos títulos. Todos as equipes em que joguei foram importantes, pois em todos, ou quase todos, conquistamos algo importante. Sobre os títulos mais importantes, cada um tem a sua importância, pois cada um tem uma história diferente da outra, ou seja, todos, sem exceção, foram importantes.

Como tem enfrentado esses dias de isolamento social devido ao coronavírus?

Estamos mais adaptados, e esse novo momento de distanciamento social, máscara e álcool em gel, nos dá condições da gente se cuidar mais. Mas tudo isso que está acontecendo no mundo tem sido importante, e eu acho que é um propósito de Deus. O Covid-19 serviu para a gente pensar mais na família, nos amigos, ter mais amor pelas pessoas e aproveitar mais a vida. Eu sou um cara muito esperançoso e acredito que o dia de amanhã vai ser melhor do que o de hoje, independente das circunstâncias. Eu tenho meu momento íntimo com Deus pela manhã e agradeço sempre por ter acordado bem, com saúde e por ter uma família maravilhosa com esposa e filhos que são tudo para mim. Agora com as vacinas, tenho certeza que tudo vai voltar ao normal.

Defina Paulo Roberto em uma única palavra?

Vencedor.

VOZES DA BOLA: ENTREVISTA URI GELLER


Mais do que uma inspiração para artistas marciais, Bruce Lee (1940-1973) motivou pessoas com citações famosas. Uma delas foi: “Seja como a água”, disse ao explicar que uma pessoa deveria contornar problemas como a água faz quando encontra algo em seu percurso. Já Heráclito de Éfeso (540 a.C a 470 a.C), considerado o “Filósofo do Fogo”, defendia a ideia de que o agente transformador é o fogo que purifica o espírito dos homens.

Água e fogo. Dois elemento químicos que sempre fizeram parte da vida de Júlio César da Silva Gurjol, 65 anos, conhecido pela torcida rubro-negra como Júlio César ‘Uri Geller’, um dos maiores pontas-esquerdas da história do futebol brasileiro e do Clube de Regatas do Flamengo.

Do fogo, difícil esquecer do incêndio que reduziu a pó mil barracos na Favela da Praia do Pinto, zona sul da capital fluminense, em 1969, mas que não apagaria o sorriso doce e olhar obstinado daquele menino, que aos 13 anos, à época, não se conformaria em ser menos do que um craque no futebol.

Da água, a lembrança de uma atuação irretocável naquele 06 de abril de 1979, num amistoso ao lado de Zico e Pelé contra o Atlético-MG, cuja renda da goleada por 5 a 1 foi revertida para as vítimas das enchentes em Minas Gerais.

Dos amendoins que eram aquecidos pelo fogo na latinha de ferro construída pelo avó Maria Juripa que ele vendia à tarde, ainda menino, no Jockey Club, na Gávea, era essencial pegar água nas torneiras para lavar os carros estacionados na porta da sede do Flamengo. 

O menino cresceu, evoluiu e se tornou Júlio César Uri Geller. Em 1980, viveu o ponto mais alto da carreira pelo Flamengo com a conquista do Brasileiro, mas recebeu um balde de água fria quando naturalizado argentino no ano seguinte a pedido de César Luis Menotti, técnico da Argentina. Porém, uma entrada desleal de Daniel Passarela, zagueiro do River Plate, poria por água abaixo o sonho do camisa 11 do Talleres de disputar a Copa da Espanha de 1982 pelos atuais campeões da Copa América.


Percorreu o mundo, conheceu cidades, entortou marcadores pelos quatro cantos do Brasil e buscou esconder no futebol moleque a tristeza de quem sofreu muito na vida. Sorrir não era desejo, mas solução! Todavia, das poucas alegrias, a mais intensa e arrepiante foi a da água que Dona Carmita quis ver quando entrou no apartamento que ganhou de presente do filho jogador, a quem chamava, carinhosamente, de Lula, que fora comprado na Vila da Penha, zona norte do Rio, em 1981.

“Ela não quis ver piso, teto, parede, tapetes, janelas, móveis, nada! Ela correu na pia da cozinha, abriu a torneira, molhou as mãos e sorriu para mim, como se dissesse: ‘Obrigado filho, pela água’. Foi isso”, disse emocionado.

Longe do grito da torcida rubro-negra e do tapete verde no qual encenou jogadas, dribles desconcertantes e gols desde quando pendurou suas chuteiras, o ídolo do Flamengo faz sua introspecção de tudo que viveu e traz no coração a certeza de que o início, meio e fim valeram a pena.

E na pele, as marcas visíveis do clube pelo qual foi apaixonado e o nome da mãe, Dona Carmita, sua poetisa, o verdadeiro amor da vida dele, em formas de tatuagens. “Ela poetizou toda minha história”, disse Júlio César Uri Geller, nosso 37° do quadro ‘Vozes da Bola’. Aos leitores do Museu da Pelada, cuidado ao ler a entrevista! Você pode ser entortado pela linda história de superação do gente fina, craque e humilde ponta-esquerda que cansou de atazanar os laterais-direitos. 

Por Marcos Vinicius Cabral

Edição: Fabio Lacerda


O Julinho era bom aluno no extinto Colégio Parque Proletário Número Três, na Comunidade da Praia do Pinto?

Eu sempre fui bom aluno e fui presidente estudantil por um período. Na verdade, era uma escola dentro da Comunidade na Praia do Pinto, e eu sempre fui muito bom aluno. Estudava com seriedade. 

De manhã você estudava, à tarde, vendia amendoins torrados para ajudar ‘Dona’ Carmita, sua poetisa como você costumava chamá-la, nas despesas de casa, e à noite, treinava na Gávea. Como foi sua infância?

De manhã eu ia para a escola, onde estudei dos 7 aos 12 anos. Quando comecei a pular os muros da Gávea, os treinamentos eram das 19h às 20h30 no futebol de salão. Eu levava o Adílio. Aproveitava o horário vago na tarde e vendia meus amendoins torrados e tomava conta dos carros fazendo as duas coisas juntas. Minha avó fez uma latinha especial para mim, e eu variava entre a Gávea e o Jockey Club Brasileiro para ficar vendendo meus amendoins. 

Como eram os confrontos da Cruzada São Sebastião x Favela da Praia do Pinto?

Pesados. Rolava uma disputa acirradíssima em todos os sentidos. Como eu fiquei até meus oito anos de idade, jogava na categoria fraldinha e participei de muitos confrontos contra o Cruzada São Sebastião. Esses clássicos eram, geralmente, na praia, no Posto 11, casa da Cruzada São Sebastião, onde o Adílio jogava, e na nossa casa, ou seja, na Favela da Praia do Pinto, que mandava seus jogos na Praça André Borroa. Era um jogo fora e o outro dentro (risos). Posso te garantir que o couro comia. Para aqueles que tinham pouca habilidade, os bancos atrapalhavam, no entanto, para mim, em especial, era ótimo, pois eu o encarava como mais um marcador e driblava também. Eram jogos muito bons. Que saudades!


Naquele 11 de maio de 1969, mil barracos na Favela da Praia do Pinto, zona sul do Rio de Janeiro, viraram cinzas em função de um incêndio, cuja causa nunca foi revelada. Das milhares de pessoas atingidas pela tragédia, uma em especial, não se curvou ao destino: Júlio César da Silva Gurjol. Essa tragédia foi o motivo que te levou a ser alguém na vida?

O incêndio me motivou muito a dar uma casa com água para minha mãe. Quando ocorreu essa tragédia, as famílias viraram cinzas, literalmente. Para os leitores do Vozes da Bola terem uma ideia, a minha família foi desmembrada. Uns foram para a Cidade de Deus, outros para Manguinhos, alguns para a Cidade Alta, Bangu,Vila Aliança. E nessa época, que nem existia orelhão (telefone público que utilizava fichas) para se comunicar, não sabíamos do paradeiro dos nossos parentes. Minha avó ficou completamente perdida, porque os filhos dela foram cada um para um lugar diferente, e ela nem sabia aonde estavam. Foi terrível e lembro que minha avó falava “Salve a cristaleira, salve a cristaleira”. Viraram cinzas, não só os barracos, mas como a vida de cada morador dali. É muito sério o que a gente está falando aqui. A minha mãe trabalhava no Leblon e foi para Cordovil, lugar que ela nunca havia ouvido falar. Lembro que, ficamos eu e minha família, três dias esperando a oportunidade de pegar uma chave de uma casa. Vagamos por 72 horas ali na parte mais elevada da Cidade Alta no meio daquele lamaçal. Lá, não tinha água, luz, asfalto, comida, nada, nada, nada. Só os prédios. Isso mexeu muito comigo e me motivou a dar uma casa para minha mãe com água. Recordo-me de uma cena impressionante como se fosse hoje e nunca vou esquecer disso quando fui jogar no Talleres da Argentina. Comprei um apartamento para ela, e ao invés dela ver os quartos, a cozinha, as paredes, ela foi direto na torneira para ver se tinha água. Até hoje eu lembro disso (emocionado). É duro, a vida de qualquer ser humano é dura, e a de um jogador de futebol também é. Foi pesado demais. Saía de Cordovil para treinar e pegava trem e duas conduções. O treinamento começava às 14h e saía do Senac ali no Castelo, onde estava estudando, para almoçar em casa e treinar na escolinha comandada pelo ‘Seu’ José Nogueira. Por isso, agradeço ao Flamengo, que viu minha dificuldade de ir treinar e me deixou morar na concentração que era na Praia do Flamengo, 66. Foi lá que eu conheci Zico, Tita, Rondinelli, Cantarelli e outros. Isso foi importante para mim. O Flamengo é a minha vida e tenho na minha perna o escudo do clube tatuado.

Qual a influência do Dominguinhos (ex-atleta do Flamengo) e da Usina de Talentos na sua formação?

Não tive muito contato com o Dominguinhos e o conheci por intermédio do Adílio, do Rui Rei e do Paulo Pereira. Mas ele não era meu treinador. O meu treinador era ‘Seu’ Boletim, que era morador na Praia do Pinto. Vale deixar claro como registro importante nessas páginas escritas sobre grandes jogadores do futebol brasileiro que o Dominguinhos foi extremamente importante para muita gente como o próprio Adílio, Rui Rei, que jogou no Corinthians, Paulinho Pereira, Ernani Banana e tantos outros. Tive contato com ele recentemente, mas não influenciou na minha formação.

Se fechar os olhos consegue lembrar da sua estreia no Flamengo?

Sim, fecho os olhos e vejo minhas estreias no futebol Dente de Leite, ‘Craque na Bola, Craque na Escola’, a chegada de Papai Noel no Maracanã. São cenas muito vivas na minha cabeça. Eu, aos oito anos, fui jogar um Fla-Flu e tem uma história interessante porque nesse dia deveria ter umas 200 mil pessoas lá (Maracanã). E o lateral-direito do Fluminense jogou, pois parece que a mãe dele pagou. Neste dia, eu e o Adílio acabamos com o jogo e o garoto ajoelhou em pleno gramado e pediu pelo amor de Deus para nós pararmos (risos). Mas minha estreia no futebol profissional foi numa quarta-feira à noite, em um Flamengo e Juventus-ITA, e no domingo antes, estava na geral do Maracanã vendo o Fla-Flu. Ao tentar pular para as cadeiras, fui pego, tomei umas porradas da polícia e me levaram para o Juizado Especial Criminal (Jecrim). Três dias depois, estreei como atleta do Flamengo e vi dentro de campo o mesmo policial que havia me batido. Aproximei-me dele e falei: “Você lembra que o senhor bateu em um adolescente, no domingo, aqui no Fla-Flu, que estava tentando pular para as cadeiras?”, perguntei. Ele respondeu: “Claro que eu lembro, eu estava querendo pegar esse garoto há tempos. Mas por quê?”, questionou. “Pois é, aquele garoto sou eu, e agora você não pode mais me bater”, (risos). Nessa estreia, joguei para caramba, e lembro que uma das jogadas que fiz resultou no gol do Zico ou do Doval, não lembro ao certo quem marcou.

Pela Seleção Brasileira você participou da equipe que venceu o torneio Pré-Olímpico em 1976, ano em que a mesma seleção ficaria em quarto lugar nos Jogos de Montreal. O que faltou para ter jogado uma Copa do Mundo?

Ser convocado (risos). Pela Seleção Brasileira só joguei o Pan-Americano, o Pré-Olímpico e as Olimpíadas de Montreal, em 1976, e infelizmente, na época, enfrentamos grandes equipes como as duas Alemanhas, a União Soviética, a Polônia, que foi 3° lugar na Copa do Mundo da Alemanha em 1974. Não eram amadores. Foi maravilhoso, ficamos em 4° lugar atrás da Alemanha Oriental, Polônia e União Soviética. Aliás, na disputa pelo bronze contra a União Soviética, mesmo perdendo por 2 a 0, fiz uma grande partida no Estádio Olímpico, em Montreal. Mas a medalha de ouro era um sonho, já que éramos amadores e nosso ataque era formado pelo ponta-direita Marinho, que faleceu recentemente, e jogou no Bangu, Cláudio Adão, de centroavante, e depois Picolé, da Ponte Preta, que entrou em seu lugar. Eu sempre pela ponta-esquerda. A seleção era bacana e tinha amadores que viraram grandes jogadores em seus clubes como o goleiro Carlos, Edinho, Júnior, Batista, Rosemiro, Mauro Cabeção, Tecão e era comandada por Zizinho. Posteriormente, Cláudio Coutinho assumiu e foi um dos meus melhores treinadores. 

Por que você foi emprestado ao América-RJ, em 1976?

Eu estourei a idade no profissional e tinha lá o Luís Paulo, o Edson, ponta-esquerda na época, e rolava uma discriminação com relação aos garotos que subiam. Era difícil fazer parte de um grupo, sentar na janela do ônibus, puxar uma conversa e essas coisas eram complicadas. Surgiu o América-RJ e quando cheguei lá era maravilhoso, mas também não consegui jogar. Entrava vez ou outra e o ‘Seu’ Tim não me botava com frequência para jogar, e por ser muito meninão, não sabia ser político em determinadas situações. O time era muito experiente com País, Léo Oliveira, Ailton, Mário, Alex e Álvaro. Não consegui jogar. Não era colocado em campo. 

Como você foi parar no Remo no ano seguinte?

Depois do América-RJ, voltei para o Flamengo e logo em seguida fui emprestado para o Remo-PA. Consegui jogar. Era o que eu precisava. E nessa minha passagem, tive a felicidade de ter um treinador chamado Joubert que sempre falava nos dias de jogos assim: “Se você não driblar eu te tiro”. Isso foi muito bacana para mim, já que por ser driblador, eu era muito discriminado. Mas foram dois anos muito legais. Fui o melhor ponta-esquerda da temporada (Campeonato Brasileiro). Depois voltei ao Flamengo e fui extremamente feliz em 1979, 1980 e 1981.

Logo na estreia contra o Cruzeiro, você deu um baile em Nelinho, lateral-direito da seleção brasileira, que, em 1972, havia despontado para o futebol mundial jogando pelo Clube do Remo. O que pode nos contar desse jogo?

Esse jogo me marcou muito. Lembro que cheguei numa quinta-feira ao clube, e o seja bem-vindo foi “tem que ganhar do Cruzeiro por 4 a 0 no Campeonato Brasileiro”. Veja bem, estamos falando de um timaço do Cruzeiro, com Raul, Nelinho, Erivélton, Flamarion, Revetria, Joãozinho e treinado por Yustrich. Mas o Remo-PA precisava meter 4 a 0 para continuar na competição e era na minha estreia. Esse dia foi meu, de verdade! Com todo respeito a Nelinho, que foi um dos maiores laterais do futebol brasileiro, mas naquele dia eu estava impossível (risos). Mas deu tudo certo, nos classificamos e ficamos em 14° lugar numa competição com 62 times. Valeu muito a pena esse jogo e me orgulha ser considerado o maior camisa 11 da história do Leão Azul.

Em um amistoso (abril de 1979), o Flamengo venceu por 5 a 1 o Atlético-MG no Maracanã. Na partida que teve a renda revertida para as vítimas das enchentes em Minas Gerais, você acabou com o jogo. Quais são as lembranças daquela noite que uniu Pelé e Zico?

São jogos que nos marcam e eu tive muitos outros jogos que me marcaram. Esse contra o Atlético-MG foi mais um e na época não existia esse negócio de televisão como tem nos dias de hoje. O meu maior jogo, na minha opinião, não foi nem esse contra o Atlético-MG, mas um contra o Barcelona, no Estádio Ramón de Carranza, em Cádiz, na Espanha. Driblei a defesa toda dos caras e fiz um gol na vitória por 2 a 0, em 1979. Naquela época, nós íamos à Espanha e França disputar torneios e como ganhávamos tudo, não éramos mais convidados (risos). Sobre este jogo contra o Atlético-MG, ficou marcado, pois aquele menino que vendia amendoins e era flanelinha nos portões do clube, formou um ataque com Zico e Pelé. Era um amistoso por uma causa nobre e isso acabou sendo muito legal.


Quais as suas recordações do título do Campeonato Brasileiro de 1980?

Sem falsa modéstia, a gente estava tão acostumado a ganhar tudo que o primeiro título brasileiro na minha opinião foi o mais importante de todos que o Flamengo já ganhou. As pessoas falavam que éramos um time caseiro, que só ganhávamos Cariocas e colocar a cabeça fora dessa janela territorial foi importante. Mas a recordação daquele time era de que todos, formados na Praia do Flamengo 66, virou uma família. Mas Cantarelli, Leandro, Rondinelli, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Nunes e eu, todos aprendemos os fundamentos com ‘Seu’ Zé Nogueira, com Bria, Joubert  Meira. Isso foi muito marcante nesse título de 1980.

Você jogou no Talleres da Argentina, onde encantou os hermanos a ponto de se naturalizar argentino a pedido do treinador César Luis Menotti. Por que não jogou a Copa da Espanha em 1982, já que se naturalizou para isso?

Ia jogar a Copa do Mundo, mas tomei um carrinho covarde e tive fratura e ruptura dos ligamentos dos tornozelos. Operei duas vezes, não conseguia voltar, e o Talleres me vendeu ao Grêmio. No Sul, também não joguei, e um ano em que fiquei lá, o time acertou e acabou sendo campeão do mundo, no qual cheguei a jogar algumas partidas formando o ataque com Tarcísio e Baltazar. Mas como jogava pouco, fui emprestado ao River Plate.

Emprestado para o River Plate, em 1982, você participou de um jogo somente, um amistoso contra o San Lorenzo. O que houve?

Nos vinte e poucos dias em que fiquei lá, atuei apenas uma vez. E com a chegada do novo treinador, chamado Ramos Delgado, que inclusive jogou no Santos, ele não me quis. Mas fiz amizade com a rapaziada e um grande amigo chamado Alberto Tarantini. 

Como foi ter reencontrado o amigo Luizinho das Arábias e ter jogado com ele no Fortaleza, em 1983 e 1986?

Caramba, foi uma agradável coincidência ter reencontrado o Luizinho e ao seu lado ter participado de um Campeonato Cearense inteiro. Isso porque no Flamengo ele entrava esporadicamente, já que tinha Cláudio Adão e depois o Nunes. Mas ele entrava e deixava sempre sua marca de artilheiro. Quando eu cheguei no Fortaleza e comecei a conviver com ele novamente, já que passamos a morar no mesmo prédio, conheci o extraordinário ser humano que ele era, a ponto de confidenciar para vocês que nunca vi um coração tão bom na minha vida. E jogando com ele no Fortaleza, fiquei surpreso, pois para mim, ele era apenas um bom definidor. Ledo engano. Luizinho, além de um finalizador nato, era armador e canhoto. Foi um dos maiores centroavantes que eu tive a oportunidade de ver jogar na minha vida. Que pena que não está mais aqui conosco, mas foi um cara incrível dentro e mais incrível ainda fora de campo.

Você foi a personificação de Garrincha e parou em 1990. Que balanço faz das passagens pelo Athlético Paranaense, Grêmio e Vasco?

Eu tenho três ídolos no futebol: Zico, Garrincha e Edu que jogou no Santos. O Zico, vamos colocar parênteses nas quatro letrinhas do seu nome porque foi simplesmente ‘The Best’. O Garrincha e o Edu foram motivacionais pelo que fizeram em campo. O Mané driblava só para um lado e essa referência de aplicar o drible para o mesmo lado eu peguei dele. Fiz muito isso naquele pequeno espaço do campo que eu chamava de ‘Zona da Morte’. Já o Edu, pela facilidade de jogar e da leveza em campo. Sobre as passagens, eu as considero importantes, já que vesti camisas de gigantes do futebol brasileiro, mas não fui feliz, mesmo conquistando títulos. Já fui jogar no México, nos Estados Unidos e fui muito mais feliz. No Athlético Paranaense, joguei poucas partidas. A mesma situação aconteceu no Grêmio. No Vasco foi diferente. Eu tenho muito orgulho de ter vestido aquela camisa e jogado com Roberto, um grande ídolo do clube. Pena que fiquei três meses apenas, mas tempo o suficiente para conhecer a grandeza e respeitar o Vasco da Gama, antes de parar em 1990.

Na sua opinião quem foi o lateral que melhor te marcou?

Alguns marcadores me deram dor de cabeça e outros eu dei um pouco de trabalho. Mas dois laterais, em especial, faço questão de mencionar: Edivaldo, do Fluminense e Brasinha, do Campo Grande. O Edivaldo, desde a época de Dente de Leite, travávamos muitos duelos nas preliminares do Maracanã. O Brasinha era um ‘senhor’ lateral. Eram laterais velozes, inteligentes, habilidosos e que foram os melhores que me marcaram.

E o melhor ponta-esquerda do futebol que você viu jogar?

Edu. Ele foi tudo. Sem palavras para descrevê-lo.

Hoje, cada vez mais as equipes brasileiras vêm adotando esquemas com três zagueiros e alas. Você acredita ser possível armar um time com pontas de ofício?

Sabe por quê não existem mais pontas? Porque não existem mais laterais. Os laterais acabaram, e os pontas, automaticamente, acabaram também. Hoje, os treinamentos são diferentes, o tempo de cada treino é cada vez menor, o futebol moderno exige encurtamento de espaços e não há condições de pontas jogarem em virtude disso. Talvez, se voltarmos ao início de tudo, em que haviam laterais e pontas com excelência em cada clube, a gente possa trazer de volta estes jogadores ensaboados que buscavam a todo custo a linha de fundo ou até mesmo a diagonal para entrar na grande área. Aliás, muito tempo que não existem mais pontas, infelizmente. 

A título de curiosidade, como surgiu o apelido Uri Geller?


Foi aquele paranormal israelense, naturalizado britânico, que se tornou famoso na década de 1970 em programas de televisão que realizava demonstrações de seus poderes paranormais entortando talheres, e eu, por coincidência, estava entortando corpos jogando no Flamengo. Hoje, quase ninguém me chama de Júlio César e sim de Uri Geller (risos).

Como tem enfrentado o isolamento social devido ao Covid-19?

No começo, eu sofri muito, pois tive uma depressão profunda e fiquei por muito tempo em isolamento social no meu apartamento em Copacabana. Isso acabou comigo. Voltar à normalidade está sendo difícil. Peguei meu carro e vim para Aracaju, onde estou desde o início da pandemia. Há dois meses parei meu último remédio, e graças a Deus, estou muito bem, esperando as coisas normalizarem para eu voltar às atividades que eu desempenhava no clube.

Como você definiria Júlio César Uri Geller em uma única palavra?

Júlio César Uri Geller numa única palavra? Boa pergunta! Vou colocar duas palavras para minha autodefinição: loucura e coração! Loucura pelo meu modo de jogar, por tudo o que consegui depois de uma tragédia e tantas dificuldades na vida. E coração por fazer tudo com a alma pensando que minha carreira sempre foi em prol dos meus familiares

VOZES DA BOLA: ENTREVISTA ABEL BRAGA


Resiliência, valentia e superação. São três palavras que definem um herói. Mas não os das histórias em quadrinhos, dos filmes ou dos desenhos animados, e sim, heróis que vestiram uma camisa de um time de futebol, puseram o short, colocaram os meiões, calçaram as chuteiras colocando o coração na ponta delas.

Herói este, dentro das quatro linhas, e que não usa capa e que vence os adversários mais temidos do que os vilões. Seus superpoderes são os gritos advindos das arquibancadas. No futebol brasileiro, poucos chegaram a este patamar definido lá longe, na Antiga Grécia, nos séculos XII a IX a.c. Poucos foram, contudo, unanimamente observados sob este arquétipo. Um deles foi Abel Carlos da Silva Braga – atualmente treinador do Lugano da Suíça – que sempre se superou em 14 anos como jogador profissional.

Treinador recordista na era dos pontos corridos no Brasileirão no ano passado com nove vitórias consecutivas pelo vice-campeão Internacional, Abel Braga tem um passado como jogador que vale a pena ser recordado, exercício que serve para contextualizá-lo na memória do futebol brasileiro.

O tocador de pianos e apreciador de bons vinhos foi grande. E sua grandeza atravessou terras, céus e mares. Há 8.936 quilômetros de distância, o zagueirão fez história na França pavimentando a estrada transoceânica: Abel Braga foi jogador do Paris Saint Germain, entre 1979 a 1981, sendo firme, ríspido e viril. Típico zagueiro raiz que todo time precisa ter e que o treinador adora.

Abelão foi o primeiro zagueiro que teve coragem de abrir a porta do mercado francês depois que Joel, tricampeão mundial com a seleção, esteve por lá na temporada 1971/72 sem muito alarde, participando de uma Copa do Mundo, a de 1978, na Argentina.

Por incrível que possa parecer, Abel desafiou a surrealidade dos acontecimentos e ceticismo dos olhares, pois habilidade com os pés não faltava para o zagueirão da camisa 3. Na tenra juventude, ele se arriscava como atacante, até encontrar um lugar na zaga do Fluminense, em 1968, época na qual o zagueiro tinha de ser zagueiro mesmo, sem gracinha ou firula. A missão era desmontar a artimanha dos atacantes, roubar a bola e passá-la logo em seguida ao meio-campista mais próximo para que a jogada fosse iniciada e terminada em perigo de gol.

No Tricolor do dramaturgo Nelson Rodrigues, Abel Braga encenou cenas de ‘A Vida como Ela é’ numa gangorra da titularidade e reserva onde sempre fez Abel subir e descer pelas mãos de Zezé Moreira e Carlos Alberto Parreira, seus treinadores.

Emprestado ao Figueirense para disputar o Brasileirão de 1973, na estreia do time catarinense no principal campeonato nacional, uma edição que contou com 40 participantes, virou ídolo. Mas o Rio de Janeiro o abraçou quando voltou, e os ‘geraldinos e arquibaldos’, bordão do craque da resenha esportiva, Washington Rodrigues, sorriram quando colocou as cores que traduzem tradição – verde, branco e grená. No Fluminense, venceu batalhas épicas nos títulos estaduais conquistados em 1971, 1973 e 1975.


Após o terceiro triunfo, o Vasco da Gama viu com bons olhos seu futebol e o contratou para formar um quarteto de defensores especial. Em São Januário, Abel Braga foi treinado por Orlando Fantoni, e a equipe cruzmaltina de 1977 usou o jogo defensivo para quebrar um jejum de seis anos sem levantar a taça do Campeonato Carioca. O sistema defensivo que contava com Abel ficou conhecido como ‘Barreira do Inferno’ quando o Vasco sofreu apenas cinco gols no estadual. Orlando Lelé, Abel, Geraldo e Marco Antônio formaram um sistema defensivo de respeito e dando respaldo e tranquilidade ao goleiro Mazzaropi. A ‘Barreira do Inferno’, obteve um recorde histórico: nada menos do que 16 jogos consecutivos sem sofrer gol.

Não, não eram vermelhos, não eram párias por defender o comunismo ou algo nesse sentido, tampouco eram contra a fé cristã. Apenas formavam uma defesa segura e que jogava duro, muitas vezes, exagerando na rispidez com que tratavam atacantes rápidos, dribladores e abusados, desinibidos e sem medo de buscar o gol, como Nilson Dias e Paulo Cézar Caju, do Botafogo, Doval e Rivellino, do Fluminense, Zico e Cláudio Adão, do Flamengo.

Em 1981, foi para a Toca da Raposa jogar pelo Cruzeiro e retornou ao Rio para incrementar o plantel do Botafogo. Entretanto, lesões em sequencia afetaram suas atuações no campo e o fôlego de pulmões que respiravam raça. A aposentadoria veio quatro anos depois, com a camisa azul do Goytacaz, de Campos, justamente onde iniciou a carreira de treinador.

O Vozes da Bola dessa vez é com o boa praça Abel Braga que conta um pouquinho da carreira do grande jogador de futebol que foi para os leitores do Museu da Pelada.

Por Marcos Vinicius Cabral

Edição: Fabio Lacerda

Como foi o início de sua carreira?

Foi inesperado. Morava na Penha, bairro da Zona Norte do Rio, jogava bola em um time com amigos da minha idade Eu tinha 14 para 15 anos. O time era muito bom. Foi uma surpresa grande quando fui levado por um amigo do meu pai para o Fluminense. Ele me viu jogando de atacante e gostou. Quando chegamos nas Laranjeiras, ele avisou ao Pinheiro que eu era atacante. Quando ele me perguntou em qual posição jogava, eu respondi que era zagueiro. Certa vez, eu treinando na Portuguesa, de atacante, como fazia nas peladas, faltou um zagueiro e não teria treino. Então, fui para o miolo de zaga para que o treino não fosse cancelado. Gostei da posição. O pessoal da Portuguesa pediu meus documentos para me inscrever no campeonato. Estava sem meus documentos e não fui inscrito. Não voltei para à Ilha do Governador. Meu negócio era estudar e jogar bola no meu bairro. Foi assim que tudo começou.

Relate para os leitores do Vozes da Bola sobre sua chegada ao Fluminense. Deu frio na barriga adentrar os portões imponentes das Laranjeiras em 1968?

Frio não deu, até porque era muito novo, estava com 15 anos e sempre fui – apesar da idade – tranquilo. Mas confesso que fiquei ressabiado na hora que eu falei que era zagueiro quando o Pinheiro me perguntou a minha real posição. Porque o amigo do meu pai disse que eu era atacante, que fazia muitos gols. E o Pinheiro, lendário zagueiro tricolor, era meio grosso, né? Mas no final, graças a Deus, deu tudo certo.

Você foi integrado ao elenco profissional do Fluminense, em 1971, ano em que conquistou seu primeiro título do Campeonato Carioca, repetindo este feito em 1973 e 1975. Como foram essas conquistas?

Foram importantes. Em 1971, já havia tido o torneio de Cannes na França, e eu treinava no profissional. Acabei entrando em alguns jogos. Os caras saíam dizendo estar machucados, mas era para eu ganhar ‘bicho’ com a participação nas partidas. Isso foi legal para eu conhecer o lado bacana do futebol mesmo com 19 anos de idade. E ser campeão naquela idade foi incrível. Era um time muito qualificado, não como a Máquina Tricolor, mas uma equipe equilibrada. Em 1973, também era um bom time, mas o de 1975 era o bicho, pois os caras brincavam de jogar bola. Então, posso dizer que foram conquistas merecidas e que me deram um amadurecimento muito bom, pois conviver com Denilson, Galhardo, Assis, Silveira, Manfrini, Lula, foi extraordinário. O Fluminense tinha um timaço.

Em 1973, você foi emprestado ao Figueirense para disputar o Campeonato Brasileiro daquele ano, tendo atuado em 18 partidas pelo clube catarinense e marcado um gol. Como foi este momento na Ilha das Bruxas?

Posso dizer que esse empréstimo foi muito bom. Por quê? Porque eu jogava muito pouco e havia a possibilidade de disputar um Campeonato Brasileiro. Tive a oportunidade de jogar 18 partidas. Foi no ano de inauguração do estádio Orlando Scarpelli. Florianópolis era e continua sendo uma cidade fantástica e havia a rivalidade entre Figueirense e Avaí. Foi muito bom para a minha carreira e gostei muito do clube. Vale frisar nesta entrevista que as pessoas que comandavam o clube naquela época eram sérias, honestas e responsáveis. Foi muito bom! Muito bom mesmo.


Apesar de sempre reverenciado por treinadores e cartolas tricolores que reconheciam sua bravura em campo, mas não lhe davam oportunidade nos times titulares, é verdade que você chegou a pensar em abandonar os gramados?

Não, nunca pensei em parar. Na verdade, estava com uma ansiedade muito grande porque havia saído em 1973 para jogar no Figueirense. Eu não podia ficar sem jogar por muito tempo no Fluminense. Mas ali, o negócio já estava sério, já tinha sido campeão em Cannes e capitão da Seleção Brasileira, campeão pré-olímpico, jogando as Olimpíadas de 1972. Não pensava jamais em abandonar o futebol. Só pensava em jogar, e se pintasse uma proposta, sairia para seguir meu caminho.

Certa vez, em 1977, você contou ao repórter Maurício Azêdo que ser titular do Vasco era seu objetivo. Tanto que quando acabava os treinos, com a ajuda de Roberto Pinto, então auxiliar do treinador Orlando Fantoni, e dos preparadores físicos Antônio Lopes e Djalma Cavalcanti, permanecia cerca de uma hora no campo exercitando os fundamentos como saltos para melhorar a impulsão. É verdade que você chegou a usar um colete de chumbo nesses treinamentos? Como foi isso?

Essa história não foi bem assim. Vou te explicar como aconteceram as coisas. No Vasco, eu estava jogando e não queria dar chance para ninguém tomar minha posição. Já havia sido campeão Pré-Olímpico, de Cannes, e tinha uma certa bagagem na carreira. Em 1976, eu fui muito bem. Em1977, no primeiro dia de treino, o Fantoni falou que a zaga dele seria o Geraldo, que veio do América junto com o Orlando, o Renê, e que eu poderia procurar outro clube. Virei para ele e disse que não faria isso, pois afirmei que eu seria o titular da zaga do Vasco. E falei para ele que trabalharia e mostraria na prática o merecimento pela titularidade. Dito e feito. Continuei trabalhando e foi muito rápido, porque logo depois disso, fomos para uma excursão no Nordeste. Entrei no primeiro jogo, atuei alguns poucos minutos, mas fui bem. No segundo jogo já comecei como titular e nunca mais saí do time. Depois, o professor Orlando Fantoni teve a hombridade de reunir o grupo no centro do gramado de São Januário antes de começar o treino e falou: “Olha, eu havia falado para o Abel procurar outro clube e agora aqui comigo no comando da equipe é ele e mais dez”. Então o cara foi extremamente correto. Naquela época, treinava-se muito, principalmente com Djalma Cavalcanti, Antônio Lopes e Roberto Pinto, que orientavam demais. Agora, Fantoni foi uma das criaturas mais carismáticas que eu já conheci, uma grande pessoa e um excelente orador, um cara que colocava uma equipe em campo, e o time entrava numa motivação inacreditável. Poucas vezes vi isso no futebol.

Qual o clube que o zagueiro Abel gostava de enfrentar e por quê?

O clube mais gostoso de enfrentar na época era o Flamengo. A rivalidade sempre existiu, pois o Flamengo tinha um super time, e não bastasse a rivalidade e o super time, Flamengo e Vasco eram clubes de maiores torcidas no Rio e no Brasil. Cara, já cheguei a jogar o clássico com mais de 160 mil pessoas como na decisão de 1977. Assim, posso te afirmar, porque eu estive lá dentro do campo, e é incrível, fantástico, surreal, e não se tem esse número de torcedores em lugar nenhum do mundo. Era o maior clássico, sem dúvidas. Mas até hoje, passados tantos anos, existe a rivalidade, mas não como na minha época.

No Vasco da Gama, onde se sagrou campeão carioca novamente, você se firmou como titular e um dos zagueiros mais respeitados do futebol brasileiro. Como você avalia sua passagem por São Januário?


Minha passagem pelo Vasco da Gama foi espetacular. Posso afirmar que foi o momento mais feliz que tive. Recordo-me que, ao chegar no Paris Saint-Germain, a camisa não tinha o peso que tem hoje, além é claro, de ter absorvido a cultura do país. Minha passagem pela França e o crescimento cultural, eu agradeço ao Vasco da Gama. Foi em São Januário que tive as maiores conquistas. Fui algumas vezes convocados para a seleção na melhor fase da minha vida. Foi no Gigante da Colina que criei uma identidade muito grande e bonita ao mesmo tempo. No Vasco, fui um jogador com mais alma do que técnica.

Em 1978, na decisão do Carioca, o Rondinelli fez o gol do título após cobrança despretensiosa de escanteio do Zico. Você não levou fé que o gol poderia sair naquela reta final do jogo? O Deus da Raça rubro-negro subiu às suas costas, e você, alto e forte, ficou cravado no chão. O que aconteceu naquele momento chave do jogo?

É gozado que a maneira que foi cobrado o escanteio. Quando o Zico pegou a bola muito rápido e ninguém esperava que o Rondinelli viesse lá de trás. Quando tem algo inesperado como aquele lance, a bola caiu nas minhas costas. Tentei alcançar e não consegui, até porquê seria mais fácil, naquele momento, o Orlando Lelé dar dois passos para frente para pegar impulsão, ao invés de eu dar dois passos para trás, né? Mas o Rondinelli foi extremamente feliz e numa impulsão incrível, apesar de não ser um zagueiro alto, chegou no tempo certo da bola. Lembro que eu e o Orlando ficamos batidos na cobrança do escanteio que culminou no gol do Rondinelli, Ele surgiu como um elemento surpresa se aproveitando da rápida cobrança de escanteio do Zico.

Abel, fale um pouco sobre a admiração que você tinha do ex-presidente do Vasco, o saudoso Agathyrno Silva Gomes (1927-2015), que o considerava um líder nato?

Esse presidente, apesar da ótima relação que eu tinha com ele, foi uma pessoa que me marcou profundamente e marcou a minha vida. Eu era um jogador desacreditado e que pouco era utilizado nos jogos, mesmo tendo sido campeão em Cannes, Pré-Olímpico e disputado Olimpíadas, ele me deu valor. Ele viu em mim um atleta que poderia ajudar, sobressair, e foi o que aconteceu. Então o Agathyrno Silva Gomes não foi só um grande presidente para o Vasco, mas sobretudo para mim em particular. Depois tive uma relação muito bacana com o Antônio Soares Calçada, mas o Agathyrno foi o cara que impulsionou a minha carreira e acreditou no meu futebol e identificação minha com o clube. Há mais de 40 anos eu corto o cabelo no mesmo lugar e volta e meia sempre falamos do seu Agathyrno, recordando das coisas boas, da nossa convivência e o meu sentimento é de agradecimento e carinho. Aonde ele estiver, que Deus o tenha bem.

Você esteve com a Seleção Brasileira na Copa do Mundo da Argentina, em 1978, mas não entrou em campo. Claudio Coutinho, à época treinador do Flamengo, preferia o miolo de zaga com Oscar e Amaral. Pela fase que atravessava no Vasco, acha que teria condições de ser titular?

Realmente, eu estava em uma fase muito boa, poderia ter jogado e me saído bem, mas o Oscar e o Amaral estavam em grande fase. O Oscar, inclusive, não só esteve irretocável naquela Copa do Mundo mas na de 1982 também, na Espanha. Era um zagueiro incrível, simples e que não falhava. Já o Amaral era excepcional. Os dois se completavam. Eu não tenho o que reclamar! Apenas agradecer pela oportunidade que me foi dada de estar numa Copa do Mundo, né? Sobre ser ou não titular, é opção do treinador, e a escolha dele é soberana. Devemos respeitar.

Após três anos da sua chegada ao Vasco da Gama, você fez as malas e foi jogar no Paris Saint-Germain, onde marcou nove gols. Como surgiu o interesse do clube francês e como foi ter sido um dos primeiros zagueiros do futebol brasileiro a jogar lá?

É bom dizer que a boa fase que vivi no Vasco foi fruto do meu trabalho e acabou sendo essencial para ir à Copa do Mundo em 1978 na Argentina. O interesse surgiu quando o Jean-Michel Larqué, ex-meia da França, de 1969 a 1976, e à época, treinador do PSG, me viu jogar. Gostou e me indicou. E isso foi muito bom. Cheguei a marcar alguns gols também. Mas eu acho que fui, como você mesmo falou, o primeiro zagueiro brasileiro a jogar no PSG. Os três que haviam ido antes de mim, o Luizinho, que jogou no Botafogo foi atuar no Lille, e o Paulo Cézar Caju e Jairzinho, jogaram no Olympique de Marseille. Fui o primeiro zagueiro brasileiro a jogar no PSG. No entanto, mais legal do que ter sido o primeiro a jogar lá, foi a experiência que tive de viver na Europa, conhecer outra cultura, aprender costumes e língua diferentes do Brasil. Foi a realização de um sonho. Mas cumpri dois dos três anos de contrato em razão de uma contusão grave que tive no meu joelho que me atrapalhou. Minha volta ao Brasil deu-se em virtude da contusão que me acompanhou até o final da carreira.

Em 1981, você retornou ao Brasil, para defender o Cruzeiro. Logo de cara, uma cirurgia no joelho o afastou dos gramados por dois meses, e quando recuperou-se deu nova cara à zaga com reflexos positivos em todo o time. Como foi esse período na Toca da Raposa?

Eu tenho uma gratidão pelo Cruzeiro enorme que vocês não têm ideia. Eu havia me machucado em Paris, e diga-se de passagem, fui um dos primeiros atletas a realizar uma artroscopia. Voltei a jogar em15 dias. Lembro que teve um jogo em um lugar longe, e estava muito frio no campo, congelado mesmo. Nesse jogo, teve um lance que obriguei o atacante a levar a bola para o lado que eu queria e no combate ele bateu na minha perna e me machucou de novo. No Cruzeiro, eu joguei uns dois jogos, e a perna começou a ficar fina, pois eu poupava a perna esquerda. Novamente, passei por uma intervenção cirúrgica. Depois me recuperei, treinei e joguei com caras sensacionais como Nelinho, um dos meus melhores amigos que fiz no futebol, o goleiro Luiz Antônio, Carlinhos Sabiá, Edu Lima, entre outros. Eu sou grato ao Cruzeiro e ao Felício Brant, o presidente do clube, onde me senti muito bem. Foi um dos melhores ambientes onde trabalhei.


Ainda sobre o Cruzeiro, ironicamente, você se tornara homem de confiança do ex-craque Didi, o mesmo técnico dos tempos de Fluminense que não lhe colocava para jogar. Como era sua relação com o inventor da Folha Seca?

No Fluminense, todo ano os dirigentes falavam assim: “Ano que vem é o teu ano, é a sua vez, coisa e tal”. Contrataram o Pescuma e muitos outros jogadores, só que eu achava que jogava mais do que eles (risos). Mas nunca tive problemas com o Didi e foi um prazer enorme ter trabalhado com ele no Cruzeiro, porque me ensinou muita coisa. Vasta experiência, muita tranquilidade para explicar e falar, e foi legal demais este aprendizado. E a convivência com ele me ajudou no início da minha carreira de treinador. Algo que aprendi com o Mestre didi eu coloquei em prática ao ser técnico.

Você era um zagueiro vigoroso, sabia usar seu porte físico para intimidar os atacantes. Porém, alguns atacantes deram muito trabalho a você. O Reinaldo, do Atletico-MG, era um deles. O lençol que ele deu em você na pequena área e fez o gol no Mineirão no Campeonato Brasileiro de 1976, foi o drible mais desconcertante que você levou?

Cara, aquele gol do Reinaldo ficou sendo um dos mais bonitos da carreira dele e do Mineirão, sabia? Eu não me sinto mal com isso não, cara (risos). É simplesmente Reinaldo de quem estamos falando, que está entre os dez maiores jogadores do futebol brasileiro de todos os tempos na minha opinião. Uma pena que seus joelhos começaram a lhe causar problemas e ser desconfortável para ele jogar plenamente. Reinaldo foi gênio. Orgulho-me muito em tê-lo como amigo. Mas, mesmo enfrentando gênios do futebol, nunca fui de dar porrada. Jogava duro, lógico, mas acabei sendo acusado por alguns que falaram besteiras por aí. Até hoje, o Zico, outro gênio, é um dos caras que mais me defendem quando tocam nesse assunto. Mas vou fazer o quê, cara? Esses caras faziam gols assim em todo mundo e em cima de qualquer zagueiro. O Reinaldo, como exemplo citado aqui na pergunta, fez um gol espetacular em cima de mim. Eu jamais poderia imaginar que ele dominaria a bola daquele jeito, naquela posição e circunstância, me dar um chapéu, puxar a bola para si e finalizar no único lugar que a bola poderia entrar. Foi inacreditável!

Na sua passagem pelo Cruzeiro, teve momentos em que você reivindicava aumento para jovens talentos e discutia com cartolas e comissão técnica um regime mais justo nas concentrações. Ali, já desabrochava o treinador de sucesso que você seria no futuro. Isso já passava pela sua cabeça?

Eu sempre fiz reivindicações. No Vasco, jogador jovem renovava contrato e eu pedia ao presidente para não dar o dinheiro das luvas e sim um apartamento. Mas isso era uma coisa pessoal minha que agora estou falando. Mesmo não sendo gestor de carreira de ninguém. Mas eu soube administrar bem meu dinheiro e achava um pecado o jogador desperdiçar tanto dinheiro ao invés de comprar uma casa ou apartamento. O cara comprava um carrão. Mas na minha época era muito diferente da atual, né? Mas eu sempre tive isso e continuo tendo essa preocupação com meus jogadores. Recentemente, esse pessoal que acabou demitido do Internacional por redução de folha, eu liguei para uma das pessoas que eu não vou citar por ética, é claro, e ele falou: “você lembra que eu fui aumentado pelo presidente fulano de tal, e ele falou que foi você que pediu para me aumentar(risos)”. Não era jogador, não era nada, era um integrante do departamento de futebol. Eu achava que ele fazia muito e ganhava pouco, entendeu? Mas era uma coisa minha. Até hoje sou assim e não mudei nada.

É verdade que o senhor costumava dar uma porrada no atacante logo no início da partida sabendo que o árbitro não teria pulso para expulsá-lo e estragar o jogo?

Quem criou isso foi o Moisés, mas não tinha nada disso não. Claro que, se pudesse dar ‘umazinha’ para espantar um pouquinho era legal, né? (risos). Mas nunca fui de machucar ninguém, dar porrada para impor respeito, nada disso. Quando era zagueiro, quem que eu machuquei? Ninguém. Não podia também ser meigo, carinhoso, amoroso com um tamanho desses. Mas eu era um jogador normal, mas extremamente inteligente jogando. Usava bem os dois pés, tinha uma percepção elevada e sabia o que os atacantes iam fazer quando a bola era metida pelos meias. Eu me antecipava e chegava sempre na frente. Mas tive a sorte em ter grandes caras que me ensinaram muito como Pinheiro, me dando conselhos de posicionamento e preencher os espaços vazios. O Assis, que falava para mim em 1969, 1970: “Abel, quando você vir que o meia vai lançar para o atacante, dê uns três passos para trás que você vai chegar antes dele”. E até hoje eu falo isso para os meus zagueiros, sabia? E por ter ouvido as dicas na carreira, eu não precisava dar pontapé em nenhum adversário. Às vezes, acontecia, mas não era com o intuito de machucar. Quer um exemplo? O Luisinho Tombo do América era um. Você podia dar dez porradas neles que ele continuava partindo para cima de você.

Dentre os zagueiros que você jogou, qual foi aquele que você considera o grande parceiro de miolo de zaga?

O meu grande parceiro de miolo de zaga foi o Geraldo. Não tem como ser outro. Apesar de ter jogado muitas partidas bem ao lado do Gaúcho e do Renê, mas o Geraldo foi marcante pelo tempo em que jogamos juntos e pelas conquistas. Acabamos nos dando tão bem, mas tão bem, que de tanto a gente se entender, me tornei padrinho do filho dele. Lamentavelmente, teve uma morte horrível. Éramos vizinhos de paredes, no meu primeiro apartamento na Ilha do Governador quando casei. Mas joguei com tanta gente boa, como o Amaral que jogou na seleção.


Quem foi sua grande inspiração no futebol?

O jogador que eu gostava muito era o Brito, mesmo não jogando contra e nem a favor. Mas acabei fazendo uma amizade muito grande com ele. Era um zagueiro que eu apreciava para caramba. Inclusive, no Cruzeiro, na saída do Didi do comando da equipe, eu e Nelinho, outro cara que eu me dava muito bem, nós fomos à direção do clube e pedimos para colocar o Brito como treinador e ele comandou a equipe. Infelizmente os resultados não vieram. Aí o presidente colocou o Yustrich para castigar a gente (risos). Mas eu me espelhava no Brito, que era ídolo da torcida do Vasco e isso mexeu comigo e me fez ter essa admiração toda por ele.

Qual clube você gostaria de ter jogado no Brasil e não jogou?

Não teve essa coisa de não ter jogado nesse ou naquele clube. Quando eu estava acertando com o Paris Saint-Germain, no mesmo dia veio o convite do Corinthians, mas como eu já estava querendo jogar na Europa, viver em outro país, aprender uma cultura diferente e um outro idioma, segui para a Cidade Luz. Para um jogador que ficou oito anos no Fluminense, quatro no Vasco, dois no Botafogo, dois no PSG e um do Cruzeiro, vou querer mais o quê? Vou querer mais nada, cara! Para o jogador que eu fui, ter jogado nestes clubes foi muito bom, e antes de encerrar a carreira, ainda joguei no Goytacaz por apenas três meses porque o joelho não permitia ir além.

Como tem enfrentado esses dias de isolamento social devido ao coronavírus?

Eu gostaria que as pessoas encarassem como eu encaro. Fiquei nove meses aqui no Rio desde o início da pandemia sem problema nenhum e quando isso tudo começou, em março de 2020, passei a caminhar na praia usando máscara em setembro. E em Porto Alegre, trabalhando no Internacional, fui contaminado, mas sintoma zero, nada. E minha imunidade, surpreendentemente, chegou a sete. Em fevereiro deste ano subiu para nove. Mas quando eu digo que as pessoas deveriam encarar como eu encaro é em relação a respeitar o Covid-19 como eu respeito. Já tomei a primeira dose da vacina, e mesmo assim, não abuso. Gosto de ir nos restaurantes, toda hora sou convidado, mas resolvi dar um tempo e tirei meu time de campo. Devemos nos prevenir e respeitar os limites impostos pelos órgãos de saúde.

Defina Abel em uma única palavra?

Correto.