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Várzea

A VÁRZEA QUE CONTRARIA NELSON RODRIGUES

por Marcelo Mendez


Tomado por toda poesia que o futebol é capaz de nos submeter, mestre Nelson Rodrigues escreveu certava vez que “O sublime não se repete, é bissexto, acontece uma vez na vida, outra na morte.”

E com toda a genialidade que tinha o Mestre das Crônicas jamais ele havia de imaginar que nos terrões e arrabaldes das cidades, o futebol de várzea viria para contrariar sua máxima tão bela.

Amigo leitor que aqui me acompanha, vos digo que semana após semana o futebol da bola marrom por puro capricho repete todo sublime possível que está por detrás da chuteira colorida que bate na bola marrom.

São homens de uma decência ímpar, de uma dignidade comovente a correr por um réquiem de grandeza mínima que as coisas do futebol lhes reservam em suas duras vidas de trabalhadores da bola. E tudo isso é multiplicado vezes um milhão de sonhos quando tratamos de uma final de campeonato na várzea.

Vejamos então nesse fim de semana, onde os times do Hélida de Mauá e do Gaivotas de Rio Grande da Serra definiriam a sorte da Copa Lourencini, um tradicional campeonato da cidade de Mauá, no campo do Itapeva na mesma cidade. Rumamos para pauta, Avenida Barão de Mauá afora.

Pelo caminho vimos a cara de interior que o ABCD tem mudando lindamente. De repente, os comércios fechados foram sendo trocados por bares, conversas e um cheiro espetacular de frango assado, típico do domingo para marcar esse dia de várzea.


De imediato, ouvimos os instrumentos de samba a tocar em fúria e os sons da torcida a vociferar seus pagodes, foi o que nos guiou para encontrarmos um campo. Chegamos.

A equipe de ABCD Maior é recebida com sorrisos, pedidos de foto e agradecimentos por simplesmente estar ali. É o momento em que as pessoas da várzea deixam de ser invisíveis para ter um protagonismo que jamais poderia ser negado a esses. As páginas de jornal terão então as presenças dos torcedores dos times, de suas camisas multicoloridas, sua alegria honesta e suas paixões sem comedimento.

Em campo, a coisa seguiu 1×1 até os 39 minutos do segundo tempo, no momento que o técnico Finha, do time do Hélida, ousou tirar o seu camisa 10 do jogo. O menino olhou para o banco incrédulo:

– EU?!

– É, você mesmo. Vem… – respondeu o técnico Finha

O camisa 10 saiu irritado quando viu que em seu lugar entrou o menino Vitinho, 16 anos e craque de bola. Ainda resmungava com Finha, quando a bola chegou aos pés de Vitinho pela primeira vez no jogo.


Como que por encanto, o momento mágico escolheu Vitinho para empurrar a bola com classe para o fundo das redes com o gol que deu o título para o Hélida. E, na beira de campo, o camisa 10 contrariado não reclamou mais.

Abraçou efusivamente o técnico Finha e ambos comemoravam o feito de Vitinho.

Nesse momento, qualquer dúvida em mim se dissipou quanto à escolha do meu personagem da semana, a quem a crônica deveria homenagear. Ora, ela vai para o jogo.

Sim, caro leitor, hoje a crônica da semana vai homenagear o jogo do último domingo num todo. Porque só um jogo de final de campeonato de várzea é capaz de reunir todos esses encantos e essas poesias. E tenho certeza que nem mestre Nelson Rodrigues ficaria triste com a provocação feita por esse pobre e velho cronista ludopédico acerca de sua máxima que então deixa de ser perene.

A várzea, Mestre Nelson, nos contraria por puro charme. Eu ia dizer “que pena que o senhor não conheceu”, mas que nada. Tenho certeza que os senhor está sempre por aí a vê-la.

Tenho certeza…

AMORES DE ALAMBRADO

por Marcelo Mendez


Imagem: Renato Cordeiro (UOL)

“Não, meu bem, não adianta bancar o distante: lá vem o amor nos dilacerar de novo…”

Tudo bem, eu sei que quando Caio Fernando Abreu escreveu isso, nem de longe passou pela sua cabeça, pelo seu uísque, pela sua echarpe chique e pela sua mais linda e devassa intenção, falar de futebol. Quiçá de futebol de várzea que o amigo poeta não devia ter a mais remota idéia do que fosse.

No entanto, quanto mais passa o tempo, quanto mais domingos de futebol de várzea presencio, mais me sinto dentro desse sentimento que Caio escreveu, pelo meu mais torto viés. Intrigante…

Já não foi a primeira vez que pensei em criar uma distância entre eu e essa coisa maravilhosa que são as pelejas do domingo de manhã. Por uma reserva do coração, daquele apaixonado que morre de medo de se apegar ao amor com medo de não tê-lo adiante, quis ficar meio fora desse universo, mas, como descrito na frase do Poeta, tal e qual o amor, eis que lá vem a várzea para me dilacerar em encantos, versos prosas e odes pelos campos de bola do ACBD. Veio, amigos…

Me contaram da Copa São Bernardo de Futebol de Várzea. Mais de 146 times participantes, de todas as divisões e até os não filiados à Liga da Cidade. Uma copa democrática que ocupou os mais de 40 campos de São Bernardo ao longo dos últimos quatro meses em disputas eliminatórias de um jogo só. Um mata…

Durante o torneio, muito mais que uma partida de futebol, o que se disputava ali pelos terrões eram duelos. Debaixo de sol escaldante ou, sob um frio siberiano, as equipes ali se encontraram para disputar os seus mais obtusos sonhos. Uma prova de fôlego que chegava ao jogo final entre Marabá x Nós Travamos. Chegando no Estádio do Baetão onde acontecia o Match, a velha magia da várzea.

As equipes prontas, o mesário Tom e seu impecável terno preto, o auxiliar Gil com suas tropicalistas calças cor de salmão, árbitro atento, hino tocado e começa a peleja. Um instante em que o som que ecoa no mundo é da fúria dos instrumentos de samba das torcidas de várzea. Nesse momento, como que por capricho da criação me distraio do campo e olho para o alambrado.

De frente comigo, a alguns poucos metros, vi um senhor. De rosto colado ao alambrado e camisa do Marabá, o homem de cabelos grisalhos segurava nas mãos um galho de arruda. Com ele fez umas rezas, arregalou bem os olhos e então, não mais os desviou da cancha. Me chamou atenção a cena… O Torcedor. Mas não qualquer torcedor:

O torcedor de várzea.

Assim como eu, ele acorda cedo domingo.

Come seu pão com manteiga, engole seu café puro… puro como ele, forte como sua paixão. Beija a boca de hortelã de sua mulher, veste a camisa do seu time, sobe em cima de seus chinelos e com eles voa para muito além de Agadir; Vai para o campo de várzea.

De rosto colado no alambrado, o torcedor de várzea torce. Sonha amiúde, de maneira curta, por um átimo de encanto. Torce para algo que se aproxima de uma divindade, a divindade que lhe é possível. Uma entidade que toma conta de sua alma e o leva para muito além da razão, da quimera rasa dos sentidos.

A ele só lhe é permitido viver por poesia. Nada que seja meramente racional. Não! O torcedor de várzea está lá para louvar o improvável, o insólito, o gol do título feito por Beto do Marabá, a catarse de um titulo de futebol de várzea, o qual o torcedor tem plena convicção que só foi possível por conta de suas rezas e de suas mandingas. Um gol de Deus.

No dia em que Deus imitou Beto do Marabá. Para alegria do torcedor…

O DIA QUE O COROTE E MOLOTOV VIBROU

texto: Marcelo Mendez | foto: Maristela Ranieri


Era um dia diferente na várzea de Santo André.

Ao contrário dos domingos de sol, de manhãs de feiras livres, do gosto de pastel e dos cheiros dominicais, dessa vez a pauta era em um sábado que repentinamente se fez de inverno, em tons acinzentados que outrora talvez pudessem ser chamados de melancólicos, mas não.

Dada o quão especial era aquela pauta na várzea, o sol em acordo com o destino resolveu se recolher para gerar em mim um outro tempo. Um momento de mais silencio, de mais solidão até, para que toda reflexão acerca do momento que estava por viver, fosse feita.

Era um sábado. Dia de receber no campo do 7 de Setembro, em Santo André, o meu time, o nosso time. Corote&Molotov para além de time de futebol é uma experiência que ousa ser única no futebol. Uma união entre moradores de rua de três ocupações da região da Radial Leste em São Paulo (São Martinho, Alcântara Machado e Cimento) e ativistas que correm junto com esses moradores na luta por moradia.

Lembro de quando o companheiro Paulo Escobar me chamou para fazer parte de tudo. Não pude recusar.

Conhecendo a ocupação Alcântara Machado, conheci Carequinha, Gordinho, Tibuia, Olodum, Ceará, Baixinho, Índio, Carlos, Dione, Japa e mais outros que formam conosco o nosso time. Tive destes a honra de conhecer as suas histórias, lutas, agruras, dores e ouvi as mais lindas histórias de vida e resistência. Me emocionei por um milhão de corações que pulsam por paixão e fúria, que clamam por igualdade, que não querem pena de ninguém, querem justiça e não se fazem de rogado em lutar por tudo isso.

Começamos a batalhar então e o Corote já está na ativa há dois meses. As coisas do trabalho, no entanto, me impediram de vê-los em ação e isso só foi possível no último sábado, quando os amigos do Racing Sacadura nos enfrentou. Lá fui eu…

Em meio a esse sábado acinzentado e frio, encontrei meus amigos de time trocados, orgulhosos, felizes, na beira do campo e prontos para o jogo. Olhei para cada um de seus rostos e vi neles uma alegria que contagiaria a qualquer ser vivente. Mas ainda tínhamos que jogar e o match era duro.

Até o final perdíamos por 2×1 e Guilherme, o nosso técnico, se retorcia em táticas, enquanto eu, Caróu e Adriana torcíamos por uma sorte diferente daquela que tínhamos, quando Escobar bateu uma bola no gol e o goleiro do Racing rebateu.

No rebote, Dione correu. Mas correu por muito mais que apenas uma bola. Nos pouco mais de 20 metros que nosso menino atacante correu, uma vida veio à tona. Era correr pelo sonho, pela alegria, pelo que a vida jamais poderia deixar de dar para as 650 pessoas das ocupações da Radial Leste e para todos os brasileiros que lutam por moradia nesse País. Dione correu…

Pegou aquele rebote e estufou as redes. Gol! Comemorou como se a vida fosse de fato algo muito bom, abraçou seus companheiros de time, de luta e de vida e foi feliz como é de direito ser.

Nesse momento em que os nossos festejavam, me afastei. Fui para um canto do campo e vendo os jogadores do Corote&Molotov, chorei da mesma forma que se chora por uma grande vida. A lágrima grossa que me escorria a barba enquanto via os nossos felizes é a mesma que desce o rosto agora que escrevo essa crônica e eu devo a esses jogadores toda a alegria desse sábado que jamais deixará de existir em mim.

Obrigado, amigos.

Amo vocês, profundamente….

A BICUDA DE TINUCA E AS PIZZAS DA MAFALDINHA…

por Marcelo Mendez


Em um sábado à tarde, de algum sol, decidi ir até o campo do São Paulinho do meu Parque Novo Oratório.

Fiquei sabendo que ali haveria a final de um torneio, a “Copa Pacotão”, que, perguntando aqui e ali, descobri tratar-se do nome do patrono do torneio, um empresário dono de um boteco nas quebradas do Parque São Rafael, que era o incentivador da coisa toda.

– Repórter, o vencedor, além do troféu, ganhará uma rodada de pizzas, lá na Mafaldinha Pizzas… – me contou a fonte que conheci ali, na grade do campo. E munido de informações necessárias, fui ao jogo em questão.

O match que valia o troféu e as pizzas da Mafaldinha era entre os times do Pouca Perna F.C. e o Em Cima Da Hora. Um time era do bairro do Vera Cruz e o outro do Sonia Maria, na divisa com Santo André. A eufórica torcida de uns 15 cachaças que se somavam a mim na arquibancada do campo do São Paulinho me falavam maravilhas do time do Pouca Perna. E então começou a peleja.

A partida era de uma ruindade intrínseca. Disputada a plenos bicões, chutes tortos, trombadas e raspadas de canela, o jogo corria. Os times, talvez sabedores dos encantos lá das pizzas, corriam e se esforçavam com uma dignidade inexorável. Eram homens atrás de réquiens, de glórias curtas que a várzea pode dar. Nesse momento me chamou atenção o camisa 11 do time do Pouca Perna.

Em um daqueles 0 x 0 virginais e indecentes, o jogo seguia. Após um desvio no fundo, o moço da camisa 11 se viu com a bola à sua frente, limpinha, solta, fácil de ser empurrada ao fundo das redes. Sabedor de tal primazia que esse momento do jogo pode oferecer, ele a recebeu, ajeitou seu corpo e então, de frente para um desesperado goleiro, enfiou seu pé embaixo da bola e a isolou sobre o gol:

– Puta que pariu, Tinuca! Como tu é ruim, porra! – esbravejou um dos 15 torcedores a meu lado, arremessando ao campo seu copo de plástico cheio de cerveja.

Tinuca…

Só pela exclusividade do nome, Tinuca já mereceria destaque nessa crônica. Afinal de contas, quantos Tinucas existem no mundo? Que coisa maravilhosa é a sensação de ser então único: Tinuca!

Observando-o em campo, vi que o seu futebol era de uma inapelável ruindade. Um grosso. Alto, de pernas infindáveis, meio arcado, Tinuca corria. Era comovente ver o quanto nosso limitado atacante se esforçava.

Tinuca tinha uma retidão de caráter épica!

Talvez por isso, a bola o procurava. Tinuca teve mais outras quatro chances de fazer o gol. Errou todas. A paciência do bebum da torcida já estava acabando quando então se fez a magia no campo do São Paulinho.

Eram uns 44 minutos do segundo tempo, quando todo mundo se preparava para os pênaltis. Já não se olhava tanto para o campo, quando uma bola sobrou na frente de Tinuca a uns 30 metros do gol adversário. Sem pestanejar e nem fazer análise, o nosso camisa 11 enfiou o bico da chuteira na bola. A pelota fez uma viagem com mil curvas até que encontrou o ângulo do time do Em Cima da Hora.

GOOOLLL!!!

De maneira impressionante, Tinuca fez o maior de todos os gols. Os cachaças vibravam, os parceiros de time o saudaram e todo mundo estava feliz. As pizzas da Mafaldinha estavam garantidas! Graças a Tinuca!!!! Através dele se fez a arte.

Porque afinal de contas o espanto e a surpresa são as maiores características de uma obra de arte. São fatores que a definem como tal, ou até mesmo nossa indignação capenga diante da beleza artística, quando dizemos “Minha nossa, como é belo!”. Pois bem:

Belo nesse dia foi o Tinuca. Minha nossa!

Da várzea ao sonho. Para Tavito, com amor!

::: por Marcelo Mendez :::


Em um domingo de sol, para Truffaut renascer e filmar, acordei para mais um dia de futebol de várzea, no ABCD, com aquele bom sorriso de menino saudoso no rosto e um som do Tavito nos fones, a caminho do campo do Nacional, onde Guaraciaba e Marajoara se enfrentariam pela decisão do Campeonato de Santo André. Pelo caminho, vi rostos, vi instrumentos de samba, vi sonhos, vi alegrias…

Senti firmemente a possibilidade intrínseca do surgimento de um milhão de odes poéticas que o futebol de várzea é capaz de me dar. Entrei no campo do Nacional e, naquele momento, “Rua Ramalhete” era a música que tocava e o verso citado é a premissa inevitável que rege os momentos que antecedem uma final da várzea. Em mim é assim, não tem como ser diferente…

“Sem querer fui me lembrar…” – Lembrei de tudo. Do menino que fui, do garoto que jogou bola, que amou, que se entorpeceu de paixões e fugas, do homem que em meio a tempestades, decepado, segurou muito mais do que apenas a primavera dos dentes. Eu quis a vida. Hoje quero a várzea…

Pelas ruas do Parque Novo Oratório, em meio aos ramalhetes que me são possíveis, sigo fortemente pelo caminho que pode me levar a algum lugar que não seja apenas calmo. Quero mais, quero tudo. Busco nos rostos e nos corações dos homens pela centelha de alegria que os moveu um dia e que por alguma estranha razão se apagou. A renitência do poeta em fazer dessa mínima centelha uma labareda de paixões e versos é o que mantém viva a beleza. Escolhi o futebol de várzea porque na várzea eu encontro tudo isso.

Asseguro aos senhores que em uma final de várzea reside toda a carga poética de um milhão de Shakespeares em fúria. Nada, absolutamente nada do que se ouse imaginar como épico, chegará aos pés de uma final de futebol de várzea. Obra prima alguma passará da condição de reles chanchada mal feita, ante uma partida de futebol dessas.

Uma final de várzea começa dez segundos antes do encanto e termina vinte séculos após o beijo na boca. Vejam esse domingo último, no campo do Nacional. Havia por lá dois times de futebol. Guaraciaba, lendário, tradicional, com toda a pompa de décadas de grandeza, de conquistas e títulos que o elevaram a condição de grande no futebol de várzea da cidade; Marajoara, novo, recém fundado em 1992, encontra-se na fina flor da lira dos seus 20 anos. Ambos querem obviamente o título, mas, de maneiras distintas.

Guaraciaba quer afirmação, calmaria, regozijo, mais uma glória entre tantas em sua história; Marajoara quer a festa! Na fúria e ira santa de seus 20 e poucos anos, o time recém chegado às grandezas curte a busca pelo título da mesma forma que um adolescente virgem vive sua primeira paixão. Uma coisa forte, sanguínea, intensa. Assim foram ao jogo.

Duro, pegado. O 1 × 1 levou aos pênaltis, não por nada de tática ou coisa parecida, de forma alguma. A decisão da marca da cal serviu para que sons de silêncio fossem ouvidos. Para que o mundo parasse para ver o campeão da várzea de Santo André. Quando Jorge finalizou a quinta cobrança dando o título ao Guaraciaba a magia estava feita. Abraços foram dados, bocas se beijaram e os corações voltaram do tempo em que foram paralisados até a bola definir seu destino: as redes. Título para o Guaraciaba e ode feita ao mundo.

Quem esteve no campo do Nacional viu: a várzea novamente abençoou o domingo.