Escolha uma Página
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Várzea

O BLUES DO GOL NA VÁRZEA…

::: por Marcelo Mendez :::


Quero entender como se faz um gol na várzea…

Nesse universo onírico, lúdico, divino onde os seus artilheiros carregam nas costas a toda a responsabilidade de manter a poesia do mundo, as coisas nunca serão feitas pelo viés óbvio das resenhas e execuções burocráticas.

Na várzea, toda a premissa do ludopédio é épica. E o gol, a maior delas.

Daquela vez era um domingo cinza. O campo do Humaitá, em Santo André, era regido pelo mesmo céu dos filmes de Fritz Lang, por uma Metrópole, seu filme seminal, de 1929. Os homens do meu filme vagavam pela lama do terrão pesado como quem vaga por um Tango de Piazzolla, soltando suas cinturas malemolentes para os futuros dribles, como as cabrochas da Lapa dos anos 40 faziam para bailar sedutoramente as gafieiras imortais de Raul de Barros.

Não havia, no Humaitá, uma Orquestra Tabajara para comandar o baile. Mas como sempre há na várzea, os rebeldes e obstinados instrumentos de samba batucavam furiosamente o desejo dos bravos torcedores que colavam seus rostos junto ao alambrado gasto do campo.

Queriam mais, muito mais…

Nada dessa história de jogadas ensaiadas, de falácias de técnicos, de chutes desviados, de bolas perdidas, não… As redes dos campos de várzea são Olympus. Lugares sagrados de onde se fazem heróis, vilões, poetas, bufões, gênios de fato e burros impávidos. A poesia e as redes das traves da várzea mantém entre si uma relação de beleza atávica.

O jogo não era bom.

As chuteiras coloridas nada criavam e seus homens, pouco produziam.

O campo pesado, as chuteiras coloridas enlameadas, os sonhos que ficaram na noite anterior ou, na recente madrugada, não deixava com que tivéssemos uma partida de sonhos. Os chutões tinham a retumbância de um solo de Charles Mingus, em jam sessions de jazz furioso, movido por agulhas lindamente em êxtase.

Nada parecia acontecer, até que surgiu uma bola no canto do campo…


Foto: Rodrigo Pinto/Abcd Maior

Foto: Rodrigo Pinto/Abcd Maior

Ela quicou enquanto pode. Lutou para se manter viva na terra, até o instante em que uma poça de lama a matou. Ela, a bola, triste como uma amante que espera um afago nos cabelos em uma noite fria, ficou ali, quieta, resolutamente em silêncio até que uma chuteira a encontrasse. Encontrou…

Um lateral direito pesado, sem muita coisa de classe, chegou até ela, enfiou o pé por baixo, deu uma petecada e a jogou para a área. Num voo cego, ela, a bola, viu todas as possibilidades do que poderia acontecer:

“Vão me mandar para longe” ou, “Receberei outra bicuda”. “Mas também posso ter uma grande sorte”. E teve.

No meio da área, aquele menino de camisa 9 a olhou. Viu ela, a bola, chegando, deu um passo para trás, armou seu corpo tal e qual um Nureyev armaria um passo de dança no Balet Kirov, respirou fundo o ar de mil poemas, jogou as pernas para o alto e, então, o épico se fez. Com a elegância de um Dândi, o menino deu uma bicicleta. Com ares de grandeza plena, a rede amarelada do campo do Humaitá foi estufada oniricamente. Era o gol. O gol que salva, que emociona, que seduz, que glorifica, que tira do sujeito todo o peso de ser comum para ser absolutamente divino.

Corri para ver a bola no fundo das redes.

Ela não me disse nada. Não tinha nela nenhuma marca nem nada que me desse uma guia para terminar essa crônica. Mas com o olhar apurado do Poeta que a vida me fez, a olhei com atenção e, então, dela, a bola, vi um sorriso pleno, lindo, feliz.

Nesse momento, o céu cinza se abriu e o sol surgiu, no Campo do Humaitá.

Até ele, quis ver aquele gol…

A GRANDIOSIDADE ÉPICA DE PARRÃO E O BLUES DO PERNA DE PAU…

por Marcelo Mendez


E eis que tal e qual as câmeras de Michelangelo Antonioni saíam em busca da boca de Monica Vitti, eu, meu bloquinho e minha caneta Bic saímos atrás da sagração das chances possíveis da várzea nossa. Fui parar no campo do XV do Capuava em Santo André. Uma boa escolha… Afinal em tempos de “Padrão Fifa”, de elitizações esdrúxulas, de grama e de emoções sintéticas, se faz completamente necessária a busca da essência que mantém o futebol vivo. Algo que seja de fato verdadeiro e nesse ínterim, nada é mais pleno que um campo de terra batida. E foi isso o que encontrei.


Em um calor pleno de duas horas da tarde, debaixo de um sol pra lá de escaldante, de fazer derreter qualquer Lawrence da Arábia, vi uma bela e onírica pelada.

Em um calor pleno de duas horas da tarde, debaixo de um sol pra lá de escaldante, de fazer derreter qualquer Lawrence da Arábia, vi uma bela e onírica pelada. Sim meus caros, era um jogo de bola que não valia nada além do prazer, da sociabilidade em torno de uma partida de futebol. Sentei em uma mesa da tendinha que serve de bar no campo. Por lá pedi por uma cerveja e um simpático amigo me atendeu:

– Tem Itapaiva. Cinco conto.

Me serviu uma. Paguei e descobri com ele que o jogo era um clássico entre Marandubas x Nóis Guenta Mé. Eram times de amigos que se juntavam para bater uma bola e comer uma carne de sábado. Fiquei a observar, dei um bom gole na Itaipava e de primeira já vi a história se fazendo ali na minha frente.

No time do Nóis Guenta Mé, um jogador de corpo franzino e muita vontade, vestia a camisa 7. E então lhe foi feito um passe, certinho, bola correndo bonita, pelo campo de terra, facinha. O amigo, com uma concentração de fazer inveja a monge tibetano olhava para pelota marrom, vindo em sua direção e então… Furou! Sim, amigos, o nosso ponta direita deu aquela furada épica de fazer corar! O jogo continuou e em outra ocasião ao tentar matar a bola, deu de canela e assim seguiu: correndo muito, suando e dando galhofadas. Eis então que surge a coisa mais bela e mais fundamental para o futebol de várzea: O Perna de Pau!

Amigo leitor que me acompanha aqui nessas linhas vos digo de uma máxima perene: a vida seria muito mais poética se os homens de bem que habitam o mundo tivessem a dignidade de um perna de pau. O canela dura é um onírico, um lúdico. Há nele uma honradez, uma decência quase que comovente. Com a consciência de mau jogador de bola, o perna de pau atinge os píncaros de uma retidão de caráter épica. “Sai Parrão! Puta merda, ma como é ruim!!”

E esse é o nome de nosso personagem; Parrão! Parrão corre, Parrão chuta. Parrão faz lançamentos, Parrão bate escanteios. Parrão erra tudo! Mas ainda assim afirmo: Parrão é um Poeta!


Porque o papel do cronista não é buscar o berro impresso fácil das manchetes que o futebol das grandes corporações empurra goela abaixo, o esporte não é para isso.

Porque o papel do cronista não é buscar o berro impresso fácil das manchetes que o futebol das grandes corporações empurra goela abaixo, o esporte não é para isso. Se apenas existisse essa forma elitizada de ver e praticar o futebol, como estaria o nosso amigo Parrão? Jogaria ele no Corinthians, no Palmeiras ou num Mirassol da vida? Dariam ao nosso personagem uma camisa 7 para ele dar suas espetacadas? Pois é… Na várzea, Parrão joga. E sem Parrão a várzea não existiria. Para esse universo aqui retratado Parrão tem a importância que Paul Desmond tinha no Dave Brubeck Quartet, em sessões de Jazz alucinantes. Porque só com tudo que há de mais épico na perna de pau de Parrão, pode haver aqui uma crônica para os senhores lerem. Sem isso, estaríamos aqui tratando de obviedades objetivistas tolas e sem encanto, mas não…

O Perna de Pau é um Santo!

Por tudo isso, eu estufo meu peito, acerto minha postura e digo do fundo de meu coração feliz da vida: Parrão, eu te amo!


Foto: Maristela Raineri

Foto: Maristela Raineri

FELLINI VAI A VÁRZEA E O FOLK DO PARQUE NOVO ORATÓRIO

por Marcelo Mendez

O Museu da Pelada nasceu carioca. Por acaso. Sua origem é múltipla, pais baianos, mineiros, paulistas, tem de tudo nessa paternidade, até argentinos, italianos, franceses. Pelada pode até mudar de nome dependendo da região, a bola também, mas a essência não deixa dúvida: jogam todos do mesmo time, o Resenha Futebol Clube! Por isso, comemoramos a chegada de Marcelo Mendez, autor do livro “Contos da Várzea e outros blues” e que nos brindará semanalmente com histórias da várzea paulista. Nosso objetivo é ter correspondentes espalhados pelos quatro cantos do mundo. Um chutinho de cada vez, chegaremos lá! Fala aí, Marcelo!!!   

 


Marcelo Mendez nos brindará semanalmente com histórias da várzea paulista

Marcelo Mendez nos brindará semanalmente com histórias da várzea paulista

“Não sei se Federico Fellini chegou a ver um jogo de futebol na sua vida. Decerto que ele não devia fazer a mais vaga ideia do que seja futebol de várzea. Mas ao filmar, em 1973, o seu espetacular “Amarcord”, o grande cineasta italiano se aproximou demais desse universo do qual venho retratar aqui.

No filme, Fellini volta a sua cidade natal, Rimini, na região da Emília-Romanha, e lá viaja por seus sonhos, suas lembranças, suas reminiscências de infância, tudo para contar como aquilo o influenciou para o cinema, para a vida. Está aí a semelhança de nossas intenções:

Várzea para mim é memória

Quando decidi “mergulhar” na várzea, de imediato me veio à mente todas as minhas lembranças, tudo que de mais tenro há na minha relação com o futebol, de como isso chegou à minha vida e definiu tudo, absolutamente tudo, que formou o homem que sou hoje.

Lembro com carinho de uma das histórias que, agora, contarei aqui, no Museu da Pelada. Às 9h30 tomei rumo da pauta. Nesse caso, com todo respeito, que me desculpe meu mestre da Sétima Arte, mas de longe o meu destino era bem mais bonito do que o dele. Afinal de contas, que Rimini do mundo pode ser tão bela quanto a ida ao “Estádio Distrital da Cidade dos Meninos”?

“Cidade dos Meninos”…


Campo do Juá, Mauá, SP | Foto: Fabiano Ibidi.

Campo do Juá, Mauá, SP | Foto: Fabiano Ibidi.

Pois é. A várzea no Parque Novo Oratório acontece por lá. No espaço voltado para o futebol amador dentro de meu bairro, temos hoje dois campos; O do São Paulinho e o do Nacional do Parque Novo Oratório, clube que tem importância fundamental para a vida desse cronista que vos redige estas linhas.

Ali, no campo do Nacional, comecei minha vida no futebol como jogador da categoria “fraldinha”, aos seis anos de idade, em 1976. Saí de lá em 1991. Ao longo dos anos, várias lembranças. Das idas com Tio Edinho, que me levava para jogar, da primeira vez em que fui sozinho com minha chuteira Olímpica de seis travas debaixo do braço, caminhando pela Avenida das Nações, ainda de barro, da final contra o E.C Santo André pela Copa da Liga de Futebol Infantil, em 1983, e da minha camisa 10.

Camisa que usei pelo tempo que por lá estive, pelo tempo que sonhei ser Zico, que bailei como Platini, que fui imortal. Lembranças…

Ao longo daquele caminho, pensando em quem partiu, em quem não vejo mais, o olho encheu d`água. Caro leitor, vos afirmo: futebol serve para isso. Para emocionar, para interagir para se apropriar do meio social. A várzea tem essa função. E isto me fez querer ir andando, tal e qual em 1976 pelo mesmo caminho que o menino fazia para saber como andam as coisas nesse rico universo ludopédico. Bom…


Livro "Contos da várzea e outros blues", de Marcelo Mendez. https://www.museudapelada.com/269

Livro “Contos da várzea e outros blues”, de Marcelo Mendez. 

http://www.editoracorrego.com.br/produto/contos-da-varzea-e-outros-blues-2/

Ao chegar, descobri que jogavam Santa Cristina x Renovação. Os times são de Santo André, um deles do bairro Santa Cristina e o outro, o Renovação, do Jardim do Estádio. Não conhecia nenhum. Conversando aqui e ali fiquei sabendo que o jogo era pela Terceira Divisão da Várzea, um campeonato de 21 clubes disputado a pleno sol do verão do ABCD. Partida tranqüila 5×0 para o Santa Cristina. Mas aí vem o meu senão aqui relatado:

Importa mesmo saber quem vence, quem perde, quem ganha o título da terceira divisão da várzea andreense? Seguinte…

Ao longo destes textos que chamarei “Contos da Várzea”, esta coluna tratará de coisa muito mais importante do que as falácias e bobagens do resultado frio, calculista e chato. Os arredores e seus personagens terão aqui o espaço de protagonistas porque do contrário nada disso fará sentido. A várzea será retratada na sua essência.

Afinal de contas, aqui o Fellini sou eu…