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Vasco

O CRAQUE QUE JOGAVA PARA O TIME

por Serginho 5Bocas


Final do segundo turno do Carioca de 1977, FLAMENGO X VASCO, a rivalidade estava começando a ficar “nervosa” e se transformando no clássico dos milhões.

Depois de um jogo tenso, foram para a decisão por pênaltis e me lembro que todos foram convertendo até chegar a vez do quarto batedor rubro-negro que era ninguém menos do que Tita, um garoto recém saído do juvenil que todos apostavam como o sucessor natural de Zico.

Tita era o camisa 10 titular nas divisões de base e vinha sendo aproveitado nos profissionais com êxito, o que se comprovou com a escolha dele, um garoto de 19 anos, para bater um pênalti decisivo na final do turno.

Tita bateu e Mazaropi voou no canto e pegou. Ainda faltavam cobranças de Zico e Roberto, só que ninguém perdeu mais e o Vasco foi o campeão carioca. Tristeza no vestiário que poderia representar o final de uma carreira promissora de um garoto mal aproveitado.

Só esqueceram de combinar com Tita, pois já no ano seguinte se firmaria como um falso ponta tanto pela direita quanto pela esquerda, titular absoluto do Mengão e substituto do “Galinho” toda vez que este se contundia ou servia a seleção brasileira.


Tita era um jogador que diziam naquela época ser “moderno” – a imprensa adora falar isso – pois fazia ás vezes de ponta bem aberto quando o time tinha a posse de bola e voltava para marcar, fechando o meio e ajudando o lateral, uma raridade até nos dias de hoje, imaginem no final dos anos 70. Mas não se engane, não era um garotinho frágil, muito pelo contrário, não fugia de cara feia nem de pancadas e chegava duro nos adversários também, tanto que foi peça fundamental para o Flamengo e o Grêmio vencerem suas Libertadores, torneio mais importante das Américas, que infelizmente não basta ter futebol para vencê-lo.


Tita foi tendo atuações de gala, pois além de marcar muito bem, passava com muita precisão, sabia cruzar com perfeição cirúrgica e fazia gols, muitos gols, gols de cabeça, com o pé direito e o esquerdo, de falta e sempre com muita categoria. Foram mais de 300 gols em toda sua carreira, só no Flamengo mais de 100, marca considerável se levarmos em conta que ele não era centroavante e nem sempre jogou de ponta de lança, próximo ao gol, como gostava mais.

Tita começou a ser convocado por Claudio Coutinho em 1979 e depois por Telê durante a preparação para a Copa do Mundo de 1982. Foi compondo o elenco e, quando finalmente entrou no time, não saiu mais até seu derradeiro fim da linha com Telê.

Telê gostou de Tita logo de cara, porque ele era exatamente o que o treinador procurava e gostava. Tita não era chegado a uma noitada, era disciplinado, extremamente técnico e muito talentoso nos cruzamentos e nas finalizações, polivalente, e econômico nos dribles, o que mais Telê poderia querer?


Vieram as Eliminatórias nos meses de fevereiro e março de 1981 e Tita arrebentou, virou titular a partir do segundo jogo e chegou a marcar dois gols contra a Venezuela, e isso jogando de ponta direita, o cara estava voando baixo, o que podia dar errado? Deu…

Tita tinha uma predileção pela posição de Zico e depois que percebeu sua importância naquele grupo, talvez o sucesso precoce tenha “subido a cabeça” e aí ele jogou todas as suas fichas numa disputa por aquele lugar e se deu mal. Tanto no Flamengo quanto na seleção brasileira, perdeu espaço e visibilidade, pior ainda, perdeu a chance de entrar para a história fazendo parte de um grupo maravilhoso em que provavelmente teria lugar de destaque, o que fazer se a ideia partiu dele?

Tita perdeu espaço mas continuou sua carreira em alto nível. Foi emprestado ao Grêmio e venceu a Libertadores da América de 1983, só não disputou a final do Mundial Interclubes porque voltou ao Flamengo após a venda de Zico para a Itália.

Tita não deu certo na volta ao Flamengo, foi para o Internacional também sem muito brilho e depois no Vasco arrebentou. Jogou tanto que foi comprado pelo Bayern Leverkusen da Alemanha, jogou ainda na Itália e no México.


Tita jogava muita bola e jogava para o time, se estivesse no grupo de 82 acredito que o Brasil poderia ter feito papel melhor ainda e ele seria figura importantíssima naquela máquina. Ajudaria Leandro na marcação e ainda seria opção na direita quando subíssemos ao ataque, mas por opção sua teve seu ocaso na seleção “lamentável” do Lazaroni na Copa de 1990, quando ficou no banco de reservas de um grupo que decepcionou o país com atuações muito aquém de nossas tradições.

Tita foi fera, craque de alto nível, mas perdeu o bonde da felicidade que passou bem ali na sua frente e apesar de todo o sucesso que fez no futebol, não teve o seu real tamanho reconhecido na história, uma pena!

CARTA AO PAI-77

Rubens Lemos


Estávamos juntos naquela noite de 28 de setembro de 1977, decisão epopeica do Campeonato Carioca e juntos estávamos neste domingo, 15 de outubro de 2017, diante do computador, ligados no Museu da Pelada, vendo a reportagem com Roberto Dinamite e Zé Mário, heróis do primeiro Vasco de minha vida, cujos fragmentos tento transformar em nítido painel em busca das reprises de televisão, de depoimentos, textos e fotografias.

O senhor, seu Rubão pai, há 40 anos, uísque na mão, rebelde e inquieto, indignado com a Ditadura que lhe tolheu parte da vida, bigode nicotinado de granadeiro cruzmaltino, xingou o adversário de todos os palavrões possíveis e exaltou um time, que, segundo seu seletivo critério de comentarista de talento, honrava as máquinas de 1956 e 1958, transpostas ao seu recanto de garoto sertanejo do Rio Grande do Norte, pelas ondas do rádio.


Em sonetos etílicos, você recitava Barbosa (Miguel), Paulinho, Bellini, Écio, Orlando, Coronel, Sabará, Almir, Waldemar, Roberto Pinto e Pinga, os bambas do “SuperSupercampeonato”, extensões do seu maior ídolo: Walter Marciano, craque de 1956, morto pelas estradas da Espanha em 1961. E garantia que os homens do tio Fantoni representavam toda a história do Almirante, especialmente o artilheiro cabeludo e destemido Roberto Dinamite, “O garoto que vai superar Vavá”, conforme sua sentença telúrica.

Tita bateu o pênalti, Mazarópi voou e espalmou para escanteio. Depois, Roberto tirou Cantarele da fotografia e o fez berrar o hino mais bonito do Brasil. Doses intermináveis. Lembro seu olhar estudioso direto no meio-campo formado por Zé Mário, Zanata e Dirceu. “Zé Mário lidera e combate, Zanata arma e administra o tempo do jogo e Dirceu é um pêndulo, ocupa todos os espaços e tem técnica, sim, ao contrário do que canta essa imprensa flamenguista”.


Faz 40 anos, pai. E me aparece um cara, chamado Sérgio Pugliese, para encher de nostalgia meu domingo. Ele é o ideólogo do Museu da Pelada, que deveria ter transmissão transcendental, de tão fantástico na renovação da vida inteligente do futebol que tanto amamos.

Certeza de que na hora de Zé Mário, Roberto e das reprises do velho Canal 100, você sentou comigo e derramou lágrimas de quem está onde o tempo já não conta. Vê se responde. É carta de um menino, que tinha 7 anos e envelheceu. Virou um chorão, um emotivo crônico, um guardião do seu amor vascaíno.

ROMÁRIO E A FELICIDADE IMPUNE

por Rubens Lemos


O som que emiti quando Romário fez 4×3 no gol da virada matando o Palmeiras no Palestra Itália e garantindo a Mercosul de 2000 até hoje não consigo descrever. Foi um berro assustador que acordou meu filho de sete anos. Minha mulher pensou que fosse ficar viúva de um homem vítima de enfarte.

O grito foi o mais alto e assombroso da minha vida. Quando a bola bateu na rede do goleiro Sérgio, não gritei gol. Expulsei tudo o que havia dentro de mim que não fossem as entranhas. Foi um transe de alegria e desabafo. Corri até a janela e por longos minutos, para mim foram décadas, uivei e chamei os piores palavrões do vocabulário pornográfico.

Depois, cervejas na cabeça, bati fortemente no peito magro. Me esmurrei, dei cambalhotas no pequeno corredor do apartamento, beijei a mulher, o menino, ambos envergonhados e irritados pela interrupção do sono.

Lembro apenas da frase que inventei na hora e repeti por 22 minutos, salvo engano: “Quem não for Romário, vá pra casa do…….baralho” O Vasco, em 2000, formara um timaço e sofria tanto ou mais do que hoje a sina de vice. Havíamos trazido Romário de volta do Flamengo, no comecinho do ano, para tentar ganhar todos os campeonatos. Perdemos logo o Mundial de Clubes da Fifa, aquele pênalti que Edmundo bateu longe, já enciumado pela presença do baixinho. Ex-Maracanã lotado e os corintianos em festa.

Fomos em frente. O troco seria no Campeonato Carioca, vingaríamos a derrota de 1999, gol de falta cruel de Rodrigo Mendes, bem no cantinho de Carlos Germano, quando o empate nos bastava.


Começamos bem o Carioca, enfiamos 5×1 nos rubro-negros, quatro gols de Romário, num domingo de páscoa, chocolate para tudo o quanto foi gosto. Edmundo e Romário começaram um duelo de máscaras terrível e o Vasco pagou. O Flamengo foi bicampeão como seria tri em 2001 no gol de Pet que maltrata o cruzmaltino de fé e coronárias de aço.

Ainda em 2000, o ano em que muito idiota pregou o bug do milênio, previsão de uma pane geral dos computadores na virada do Século, programados para começar com 19 do ciclo que terminava e fadados, segundo os entendidos e os verdadeiros sabidos, os picaretas, a gerar um colapso mundial. Deu tudo bem, o bug virou farofa e depois de 2000 um cidadão de nome Steve Jobs seduziu o planeta com suas invenções de tecnologia artística.

Ao Vasco, restava o Campeonato Brasileiro, a quem deram o nome de João Havelange para justificar a participação do Fluminense(que deveria ter disputado a Série e premiar todos os rebaixados no ano anterior. Foi o que livrou outros tantos clubes da Série C. E ao Vasco também sobrava a Copa Mescosul.


Grande dosagem do meu ceticismo em futebol foi injetada em 2000. O Brasileiro só viria a ser ganho em janeiro do ano seguinte, contra o São Caetano, depois que o alambrado de São Januário cedeu e houve o conflito de dois notáveis exemplares do sem-caratismo: Anthony Garotinho, governador do Rio de Janeiro e Eurico Miranda, presidente do Vasco.

Pouco antes do Natal, enfim, o Vasco assegurou sua vaga na final da Mercosul e contra o Palmeiras. Houve equilíbrio, cada qual venceu uma das finais e foi necessária a extra. Lembro-me do convidativo miolo de zaga do Vasco, com Odvan e Júnior Baiano. Romário, ainda bem, estava do lado certo.

O Palmeiras abriu 3×0 faceiro como quem vai a uma trattoria, pede um raviolli branco com bacon, acompanhado de um bom tinto da Sicília. Levamos gol de Tuta, Tuta, um centroavante bem abaixo do tosco. Decidi desligar. Tinha trabalho no dia seguinte, cedo.

Lembro bem, estava de pijamas, parei de tomar cerveja, por acaso, fui à cozinha e não desliguei a televisão do quarto. Pênalti a favor do Vasco. Romário diminui. É, 3×1 estava folgado para eles. Outro pênalti. Romário bate de novo, 3×2.


Resolvi ver no que dava, se aquela coro do casaca, saca,saca, a turma é mesmo boa, é mesmo da fuzarca, Vasco, ainda estava tocando no meu sofrido CD de esperança. Expulso Junior Baiano. Ficamos com mais um . Repito: O Palmeiras ficou com menos um a seu favor. Junior Baiano foi menos grotesco do que quem disse que ele era jogador de futebol.

Passei a acreditar e a tamborilar no copo. Uma nova cerveja gingava no peritônio. Aos 41 minutos do segundo tempo, o serelepe Juninho Paulista, nosso nanico do meio-campo, chuta mal, a bola entra: Um grito contido, abafado ao travesseiro.


Aos 48 minutos, jogada esquisita, que começa com Viola pelo lado esquerdo, bate-rebate, chute errado, goleiro espalma, bola encontra Romário no altar dos grandes finalizadores. Colocado onde deveria. Por Deus. Toque para as redes. O Vasco faz 4×3, meu espetáculo é o descrito inicialmente.

No dia seguinte, recebo um documento encaminhado pelo síndico, feitor moderno, entregue pelo humilde zelador. Abri. Uma advertência pelo tumulto que havia causado. Por atrapalhar a madrugada dos condôminos. A ideia fora só do síndico, ninguém reclamara e havia outros vascaínos pelo prédio. O último esporro por escrito eu recebera no primário. De um professor de Educação, Moral e Cívica, a disciplina-máter da Ditadura.

Peguei uma caneta e escrevi no papel de carta: “Não assino. Felicidade não se pune”. E saí cantando: “Tu tens o nome do heróico português, Vasco da Gama, tua fama assim se fez…”

PS. 20/12/2011 – Palmeiras 3 x 4 Vasco Local: Parque Antártica(Palestra Itália) – São Paulo – SP. Palmeiras: Sérgio; Arce, Galeano, Gilmar e Thiago Silva; Magrão, Fernando, Flávio e Taddei; Juninho e Tuta(Basílio); Vasco: Helton; Clébson, Odvan, Júnior Baiano e Jorginho Paulista; Nasa(Viola), 

HÁ 40 ANOS, UM MENINO SENTIU-SE CAMPEÃO PELA PRIMEIRA VEZ

por André Felipe de Lima


(Foto: Sebastião Marinho)

Tinha apenas nove anos. Mas a memória é feliz. E vivaz! Detalhadamente, posso descrever aquela noite de 28 de setembro de 1977 em que, com ouvido de elefante, sem nada perder, permaneci imutavelmente colado ao rádio. Um tempo em que fazia dos saudosos locutores Jorge Cury e Waldir Amaral meus amigos inseparáveis nas tardes de domingo ou noites de quarta (como aquela) e quinta-feira. Televisão era artigo de luxo. Não pude assistir à final daquele inesquecível Campeonato Carioca de 77, entre Vasco e Flamengo. Não tinha TV. Aliás, tamanho é meu desapego por TV que sequer lembro se houve transmissão ao vivo daquela peleja. Acho que um replay da TVE, com narração do grande Zé Cunha, foi o que sobrou. Essa é, infelizmente, a única informação que não recordo com precisão daquela noite de quarta-feira. Tampouco meu pai tinha dinheiro para levar-me ao Maracanã. Tempos difíceis que (esses sim) não gosto de lembrar. Tirando o Vasco, 1977 não foi um ano bacana.

O Vasco, esse sim, já havia me comovido no ano anterior após perder a final para o Fluminense. Decidi ser vascaíno ali, na ferida derrota. Heroicamente, pensava com cabeça de menino. Senti-me tão bravo quanto os jogadores vítimas da cabeçada à meia boca do Doval. Superei o fato e o dissabor do que considerei uma das maiores “injustiças” na minha vida de menino. O Vasco era minha alegria com figurinhas e botões. Decidi, em meio à derrota de 76, seguir em frente com o meu universo lúdico… e vascaíno.


Em 77, decerto pensava, seria diferente de 76. E foi mesmo. Fui campeão. “Atenção, vai bater Roberto. Roberto correu… gooooooooooooooooooool! Vasco da Gama, campeão carioca de 1977”, narrara Jorge Cury — o dos incomparáveis “gols” que pareciam jamais acabar — o derradeiro lance daquela que foi a cobrança de penais mais emocionante da minha vida. Isso, há exatos 40 anos. Na próxima quinta-feira, dia 28, faz 40 anos que curti para valer a minha primeira festa de campeão. Aquele título significa uma redenção em um ano tão atribulado como foi 1977.

Revivi dias atrás essa memória linda. Foi muito emocionante, mesmo que por telefone, conversar com os dois melhores jogadores daquela noite memorável: o volante (e capitão vascaíno!) Zé Mário, eleito quase que unanimemente o melhor jogador da final e do campeonato, e Rondinelli, o “Deus da Raça” do Flamengo. Ambos foram decisivos para que o jogo no tempo normal e na prorrogação terminasse 0 a 0. “Nos últimos três jogos do Vasco, quem ganhou o Motoradio fui eu”, recolheu para si o Zé Mário a pecha de craque da final. O que inegavelmente aconteceu. Zé Mário foi estupendo, do início ao fim da campanha invicta do Gigante da Colina. Justiça seja feita, o maioral.

“Mengão x Vascão – Morou?”, estampava a primeira página do Jornal dos Sports na manhã do dia da decisão. Ao Vasco, bastava a vitória para conquistar o segundo turno e levar a taça do ano. Ao Flamengo, só a vitória interessava para conquistar o turno e provocar uma final arrebatadora, que envolveria também o Fluminense e a sua “Máquina”, com Rivelino e afins.


Os rubro-negros contavam, evidentemente, com a efusiva e loquaz torcida dos tricolores. O cartola Francisco Horta até ameaçou ir ao Maracanã com a camisa do clube da Gávea. Prudente, desistiu da ideia de jerico pouco antes de o jogo começar. Mais sensato foi o Nelson Rodrigues, outro incansável tricolor, que de uma janela, na véspera do jogo, reverenciou o crepúsculo na Lagoa Rodrigo de Freitas. “Não estava li como paisagista”, escreveu. “Naquele momento, eu pensava no Vasco x Flamengo”. Não poderia ser diferente. Toda a cidade só pensava nisso. Os tricolores ainda mantinham uma vã esperança de entrarem na briga pelo título em triangular final. Não passou de vã esperança mesmo. Irônico, o cartunista (e rubro-negro!) Otelo Caçador não poupou o Horta: “Se o Flamengo vencer, o Horta vai ganhar bicho?”. Não deu para o Fluminense. Não deu para o Flamengo. Não teve bicho para ninguém da dupla Fla-Flu.

Que dia. Que noite. Não há como esquecer as horas que antecederam ao duelo de gigantes em um Maracanã que comportaria bem mais de 150 mil pessoas. Zé Mário e Rondinelli contaram os detalhes do jogo. Ambos não conseguiram, contudo, recordar que, por exemplo, a concentração do Vasco foi aberta aos torcedores e sócios enquanto a do Flamengo seguiu a mão inversa. Certamente, a vitória vascaína começara ali, ou seja, na democrática abertura dos portões ao povo. Também não veio à memória de ambos que os dois times trocaram, inesperadamente, de vestiário. A sugestão partira, como noticiaram, do massagista Santana. Teria sido mais um “trabalho” de fé do “Pai” Santana para favorecer o Vasco? Assim especularam os jornais na ocasião, e parece que os “despachos” do velho pai de santo deram certo.


Aquele redentor Vasco e Flamengo definitivamente jamais sairá da minha cabeça. Da cabeça do menino que pela primeira vez na vida sentiu-se merecidamente campeão.

***

HÁ 40 ANOS: VEJA O QUE ZÉ MÁRIO E RONDINELLI RECORDARAM DAQUELE JOGÃO ENTRE VASCO E FLAMENGO

***


Zé Mário: “Tenho noção de quanto fui importante naquele jogo. Realmente fui o destaque”

ÍDOLOS — Além do prazer incomparável de levantar a taça de campeão de 77, que mais chamou sua atenção naquela noite, no Maracanã e por quê?
ZÉ MÁRIO – O Maracanã estava lotado. Realmente foi uma festa muito grande das torcidas. O Vasco mereceu o título por tudo que fez.

ÍDOLOS – Havia carros estacionados até nos arredores da Quinta Boa Vista. Uma verdadeira multidão. Como você compara os grandes jogos daquela época com os de hoje, no Maracanã?
ZÉ MÁRIO – A segunda coisa mais importante de uma partida de futebol é a torcida. A primeira, logicamente, é o jogador. Acho que futebol sem torcida perde o brilho. Antigamente os clubes viviam de bilheteria hoje vivem da TV. Em longo prazo, acho que haverá uma falta de motivação dos jogadores. A torcida empurra os jogadores. Eu ficava alegre quanto tinha muita gente assistindo o jogo na arquibancada.

ÍDOLOS – Um fato curioso naquela noite, nas arquibancadas: havia bandeiras do Botafogo na torcida do Vasco e do Fluminense na do Flamengo. Esse tipo de, digamos, “harmonia” e “parceria” nas arquibancadas não existe mais por que motivo?
ZÉ MÁRIO – Quando inventaram as Organizadas mudou a maneira de torcer. A arquibancada ficou violenta. Não dá para levar a família. O torcedor individual não briga. Só quando se organizam e saem fazendo baderna. É crime organizado infiltrado.

ÍDOLOS – O Jornal do Brasil assim destacou sua atuação naquela inesquecível noite: “Zé Mário: A eficiência costumeira. Protegeu a entrada da área e procurou deslocar-se sempre para receber a bola”. Já o jornal O Globo foi categórico: “Zé Mário, a perfeição no combate, mas uso e abusou das faltas. Mas todas necessárias e sem qualquer deslealdade. Fechou a entrada de sua área, cobriu os dois lados e chegou a fazer alguns lançamentos. Nota 10”. Você concorda com as análises?
ZÉ MÁRIO – Concordo. Tenho noção de quanto fui importante naquele jogo. Realmente eu fui o destaque. Não quer dizer com isso que levei o time nas costas. Todos foram excelentes, mas eu me destaquei um pouco mais.

ÍDOLOS – O mesmo jornal diz que Zanata estava fora de forma física e não esteve bem no dia. Helinho, que entrou no lugar dele, não alterou muito o panorama na posição. Você sentiu-se mais sobrecarregado para defender a cabeça de área e até mesmo poder distribuir o jogo na meia cancha? Afinal, já era suam missão ao longo da campanha cobrir os avanços do Orlando e do Marco Antônio, os dois laterais…
ZÉ MÁRIO – Não fiquei sobrecarregado porque se o Zanata estivesse realmente fora de forma ele fatalmente colocaria a experiência para fora. Era um grande jogador e companheiro. Sinto muitas saudades dele.

ÍDOLOS – Sua função era frear os avanços e armações do Zico e do Adílio. Foi essa a instrução do “Titio” Fantoni?
ZÉ MÁRIO – O Flamengo tinha um timaço. Estávamos preparados para frear qualquer jogada deles. É claro que o Zico e todos os outros eram perigosos e por isso dobramos a cautela e fomos mais felizes.

ÍDOLOS – Houve um lance, se não me engano aos 10 minutos da primeira etapa, você deu uma entrada no Zico, que definia você como um dos principais responsáveis pelo Vasco não tomar gols. A imprensa achou que você exagerou no lance. Você recorda a jogada? Poderia detalhá-la?
ZÉ MÁRIO – Eu nunca fui expulso de campo e deixei de jogar poucas vezes por cartão amarelo. Não me lembro da jogada em si, mas sempre entrei duro nos adversários, mas sempre com lealdade. Não tinha como querer machucar o Zico que é meu afilhado.

ÍDOLOS – Houve outro lance antes mesmo da dividida com o Zico. Foi aos quatro minutos. Você salvou o Vasco ao tirar uma bola em cima da linha, quando Mazaropi pegou uma bola chutada pelo Zico, mas largou-a praticamente nos pés do Osni (se não me engano), que, sem ângulo, centrou para área. Toninho, de bico, chutou com o gol vazio. Poderia falar mais sobre a jogada?
ZÉ MÁRIO – Me lembro também de ter salvado um gol desse tipo quando jogava pelo Flamengo num jogo contra o Vasco. Paguei com a mesma moeda dessa vez. (risos)

ÍDOLOS – Como o time reagiu ao desfalque de Ramon?
ZÉ MÁRIO – Ramon era a nossa válvula de escape pela esquerda enquanto o Wilsinho era pelo lado direito. Qualquer um que não jogasse, sentíamos falta. Só que também tínhamos reservas à altura que quando entravam davam conta do recado. Portanto sente-se a falta porque cada jogador tem a sua característica e é preciso entendermos isso para amenizar a troca.

ÍDOLOS – O que mais você lembra daquela noite, Zé Mário? E o dia seguinte?
ZÉ MÁRIO – Só felicidade. Comemoramos bastante. Não só pelo último jogo, mas pelo conjunto da obra. Foi um campeonato irrepreensível. O grupo todo comprometido por um objetivo.

***
RONDINELLI SOBRE DINAMITE: “ELE ERA UMA FIGURINHA CARIMBADA, COMO EU TAMBÉM ERA PARA ELE”


ÍDOLOS – Zé Mário e você foram os únicos jogadores elogiados pelos jornais como os melhores em campo. O jornal O Globo escreveu, por exemplo, que você “foi perfeito do início ao fim. Nota Dez”. O jornal exaltou a célebre jogada em que você pegou a bola na zaga do Flamengo e conduziu-a até bem próximo da área do Mazaropi, sendo parado somente com falta.
RONDINELLI – Foi entusiasmo. Tínhamos, inicialmente, o comportamento de se defender. Nunca fui jogador de alta técnica, mas era de jogadas de antecipações por baixo e por cima. Recentemente, emocionei-me assistindo a um vídeo de algumas dessas jogadas. Eram bem positivas. Só a vitória contra o Vasco interessava naquela noite. O empate não era nem um pouco favorável a nós, do Flamengo. As minhas arrancadas teriam de ser bem precisas. Tive de arrastar uns três ou quatro jogadores para criar a jogada. Isso, na vontade, no arranque para entusiasmar nossa equipe para criar uma chance concreta de gol.

ÍDOLOS – O que mais te emocionou naquela noite em que o Maracanã acomodou para lá de quase 200 mil pessoas? Não teria sido aquela derrota de 77 que mexeu com o brio da sua geração para que desse a volta por cima no ano seguinte, conquistando o título com um gol seu de cabeça?
RONDINELLI — Até o título de 78, foi uma sequência de derrotas para o nosso maior rival. O Vasco mantinha defesas sempre bem postas e excelentes goleiros, como o argentino Andrada e o próprio Mazaropi. Para a disputa de pênaltis de 77, o time do Vasco tinha excelentes jogadores. Eram jogadores da defesa que, igualmente aos do Flamengo, empurravam seu time. Era o caso do Orlando, do Abel, do Geraldo e do Marco Antônio. Aí tinha o Zé Mário, Zanata e…

ÍDOLOS – Dirceuzinho…
RONDINELLI – Ah, era o Dirceuzinho! Isso. Ponta-esquerda.

ÍDOLOS — Ele caía mais por ali mesmo naquele jogo por causa do Paulinho, que jogou no lugar do Ramon.
RONDINELLI — Isso mesmo. Tinha o Wilsinho na ponta-direita e aí a fera, o Roberto Dinamite. O técnico era o Orlando Fantoni. Tanto aquela geração do Vasco quanto aquela do Flamengo foi valorizada por ter jogado para duas grandes torcidas, que compareciam sempre. Era outra época. Hoje, as torcidas dos clubes saem na porrada. Antigamente eu saía do Maracanã, morava na Tijuca, saía no meio das duas torcidas. As duas torcidas saíam juntas. Sem problema nenhum. Os torcedores rivais entre si se elogiavam. Era muito mais a gozação e o bate-papo no boteco. Essa é a maior emoção: ter jogado para esses quase 200 mil torcedores.

ÍDOLOS – O Cláudio Coutinho estava nervoso naquele dia e na concentração? O que lemos nos jornais da época é que o treinador do Flamengo estava muito tenso. Havia o jogo em si e a seleção brasileira sob seus cuidados…
RONDINELLI – Com toda a sinceridade, o “Capitão” Cláudio Coutinho fazia preleção antes de qualquer partida de forma muito tranquila. Ele pode, sim, ter ficado um pouco mais acelerado em relação ao que ele estava assumindo na seleção. Nunca vi uma pessoa com postura tão tranquila como ele, que tinha como braço direito que acompanhava os jogos o Jairo dos Santos, uma pessoa maravilhosa que passava todo o mapeamento da equipe adversária para ele. Na parte psicológica, ele falava que no futebol você tem de ser primeiro boxeador. Ao dar uma porrada no adversário, não recua, não. Nunca o vi nervoso dentro ou fora do vestiário.

ÍDOLOS – Você marcou quem naquele jogo de 77?
RONDINELLI – O ponto forte do ataque do Vasco sempre foi o Roberto Dinamite. Falta perto da área era com Roberto; os cruzamentos do Dirceu, que Deus o tenha; as enfiadas de bola do Zanata, inteligente pra caramba… a minha preocupação sempre foi, e isso o “Capitão” alertava: ‘Rondinelli, não perca o olho do Roberto!”. Roberto, por quê? Ele sempre foi um pouco mais alto do que eu. Ele usava muito corpo e braço. A determinação que sempre me deram era a de que eu não poderia marcar bobeira com o Roberto. Se você, como zagueiro, impede um atacante de fazer gol, você já é um vitorioso. O jogo terminou 0 a 0. Tanto eu quanto o Dequinha [companheiro de zaga na final de 77] tínhamos essa preocupação com ele. Olhe, vou falar uma coisa para você: começava o jogo, vou defender o meu espaço. Não vou ficar convidando o Roberto Dinamite pra desfilar na Beija-Flor no carnaval e nem vou deixar ele me convidar porque sei que ele estaria tentando me desestabilizar psicologicamente.

ÍDOLOS – Rolou isso naquela final?
RONDINELLI — Ah, ele adorava fazer isso. O Roberto adorava tira a atenção da gente (Risos). Mas eu sabia: “Ô, Roberto, é outro papo, cara”. Não poderia entrar na pilha dele. Tanto que tem um registro comigo, de uma penalidade, no começo de um jogo, acho que aos dois ou três minutos do primeiro tempo e valia pelo campeonato nacional de 76 ou 77, com o Roberto já me perturbando. Ele conseguiu me tirar do sério. Verbalmente, ele te provocava. Conhecia Roberto desde 72 ou 73, das finais de juvenis que fizemos juntos. Ele era uma figurinha carimbada, como eu também era para ele.

ÍDOLOS – Vocês dois travaram duelos memoráveis na história do clássico Vasco e Flamengo.
RONDINELLI – Essa palavra que você usou é realmente a correta: memoráveis! Mas duelos com respeito de um com o outro. Ele saía de campo vitorioso, eu também, mas tudo na maior normalidade.

ABEL, UM ZAGUEIRO MITOLÓGICO

por André Felipe de Lima


Para os gregos da Antiguidade, desenhava-se o herói com ideais altruístas, moldados por ética, sacrifício, fraternidade, justiça, coragem, paz e moral. Superar desafios épicos. Eis a missão dos bravos. No futebol brasileiro, muitos chegaram a este patamar definido lá longe, na Antiga Grécia. Poucos foram, contudo, unanimemente observados sob esse arquétipo.

Superação. Essa é a palavra ideal para resumir a trajetória do herói. Ele chora, pode até vacilar defronte a desafios, mas seu ímpeto é sua alma e sua alma é sua glória. Poderia direcionar este perfil para alguns gênios da bola, como Garrincha, Pelé, Didi, Tostão…, mas o ex-zagueiro Abel merece ser proclamado herói dos gramados tanto quanto estes gênios pela superação que moldou sua trajetória, transformando-o em um ídolo do futebol no final dos anos de 1970.

Abel começou a carreira no Fluminense, em 1968, onde permaneceu até 1975, transferindo-se para o Vasco no ano seguinte. Nos dois clubes, transitou entre o céu e o inferno, apesar de sempre reverenciado por treinadores e cartolas, que reconheciam sua bravura em campo, mas não lhe davam a chance da regularidade nos times titulares. Aos poucos, desanimou-se com a reserva e chegou a pensar em abandonar os gramados. Para o bem do futebol, isso não aconteceu. Abel se consagraria como um dos melhores zagueiros de sua época e, tempos depois, um dos melhores treinadores de sua geração.


Conquistou glórias nas Laranjeiras, mas foi com o Vasco que houve maior identificação.
O começo em São Januário não foi fácil porque o preferido do técnico Orlando Fantoni era o zagueiro Renê. Mas em quatro meses, com Renê indo para o Botafogo, Abel assumiu a vaga de titular na zaga do Vasco. Esmerava-se, correndo nos dias de folga nas Paineiras “até cansar”, como o próprio contou ao jornalista Maurício Azêdo. Acabado o treino, Abel, com a ajuda de Roberto Pinto, então auxiliar de Fantoni, e dos preparadores físicos Antônio Lopes e Djalma Cavalcanti, permanecia cerca de uma hora no campo exercitando os fundamentos que fizeram dele um dos principais zagueiros de sua época. Chegou a usar um colete de chumbo nos treinos. Saltava incansavelmente. Tudo para melhorar a impulsão. Fantoni ficou maravilhado com ele, afinal foi o treinador quem lhe dera uma “carinhosa” dura para que corrigisse seus defeitos Dali em diante, Abel — sempre muito grato a Fantoni — passara a ser sempre cogitado para a seleção brasileira.

E pensar que aquele rapaz parrudo começara no Fluminense como ponta-de-lança, mesma posição em que atuava nas peladas de rua, no bairro da Penha, zona norte do Rio. Treinava descompromissadamente na Portuguesa, da Ilha do Governador, quando um amigo da família o levou para um teste nas Laranjeiras. Pinheiro, que fora um dos melhores zagueiros da história do Fluminense, gostou de Abel e pediu a ele que regressasse ao clube. Na semana seguinte, já estava escalado na lateral-direita durante um amistoso em Volta Redonda.


E o jovem Abel foi conquistando tudo com o Fluminense e a seleção brasileira de novos até, em 1972, o Fluminense emprestá-lo ao Figueirense, que utilizou-o no campeonato brasileiro. Estava à vontade em Florianópolis. Primeiro porque o treinador era Antoninho [ex-ídolo do Santos], com quem Abel trabalhara na seleção de novos, segundo o contrato era excepcional. Ganhava cinco mil cruzeiros mensais — três a mais que o salário que recebia no Tricolor —, luvas de 20 mil, casa e comida de graça e uma popularidade incomum que surpreendeu o técnico Duque, que treinava o Fluminense quando o time carioca visitava Florianópolis.

Duque sabia das coisas e repatriou Abel nas Laranjeiras. Ora no lugar de Assis, ora no de Silveira, Abel foi, aos poucos retomando a vaga na zaga tricolor. Com a chegada de Carlos Alberto Parreira, foi sacado do time no dia da final do campeonato carioca de 1975. Didi assumiu o time e prometeu-lhe dez jogos seguidos como titular, mas logo após o papo entre Abel e o novo treinador, o Fluminense contratou Carlos Alberto Torres e, vindo da Portuguesa da Ilha do Governador, o zagueiro Fernando. Didi não cumpriu a promessa e frustração de Abel transformou-se em depressão. Pensara até em deixar o futebol, pois estava prestes a concluir o curso de Administração, na Universidade Gama Filho. “Todo mundo me dava força, me apontava como exemplo de atleta dedicado ao clube. O próprio presidente Horta [Francisco Horta] fazia questão de me citar como modelo; chegava a dizer que eu era um símbolo do Fluminense. ‘Diante de Abel ninguém cospe na camisa do Fluminense’ — ele repetia com freqüência. Eu acreditava nisso, tinha o Fluminense como a minha casa. Achava bacana aquela história de ser confundido com o clube. De que adiantou isso?”


Realmente Abel não teria espaço nas Laranjeiras. Sobrava zagueiro [alguns bons, outros nem tanto] para o time. Além de Torres e Fernando, havia Buñuel, Assis, Silveira e o jovem e brioso Edinho. Fosse pouca a leva, Horta, trouxa Pescuma, que fora ídolo no Coritiba e estava no Corinthians. Segundo Azêdo, o cartola tricolor teria ficado encantado com Pescuma por este ter lhe mostrado o caminhos das pedras para eu o Fluminense convencesse o velho Nicola, pai de Rivelino, a deixar o filho trocar o Corinthians pelo Fluminense. E Abel, como ficou nisso tudo? O Flamengo bem que tentou levá-lo, mas Horta não o liberava. O América ofereceu uma troca por Alex, ídolo Alvirrubro. Abel iria para Campos Sales junto com Herivelto, mas Horta bateu o pé e dizia que nunca venderia seu craque. Mas o rapaz amargava o banco de reservas. Chateava-o muito a situação. Uma ex-namorada, Roberto Mauro, Rivero e Arlindo, amigos da faculdade, confortavam-no.

Seguia triste, acabrunhado, porém não imaginara a peça que lhe reservara o destino.
Abel, como narrou Azêdo, seguia de carro para a Universidade Gama Filho quando, aproveitando-se do sinal fechado, decidiu espiar rapidamente o jornal. Veio o susto: dizia a notícia que ele, Marco Antônio e Zé Mário foram cedidos ao Vasco. Ficara feliz. Era o queria, naquele momento: trocar de ares. O Fluminense avaliou para abaixo o valor do passe de Abel. Mas nem isso o incomodou. Queria mesmo é jogar bola, mas como titular… e No Vasco, para realizar o sonho de seu velho pai, um vascaíno “doente”.

Após os conselhos de “Titio” Fantoni, Abel acertou o prumo. Estava jogando uma barbaridade na zaga. Àquela altura já era ídolo da torcida. Foi o jogador vascaíno que mais vezes entrou em campo em 1976. Foram 90 partidas. Em abril, o Vitória o queria em Salvador. O Vasco disse não. Como vender o passe de um jogador que chora pelo clube, nas derrotas ou nas vitórias? “Ele é alma do time”, destacava Fantoni. “Ele é a garra que sempre caracterizou o Vasco”, reconhecia Dulce Rosalina, torcedora símbolo do Vasco nos anos de 1970 e 80.


Com Abel comandando a nau vascaína, o time conquistou o tão almejado título estadual de 1977. Fantoni estava certo: “Esse rapaz fez um progresso maravilhoso”
Abel não fugia da luta. Ocultava dores homéricas para estar em campo. Em outubro de 1978, o Vasco vivia um momento de transição. Chegara Leão, mas perdera Dirceu e Marco Antônio. Zé Mário e Geraldo estavam há meses no estaleiro. Abel, Orlando, Guina, Wilsinho e Roberto Dinamite tentavam manter o mesmo ímpeto do time de 77.
Em campo, o Vasco, que fazia uma campanha sofrível no campeonato estadual, deparou-se com um Flamengo embrionário do timaço que conquistaria tudo nos anos seguintes. Abel entrara em campo sentindo muitas dores no joelho. Escondera dos médicos, contudo, a enfermidade. O médico do Vasco, Otávio Martins, perguntara insistentemente se sentia algo. Abel negara sempre. No campo, o Flamengo estava sempre impetuoso no ataque, mas Abel parou Zico, Claudio Adão e Adílio… até não agüentar mais e desabar, heróico, no gramado.

Justificava a bravura com a mesma emoção com que chorava ao ver uma faixa de carinho da torcida em reverência ao ídolo. Aquele empate reanimou o Vasco, reanimou Abel. “Sei que entrar num jogo como esse, todo machucado, pode ser um desastre. Aí, me lembrei: há dois anos, o Fla não ganha nem marca gol no Vasco. Ainda: desde que fui para a Seleção, em fevereiro, o Vasco não perde quando jogo. Resolvi entrar.”

Até novembro daquele ano de 1978, com Abel em campo o Vasco não sabia o que era derrota. No mesmo ano, Abel esteve com a seleção brasileira, na Argentina, para a Copa do Mundo, mas não entrou em campo. O treinador Claudio Coutinho [também do Flamengo] preferia o miolo de zaga com Oscar e Amaral. No ano seguinte, Abel seguiu para o futebol francês. De lá, mantinha a esperança de nova oportunidade, na Copa de 1982. O treinador Telê Santana preparava o time que encantaria o mundo e Abel, em 1980, mandava recados que acabaram proféticos: “Os nossos inimigos em 82, queiram ou não, serão os times europeus. Lá, a dinâmica é outra, o jogo não pára, não fica truncado, o tempo passa rápido”. Exatamente como a Itália derrotaria o Brasil, no estádio de Sarriá, na Espanha.

Abel Carlos da Silva Braga, como consta em sua certidão, nasceu no Rio de Janeiro no dia 1º de setembro de 1952. Fluminense e Vasco não foram suas únicas casas. Também foi do Paris Saint-Germain, da França [de 1979 a 1981], onde chegou a jogar de líbero e até de centroavante e ganhava cerca de 500 mil cruzeiros mensais.
Em 1981, Abel retornou ao Brasil, para defender o Cruzeiro. A chegada não foi amena. Uma cirurgia no joelho o afastou dos gramados em pelo menos dois meses, recuperou-se e deu nova cara à zaga, com reflexos em todo o time, a ponto de o lateral-direito Nelinho, seu ex-parceiro nas peladas nas ruas de Olaria, defini-lo como “doping” da equipe, que não vinha bem e sofria com o poderio do Atlético, de Reinaldo, Cerezo e Lusinho. “E o que esse cara grita e xinga em campo não é normal, xará”. Abel tornara-se o homem de confiança de [quem diria…] Didi, o mesmo técnico dos tempos de Laranjeiras. “Quando penso em dar uma orientação a um garoto, o Abel já foi e conversou com ele”. Na Toca da Raposa, Abel era a voz dos companheiros. Reivindicava aumento para jovens talentos e discutia com cartolas e comissão técnica um regime mais justo nas concentrações. Desabrochava o futuro treinador de sucesso.
Do Cruzeiro, Abel teria de voltar ao Paris Saint-Germain, mas acabou transferindo-se para o Botafogo, em 1982, numa transação confusa porque o clube carioca ficou devendo 40 mil dólares ao clube francês.

Entende-se o pouco esforço do Paris Saint-Germain para não querê-lo de volta. Em 1988, ou seja, quatro ano após Abel ter encerrado a carreira de jogador, o jornal L’Equipe publicou um levantamento sobre 23 estrangeiros que atuaram no Paris e no Matra Racing ao longo da história dos dois clubes parisienses. Abel não ficou bem na fita. O jornal o colocou na lista dos onze piores. “Falência total de um zagueiro-central, que treinou apenas uma temporada no Parc des Princes”, escreveu o diário. No período em que lá jogou vestiu a camisa do Paris Saint-Germain 45 vezes.

Em 1984, Abel trocou o Botafogo pelo Goytacaz, de Campos, no interior do estado do Rio de Janeiro, clube com o qual encerraria a carreira, conforme dados da Confederação Brasileira de Futebol [CBF].

Pela seleção brasileira, esteve na Copa de 78, como reserva do zagueiro Oscar [da Ponte-Preta]. Vestiu a camisa canarinho em 15 ocasiões [10 delas com a seleção olímpica]. Também participou, em 1971, da seleção pré-olímpica. Além do eloqüente título de 1977, com o Vasco, Abel foi campeão carioca em 71 e 73 e bi-campeão, em 75 e 76, todos com o Fluminense.

A fama de mau, garantia ele, sempre fora injusta. “Olha, só machuquei um cara por querer. Foi um tal de Lula, do Vila Nova de Goiás, quando eu jogava no Vasco. Ele me deu duas entradas na barriga. Na seguinte, acertei o seu joelho.”
Após deixar os gramados, transformou-se em um bem sucedido técnico. O começo foi no Botafogo, em 1985.


O saudoso jornalista Sandro Moreira recorda uma deliciosa história dos primeiros momentos de Abelão, como gostavam de chamá-lo na imprensa ou na arquibancada, como técnico do Alvinegro carioca, que acabara de ganhar os dois primeiros jogos sob a batuta do ex-zagueiro.

Entusiasmado com a boa estréia de Abel como treinador, o repórter de uma rádio telefonou para a casa do ex-craque, tentando entrevistá-lo. Do outro lado da linha atende uma mulher, que pergunta ao trepidante com qual dos dois ele queria conversar, se com o “Abelão” ou com o “Abelinho”. Seguro de si e sem pestanejar, o repórter emendou: “Com Abelão, naturalmente”. Abelão vai ao telefone e trava-se o nosense diálogo:

— Alô, quem quer falar comigo?”

— É o Gomes, da rádio. Explica para os ouvintes como você viu a vitória de hoje do Botafogo?

— Não vi.

— Como não viu? Está me gozando?

— Não. Eu sou o Abelão, o pai. Você deve estar querendo falar com Abelinho, meu filho.

Amante da boa música. Abel [ou Abelinho”, para o velho pai] arrisca-se no piano desde os 12 anos de idade. Quando treinava o Vitória, em Salvador, em 1986, decidiu intensificar os estudos musicais.


Abel comandou, entre outros clubes, o próprio Vasco, Internacional de Porto Alegre, Sport Recife, os Atléticos mineiro e paranaense, Coritiba, Flamengo, Ponte Preta e o francês Olympique de Marselha. Em 2004 e 2005, teve grandes passagens por Flamengo e Fluminense, com os quais, respectivamente conquistou o campeonato carioca nos dois anos. Mas foi no Internacional a consagração: campeão da Copa Libertadores e do Mundial Interclubes em 2006. E, no Inter, seu filho Fábio ingressaria no futebol. A relação com o Colorado é, inegavelmente, singular. Em 2011, com a inquestionável bagagem de sucesso, o Fluminense recebeu-o novamente como técnico. Voltaria, porém, ao Inter em 2014. O Rio o acolheria novamente. E mais uma vez as Laranjeiras, onde está até hoje.

Foi, porém, nos gramados que Abelão encantou as torcidas, especialmente a tricolor e a vascaína. Como zagueiro, era conhecido mais pela força do que pela técnica, mas o resultado dessa inversão não é queixa para ninguém, sobretudo para os vascaínos, que no campeonato carioca de 1977 viram o time sofrer apenas quatro gols. Todos apenas no primeiro turno. Dá para imaginar de quem é a pecha de herói?

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O texto acima integra a “Letra A” (primeiro volume) da enciclopédia “Ídolos – Dicionário dos Craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, cujo lançamento será ainda neste semestre pela Livros de Futebol.com, do bravo editor Cesar Oliveira, autor do imperdível “João Saldanha, cem anos sem medo” (https://www.facebook.com/joaosaldanha100/), com Alexandre Mesquita e Marcelo Guimarães.