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Uruguai

ESPECIAL 70 ANOS DA COPA DE 1950 – EM MONTEVIDÉU, CARA A CARA COM OS FANTASMAS

por Marco Antonio Rocha


A ideia veio como um chute seco, que passa rente à trave antes de morrer no fundo do gol. Eu estava no 328, ônibus que liga a Ilha do Governador ao Centro, quando vi de longe o Maracanã. O gigante já havia passado por plásticas mal-sucedidas e perdido boa parte da velha forma, mas ainda guardava sua essência intocada. Como quase sempre fazia, por minutos recordei vitórias que ali comemorei, derrotas que ali me fizeram chorar… Mas naquele dia foi diferente: devia ser fevereiro ou março de 2000 e me dei conta de que em poucos meses seriam evocados os 50 anos da Copa do Mundo, do malfadado Maracanazo. O ponto que me deixaria perto do Lance! chegou logo e desci, com uma pressa maior que a habitual. Já na redação, liguei o computador e comecei a pesquisar quais uruguaios que fizeram nossos pais e avós chorarem ainda estavam vivos.

Depois de algumas ligações para jornais do Uruguai, tinha em mãos o mapa que me levaria a um tesouro: eram números de telefone de quatro heróis que viviam em Montevidéu. Na mesma semana a ideia foi comprada por Álvaro Oliveira Filho, então editor-chefe do Lance!, que retrucou com apenas uma recomendação: não poderia ser uma viagem cara, era preciso economizar na quantidade de diárias. A pequenina capital uruguaia seria uma aliada e tanto. No dia seguinte, liguei para o quarteto, a começar por Schiaffino, elegante meia-armador que abriu caminho para a virada que gelou o Maracanã. E, assim, a agenda de entrevistas foi sendo preenchida com o apoiador Pérez, o goleiro Máspoli… Faltava, porém, fechar essa pequena grande seleção com o maior de todos: Ghiggia, sete letras capazes de fazer tremer alguém que, entre todas as Copas, tem como lembrança mais antiga a de 1982! O telefone toca uma, duas, três, quatro vezes. Quando achava que não atenderia, uma voz grave paralisou meu corpo. Expliquei num espanhol gaguejante que desejava encontrá-lo; ele me disse que morava na rua tal, em frente ao McDonald´s. Sua pronúncia e meu nervosismo fizeram com que as letras da lanchonete se tornassem uma só. Pedi que falasse de novo. E de novo, de novo. Enfim deduzi o que se tratava e desliguei. Definitivamente, aquele contato, como o de 50 anos atrás, não havia terminado bem…  

Nesta altura o jornalista Pedro Paulo Malta Santos e o fotógrafo Nelson Almeida já haviam entrado na aventura – o primeiro para produzir o material digital; o segundo para fotografar todos (e tudo). Desembarcamos no finalzinho de uma tarde de sábado, de olho no relógio para o bate-papo marcado com Schiaffino. Antes, porém, precisávamos comprar uma camisa da seleção. De táxi, peregrinamos por lojas de rua e shoppings. Absolutamente nenhuma tinha. A associação uruguaia havia rompido o contrato com a antiga fornecedora sem que tivesse fechado com uma nova. A hora ficava cada vez mais apertada até que, na última tentativa, enfim conseguimos a Celeste! E lá fomos nós para a orla de Montevidéu encontrar nosso personagem. 


De suéter vinho e calça comprida, o elegante ex-meia-armador que acumulara títulos por Peñarol, Milan e Roma nos aguardava na porta de casa. Com sorriso largo, recebeu-nos com a simplicidade de um gênio. Durante a entrevista, fez questão de tirar de um armário recuerdos e regalos de 1950: uma bandeja imitando o calçadão de Copacabana, registros e mais registros fotográficos em momentos de folga no Brasil. As memórias guardadas na cabeça, porém, por vezes se perdiam no tempo e nas falas. Mas recorreu a uma precisão extrema para desqualificar não apenas seu gol, mas o de Ghiggia. Com a camisa devidamente autografada, fomos enfim para o hotel.

No domingo pela manhã, chegar à casa de Pérez não foi fácil. Uma feira livre bloqueava a rua de árvores enormes e casas de muros baixos. Não fossem os vendedores anunciando seus produtos em espanhol, poderíamos imaginar que estávamos no subúrbio carioca. Em um canto da sala, evidências da época de jogador: um quadro seu com a camisa do Nacional; um pequeno boneco de louça, em referência ao tempo em que desfilava uma técnica refinada pelos gramados; e a réplica da Jules Rimet. Aquele altar, porém, colocado estrategicamente de frente para a porta de entrada, era mais um monumento à amargura do que à Copa de 1950. Entre a tristeza que causou aos amigos brasileiros e a falta de reconhecimento dos dirigentes do Uruguai, Pérez deixava claro que não guardava boas lembranças do dia em que, em sua visão, brasileiros e uruguaios saíram derrotados. Antes da despedida, fomos brindados com doses de uísque caubói — não é todos os dias em que se bebe com um campeão do mundo!


A conversa com o craque, ídolo tardio do Nacional, dificultou a digestão do almoço de domingo, por melhor que seja a carne uruguaia. Ainda mais quando a sobremesa é uma entrevista com… Ghiggia. “Osso duro de roer!”, muitos diziam quando comentávamos sobre nossos planos. “Ele cobra para dar entrevistas. E caro!”, avisavam outros. Foi preciso pagar para ver, ficar frente a frente com uma fera que, do seu modo milongueiro, mostrou-se um doce. Quando chegamos ao endereço anotado, vi o tal McDonald´s e abri um sorriso. Era ali, em um sobrado acanhado e escuro, que vivia um Rei de Copas. Subimos por uma escada estreita, rente à parede sem pintura. A poucos degraus do fim, ele surgiu: cabelos milimetricamente alinhados para trás, bigode fino como o dos vilões da Disney e camisa preta de mangas compridas e gola rolê. Com 1,69m, visto de baixo, parecia mais alto; olhos nos olhos, parecia um gigante.

Já acomodados em torno de uma pequena mesa, achamos por bem puxar papo com assuntos triviais. Comentamos algo sobre sua coleção de fitas-cassetes de músicos brasileiros, cuidadosamente arrumada sobre a lareira: “Me encanta Gal Costa”, disse, como se quisesse deixar seus visitantes à vontade. Imaginamos que fosse a senha para falar do Brasil, do Mundial. A interrupção veio acompanhada de reticências, as mais demoradas de nossas vidas: “Pero yo cobro…”. As pernas tremeram, era como se estivéssemos diante de Ghiggia no Maracanazo de 50 anos antes. Um silêncio ensurdecedor tomou conta da casa nos segundos seguintes. E só foi quebrado pelo próprio craque: “Mas vou falar de graça com vocês, que saíram do Brasil só para recordar essa história. Aqui a imprensa parece não saber o que represento”. Após uma longa entrevista, saímos de lá com a sensação de termos virado, à moda uruguaia, um jogo improvável. Um jogo em que vilões e heróis se confundem. Tudo é divino e maravilhoso.


Da apreensão ao encantamento, começamos a segunda-feira sabendo que nada poderia dar errado naquela viagem. E tivemos certeza quando chegamos à casa de Máspoli, um simpático velhinho de 82 anos. Com visão muito particular sobre aquele 16 de julho, o goleiro campeão de 1950 nos surpreendeu ao dizer que o Brasil, pelo vexame que a derrota em casa provocaria, sentira o peso do gol de empate. E mais: que a seleção brasileira havia sido devidamente analisada antes da grande final — ao lado do capitão Obdulio Varela, Tejera e Gambetta, Máspoli era uma das vozes mais ativas junto ao técnico Juan López. 

Estávamos bem perto do mítico Estádio Centenário que, por feliz coincidência, abrigava o museu dedicado às glórias uruguaias. A sorte, definitivamente, estava ao nosso lado. Ou pelo menos parecia estar… Procura daqui, procura dali e eis que, enfim, encontramos a entrada. Provavelmente passamos por ela mais de uma vez, já que estava escondida por um… caminhão de mudança! Caixas e mais caixas saíam de lá. “Vamos levar tudo para a associação, ficará guardado antes da exposição no shopping central”, explicou um dos funcionários. Gol do Uruguai, o Maracanã se cala, lágrimas ameaçam escorrer com aquele gol já nos acréscimos da nossa viagem. “O diretor virá em breve, ele pode falar com vocês”, disse outro homem, a caminho do veículo. E de fato logo chegou, mostrando surpresa pelo nosso interesse: “Vocês estão aqui para fazer uma reportagem sobre a Copa que nós ganhamos de vocês!? Venham comigo, há muitas coisas ainda lá dentro”. 

O que vimos dentro daquele museu improvisado embaixo da arquibancada era uma espécie de arca perdida, o Santo Graal dos deuses de chuteiras: a réplica da taça; a camisa celeste usada por Obdulio, com o 5 em vermelho às costas; a bola que enganou Barbosa e condenou um dos maiores goleiros brasileiros do Brasil à sua prisão perpétua… Já fora das redomas, cada objeto passou pelas nossas mãos para serem fotografados por Nelson Almeida. Minutos antes, achávamos que não chegaríamos nem perto daquele tesouro; naquele momento, tínhamos a História entre os dedos. A vida é mesmo tão imprevisível quanto o futebol. As poucas horas em Montevidéu tiveram o valor de anos, décadas, uma vida inteira. A bordo do 328, passei outras tantas vezes pelo Maracanã, mas jamais olhei para o velho estádio da mesma forma.  

SUBVERTENDO A TRAGÉDIA DE 50

por Émerson Gáspari

Um homem ter mais de noventa anos é uma dádiva. Ainda mais se este ancião estiver lúcido e apto a produzir fantasias futebolísticas. Imagine então, alguém que assistiu ao vivo, a todas as Copas. Desde a primeira, quando meus pais, de boa condição financeira e em férias no Uruguai, me levaram, em 1930. Tenho noção do que isso significa: talvez eu seja o único ser humano do planeta que tenha tido este privilégio, até hoje.


Guardo todos os ingressos e especialmente as recordações do que estas cansadas retinas já viram nos Mundiais. E com autoridade de “testemunha ocular”, lhes afirmo: nem sempre os “deuses do futebol” foram justos. Daí me propor a promover “justiça divina”, usando minha fantástica memória e poder criativo, para alterar os fatos da história e recontar o futebol segundo minha lógica, numa “realidade alternativa”. Comecemos por aquela tragédia do “Maracanazzo” de 50!

Domingo aprazível de 16 de julho de 1950, na belíssima cidade do Rio de Janeiro, capital de um país com 52 milhões de habitantes, dos quais 205 mil se espremem num Maracanã abarrotado, inacabado, na finalíssima entre Brasil e Uruguai, pela IV Copa do Mundo.

Misturado aos presentes, me seguro a uma das barras de sustentação do anel superior do estádio. Cheguei ao meio-dia. Vim de bonde e prossegui a pé, entre a multidão que surgia por todos os lados e que agora vibra com a entrada das seleções em campo. O discurso do prefeito Ângelo Mendes de Morais aumenta a obrigação da vitória e eu, vascaíno e fã de Barbosa, torço pela consagração daquele que é meu maior ídolo em campo, hoje.

O Brasil de Barbosa; Augusto, Juvenal e Bigode; Bauer e Danilo Alvim; Friaça, Zizinho, Ademir de Menezes, Jair Rosa Pinto e Chico; do técnico Flávio Costa. Os uruguaios, do treinador Juan López Fontana: Máspoli; Andrade, Matias Gonzáles e Tejera; Gambetta e Obdúlio Varela; Ghiggia, Júlio Perez, Míguez, Schiaffino e Morán.

O jornalista Mário Filho – fundamental para o Maracanã acontecer – realiza esplêndida cobertura do evento na imprensa escrita e pelo rádio, os torcedores curtem Antônio Cordeiro e Jorge Curi narrando pela Rádio Nacional, Pedro Luís pela Pan-Americana, entre outros.

Nossa seleção – com seu uniforme todo branco – fez campanha exemplar até aqui: 4×0 no México, 2×2 com a Suíça, 2×0 na Iugoslávia e depois, no quadrangular final, 7×1 na Suécia e 6×1 na Espanha. Já a “Celeste Olímpica”, por obra do estranho regulamento, teve trajetória mais curta: 8×0 na Bolívia, 2×2 com a Espanha e 3×2 na Suécia, antes de chegar à final.

A grande surpresa até agora é a eliminação da seleção inglesa, que conseguiu perder para os EUA, em Belo Horizonte. Outra decepção é a bicampeã Itália (poderia até conquistar a Jules Rimet em definitivo) também eliminada precocemente, mas a base de sua seleção morreu num trágico acidente aéreo que vitimou toda a equipe do Torino, um ano antes do Mundial.

Sou supersticioso e não estou com bom pressentimento: primeiro, porque hastearam nossa bandeira de cabeça para baixo. Depois, porque pela primeira vez perdemos no “toss” e começaremos jogando do lado oposto ao habitual. Mas não há de ser nada!


Sob o apito de George Reader, árbitro inglês, às 14h55m o jogo começa: Ademir rola no círculo central para Jair, a seu lado, que atrasa para Bauer.

Olho em volta e meus pensamentos se perdem em meio aquele universo de pessoas ávidas pela vitória e o título. Já pensou se o Brasil me perde um jogo desses?

Aqueles milhares de lenços brancos girados no ar seriam usados para enxugar as lágrimas da derrota, mas não seriam suficientes para conter a tristeza pelo fracasso.

Súbito, sou despertado pelo som da massa, que vibra com o escanteio a nosso favor, logo no minuto inicial. São mais de dois milhões de cariocas torcendo em casa e nas ruas; dez por cento deles, aqui no Maraca!

O jogo é renhido: o Uruguai procura travar o meio-campo, num ferrenho bloqueio aos meias  Zizinho e Jair e ao agora centroavante e artilheiro Ademir, dificultando-lhes os espaços. O Brasil procura tomar a iniciativa sempre, mas os gringos controlam bem as investidas adversárias e são mais incisivos, no contra-ataque: em menos de 15 minutos já levaram perigo duas vezes à meta brasileira e agora, perdem outra chance, numa bomba que passa raspando, atirada por Ghiggia. Ele, que ao lado de Júlio Pérez, está promovendo um verdadeiro rebuliço pela ponta direita, contra Bigode e Juvenal. 

O Brasil é melhor, domina a cancha e chuta mais ao gol, porém, se perde nas dificuldades em penetrar a bem postada zaga, tendo à frente o “caudilho” Obdúlio Varela. Chamado de “Negro Jefe”, ele grita com os companheiros e pressiona o árbitro o tempo todo, pois sabe que a chance celeste reside em suportar o ataque brasileiro. Num dos lances, aos 28 minutos (enquanto o jogo está paralisado), desfere um tapa em Bigode, após uma falta, tentando intimidá-lo, sem que o juiz intervenha.

Mas o selecionado brasileiro não deixa de atacar e de perder chances seguidas, as últimas com Jair, Zizinho e Chico. É quando o Uruguai fustiga novamente é Míguez, de fora da área, acerta o poste esquerdo da meta de Barbosa. 

O jogo, que a torcida previa ser fácil, com vitória de goleada, vai se afigurando como o autêntico clássico sul-americano que de fato é. Uma guerra na qual os entrincheirados inimigos resistem bravamente. Quando o juiz encerra a primeira etapa, os brasileiros já atacaram dezessete vezes, contra apenas cinco, do adversário.


Há alguma apreensão, mas, sobretudo a confiança num selecionado quase todo carioca, com nada menos do que oito titulares atuando aqui. A base é do meu Vascão, o “Expresso da Vitória”, vencedor do Sul-Americano de Campeões de 1948.

Pontualmente às 16h05min; recomeça o prélio. As equipes não têm mudanças, pois as substituições são proibidas. Pessoalmente, dói o coração ver o jovem Nilton Santos preterido na escalação: ele que joga o “fino” no Botafogo. Não sei se o Ely do Amparo ali atrás também não seria uma boa. Mas tenhamos fé, o time brasileiro é valoroso e nada há de dar errado.

Passamos do primeiro minuto da etapa complementar: Máspoli recebe um recuo de Júlio Pérez e chuta para longe. Augusto cabeceia o balão na direita, onde Andrade antecipa-se à Friaça. Só que Zizinho intercepta e aciona Ademir, próximo da área. Este rola na direita, para a lépida entrada de Friaça, que invade a grande área pelo lado direito, batendo cruzado, antes que Máspoli possa sair da meta, pra fechar o ângulo: 1×0!

Explode o “formigueiro humano” no Maracanã: rojões eclodem aos montes, enquanto os gritos de “Brasil, Brasil”, se sucedem: falta pouco para colocarmos as mãos na Taça Jules Rimet. Nós, que encaramos o desafio de sediar o Mundial num período de pós-guerra complicado para o mundo. Nós, que levantamos este gigante de cimento em menos de dois anos. Nós, que somos o único país a participar das quatro Copas até aqui realizadas. Nós, que por força do regulamento, jogamos por um empate e agora estamos na frente, em pleno começo de segundo tempo! Merecemos o título!

Mas o Uruguai não pensa assim: Obdúlio grita com a equipe, pede garra, pede alma.


Alucinado, cobra que cada um, dê um pouco mais de si, na cancha. Reclama de tudo e de todos. O público não compreende e passa a vaiá-lo por isso. Só que o inimigo, acordado pelos avisos de seu capitão, vem para cima. O duelo entre Ghiggia e Bigode se intensifica. Júlio Pérez se multiplica em campo. E as chances uruguaias vão surgindo, pois o jogo é lá e cá, com os brasileiros fazendo mais faltas inclusive, até aqui.

Eles não se entregam: brigam por todas as bolas e acabam sendo recompensados aos 20 minutos: Júlio Perez passa por Ademir e entrega a Obdúlio, que abre na direita para Ghiggia. Este vence Bigode na corrida e centra para Schiaffino, já na área, se antecipar a Juvenal e chutar de primeira, no alto. O couro bate na parte superior da rede, após vencer Barbosa. Tudo igual! E muito a contragosto, o responsável pelo placar manual altera o resultado no marcador do Maracanã para 1×1.

Silêncio sepulcral no “maior do mundo”. Dá para ouvir a comemoração dos rivais, gritando, se abraçando. A multidão se cala, pressentindo o pior. O medo se instala no coração de cada brasileiro. A perplexidade contamina até aqueles que a milhares de quilômetros acompanham o drama pelas ondas do rádio.

Incrédulo, o time se segura como pode; sente o baque. Parece agora antever uma tragédia não anunciada. Pela cabeça de muitos, os erros afloram: a mudança da concentração, os discursos políticos que não permitiram aos atletas se alimentarem direito, a interminável missa de duas horas em pé imposta pelo treinador, a euforia desmedida da imprensa e da torcida, pintando um Brasil campeão antecipado.

A dramaticidade vai ganhando contornos inigualáveis: Barbosa bate um tiro de meta e Obdúlio intercepta, entregando a Míguez, que passa para Júlio Pérez. Daí para Ghiggia na ponta, que vence Bigode e centra de novo para Schiaffino, mas este cabeceia para fora. Ufa! Barbosa repõe a bola, Tejera corta de cabeça, entregando-a para Obdúlio e daí, para Júlio Pérez. Mas Danilo neutraliza, passando a Ademir que tabela com Zizinho. “Mestre Ziza” lança Chico, que dá a Jair, invadindo a tumultuada grande área. O chute sai violento, Máspoli defende, mas solta e Ademir na corrida, atinge o goleiro, enquanto na confusão, Gambetta toca para trás, quase marcando contra. Que jogo, gente!

Aquela tensão absurda no campo é transmitida para todos nós, nas arquibancadas. As expressões nos rostos extenuados dos jogadores, o esforço do árbitro para manter a disciplina em campo e o sofrimento fica escancarado na face de cada torcedor presente.


São 33 minutos. Uma raivosa disputa de bola entre Jair, Tejera, Danilo e Júlio Perez, termina com a pelota nos pés de Míguez. Ele devolve para Júlio Perez, que mesmo marcado por Jair, descola um passe em profundidade para Ghiggia, o qual começa a correr pela direita, fechando em diagonal, com Bigode na sua escolta.

Instantaneamente, três uruguaios avançam na iminência de um novo centro. Ghiggia já deixou Bigode para trás, invade a área pela direita, mas está perdendo o ângulo e prepara-se para cruzar. Nosso arqueiro dá dois passos à frente, para tentar interceptar o cruzamento, ante a súbita aproximação dos adversários, que invadem a grande área, pelo meio. Juvenal vem chegando atrasado, no lance. Minha respiração trava, o coração congela e parece vir à boca.

É agora, meu Deus!

Gigghia, surpreendentemente, atira para o gol. Pega de mau jeito na bola, que mesmo assim, desgraçadamente, toma o rumo da meta brasileira. Vai entrar! Vamos perder! Não!!!

Então, Moacir Barbosa Nascimento salta para trás feito um gato e de ponta de dedos, toca na pelota, que raspa a trave e sai pela linha de fundo.

Uuuhhh! O som das arquibancadas, ecoando por todos os lados, por si só, já diz tudo: o susto abala muita gente no estádio e talvez tenha enfartado alguns torcedores pelo Brasil afora, agarrados a um rádio, nesse instante. Foi a maior chance uruguaia.

Imagino o que teria sido se essa bola entrasse e perdêssemos a final: Barbosa seria crucificado, massacrado e não só ele: todos os negros e mulatos envolvidos no lance fatal, também.


O maldito racismo disfarçadamente dando as caras de novo e o povo escolhendo seus “bodes expiatórios”. O dia 16 de julho seria taxado de o “Dia da Derrota” e essa história, jamais esquecida, até que seus protagonistas morressem, sem terem sido perdoados pela imprensa e pela torcida, num cruel e injusto julgamento. Por tudo isso e muito mais, ainda bem que essa bola não entrou…

O susto parece acordar a equipe brasileira, que agora passa a atacar bastante, mesmo que de maneira afoita. O Uruguai centraliza seus ataques em Gigghia, que às vezes deixa Bigode em maus lençóis. E o tempo vai passando.

De súbito, informam o público oficial da partida: 173.500 pagantes. Mas sabemos que as catracas acabaram sendo liberadas bem antes do jogo e que o público real superou 200 mil pessoas. É a maior plateia de um evento esportivo em todos os tempos.

O espetáculo vai terminando. No rádio de um torcedor próximo de mim, ouço que em São Paulo, a Suécia acaba de vencer a Espanha por 3×1 e de ficar com o terceiro lugar.

Aqui, instantes finais de uma agonia que parece interminável. Aflitos, os torcedores não ousam mais comemorar antes do fim, mesmo já estando bem próximo dele.

Um gol pode mudar a história desta Copa.

São 43 minutos; Matías González bate tiro de meta. Danilo intercepta e rola para Jair, que levanta para Chico, só que Gambetta é mais esperto: a pelota vai para Júlio Perez, que a entrega à Míguez. Deste, parte um lançamento para Ghiggia. O bandeirinha Mr. Ellis marca impedimento. Apesar disso, ele toca por cobertura diante de Barbosa, com o balão indo se perder pela linha de fundo. Mais um susto: que seja o último!

O Brasil desce para o ataque e Ademir desperdiça a chance de marcar, chutando fraco e para fora, após um centro de Friaça. Os nervos à flor da pele atrapalham demais nossa seleção, apesar da vantagem do empate. 

Já os torcedores não aguentam mais aquele suplício; muitos choram, enquanto outros pedem o fim da peleja. A maioria, no entanto, aguarda em silêncio, roendo as unhas.

A imagem do Cristo Redentor, com os braços abertos sobre a cidade me vem à cabeça e rezo com todas as minhas forças, pelo título agora tão próximo. Outros me seguem, numa emocionada oração.

O Brasil ataca com Zizinho, que cai na área e os uruguaios puxam novo contragolpe. Mas três deles estão impedidos. Juvenal cobra na área, Obdúlio rebate. Ademir recupera e lança Friaça, desarmado por Gambetta. Augusto apanha a sobra e devolve à Friaça que mesmo desequilibrado, centra. Gambetta põe a escanteio.


Atenção: pode ser o último lance da batalha! São 45 minutos do tempo derradeiro; Friaça cobra o córner, Jair sobe apoiando-se faltosamente em Máspoli que é encoberto, a bola vai sobrar limpa na área para Gambetta, mas o juiz, de costas para o lance, trila seu apito e encerra o calvário: o Brasil é campeão do mundooo!

Indescritível! O Maracanã parece que vai ruir: fogos estourando por todos os lados (dentro e fora do estádio), lenços sendo agitados, pessoas pulando, chorando de emoção, gritos, aplausos, sorrisos e abraços aliviados trocados por todos nós: enfim, somos campeões mundiais!

Jules Rimet aparece no gramado e entrega a Taça do Mundo ao capitão Augusto, que a repassa aos companheiros de equipe. Barbosa a abraça ternamente e abre um sorriso largo que ilumina aquele semblante imaculadamente negro. Ele, mais do que ninguém, merece todo nosso carinho, respeito e reconhecimento. Não resisto à cena e deixo as lágrimas rolarem pelo meu rosto. A emoção toma conta de mim.

Começa a “volta olímpica” pelo gramado, os jogadores seguidos por um batalhão de fotógrafos e repórteres. Não há quem não se emocione. Os uruguaios são aplaudidos pelo povo, que reconhece a bravura dos adversários, valorizando nossa conquista.


São 17h e o céu do Rio de Janeiro vai se iluminando cada vez mais pelo foguetório interminável, prenúncio de uma noite de intensas comemorações, com direito a muito samba. Fato testemunhado pelo capitão uruguaio Obdúlio Varela, que horas depois da decisão, percorre as ruas cariocas sem ser notado e sente sua tristeza pela derrota ser suplantada pela alegria que o título causou a aquele povo tão simples e simpático.

Mal sabe ele que a 750 quilômetros dali, numa cidade chamada Bauru, horas antes, o futuro já começaria a ser traçado, quando o jogador Dondinho, ao desligar o rádio após a decisão, chora de felicidade pelo título conquistado.

Intrigado, não entendendo direito o que se passa e pensando que o pai esteja triste de verdade, seu filho Edson, de apenas nove anos (futuro Pelé) lhe faz uma promessa.


– Não fique assim, papai. Quando eu crescer, vou ser jogador de futebol e ganhar uma Copa do Mundo pro senhor!

O que se passou depois disso? Prefiro deixar por conta da imaginação de todos vocês!

 A minha, usarei para recontar a “Tragédia do Sarriá” na Copa de 82, num próximo texto.

 Até lá, amigos!

RUBÉN PAZ, O 10 DO RIO DA PRATA E FINAL DO MUNDIALITO

por Marcelo Mendez


O dia 10 de janeiro de 1981 era quente na Rua Tanger.

Todas as luzes do mundo clarearam a manhã do Parque Novo Oratório e a periferia de Santo André estava em festa.

Em meio aos “bons dias” trocados, o vai e vem dos carrinhos de feira que subiam rumo à Rua Fenícia onde ficava a feira livre de domingo, lá íamos minha mãe e eu puxando nosso carrinho. Enquanto a mãe ia falando com as pessoas que também iam para o mesmo lugar, na frente eu fazia peripécias com o carrinho. Assim como o Luciano, que também fazia o mesmo. O encontrei na ladeira da Rua Germânia:

– É hoje a final, hein, Marcelo??

– Sim! Contra o Uruguai lá na casa deles. Mas acho que dá pra ganhar…

– Dá, sim. Mas eles têm mó timão…

– Bons jogadores…

– Krasoswski, Venancio Ramos, Morales, De Leon, Rodolfo Rodriguez no gol, o tal de Vitorino que até dormindo mete gol. Fora aquele 10 lá, Marcelo, como chama?

O nome da classe é Rubén Paz


Naquele dia, ao invés de ter apenas nós, os moleques da Rua Tanger, na casa do Tocão, havia também os nossos pais, vizinhos, os parentes do Tocão. 

Seu Renato, pai dele, fez um churrasco, chamou todo mundo e a festa era grande.

Ao longo do dia, comentários dos adultos, das rádios que estavam em Montevidéu, flashes da TV, iam nos dando a exata dimensão da grandeza que estava envolvida numa decisão entre Brasil x Uruguai no Estádio Centenário.

Fazia 30 anos que eles haviam nos vencido no Maracanã no fatídico Mundial de 1950 e no banco deles, como técnico, uma lenda: Roque Maspoli, o goleiro. Mas quando o jogo começou não era para o banco que olhávamos, assim como o pensamento também estava longe de 1950.

– Porra, mas como joga esse tal de Rubén Paz! – exclamou seu Renato.

Sim…

Rubén Paz era o camisa 10 do Uruguai. Vendo-o jogar, descobri que era mais um de quem jamais torceria contra.

Pela cancha do Centenário, Paz não andava, nem corria; Desfilava. Craque de bola, não pisava o mesmo chão que os outros tantos mortais que ali estavam. Seu olhar tinha uma altivez imperial, seus passes tinham a imponência de quem distribui sonetos ao invés de bolas. Nosso time que não era ruim, não conseguia jamais pará-lo. E aos 11 anos, comecei a entender que o futebol cria seus semi deuses, suas lendas e que elas são inatingíveis, por charme, sonho e necessidade de se perpetuar como poesia.

E a lenda criou a jogada para o primeiro gol de Barrios, para o Uruguai. Porém o placar não ficou assim por muito tempo. De pênalti, Sócrates empatou. Depois disso, vem o outro ensinamento do futebol…

Camisa 9 não faz bolinha; Mete gol

O bom time do Uruguai tinha como base o Nacional, campeão da Libertadores de 1980.

Foi via a tela da TV Record, que vimos a final do campeonato, em que os uruguaios venceram o forte Internacional do Falcão e do Batista nas duas partidas da decisão. Nela apareceu um centroavante baixinho, rápido feito uma flecha, que como o Luciano falou, até dormindo fazia gol…

– Tem que tomar cuidado com esse Vitorino! – recomendou meu Pai.

– Não tá jogando nada, Mauro! – respondeu seu Renato.

– Ele é centroavante. Centroavante não precisa jogar bem, precisa fazer gol!

E como tal, aos 35 do segundo tempo, Waldemar Vitorino, pequeno, rápido e esperto, apareceu no meio da pequena área do Brasil para abaixar e cabecear a bola para o fundo do gol. Era o 2×1 que acabaria por ser o resultado final.

Na festa, meu Pai e seu Renato não ficaram tristes, pelo contrário; Vibravam, porque segundo eles, o povo uruguaio fez um coro lá gritando que “Se vai acabar, a ditadura militar”

Aos 11 anos, eu já sabia do que falavam, mas o que me chamou atenção foi ver o Brasil perder uma decisão, a primeira da minha geração. Ainda assim,  seguíamos firmes na torcida.

O caminho de 1982 ia se pavimentando…

PALPITES DO MATEUS

por Mateus Ribeiro


2018 é ano de Copa do Mundo e, inevitavelmente, os apaixonados por futebol não conseguem pensar em outra coisa. Por isso, a partir de hoje, começamos a analisar os grupos do torneio mais importante do planeta.

O Grupo A da Copa do Mundo 2018 é um dos mais equilibrados da competição. O problema reside no fato de que o equilíbrio existe porque o grupo não possui nenhuma seleção capaz de causar muito medo em algum adversário.


A Rúsisa, dona da casa, luta para não conseguir a proeza de ser eliminada na primeira fase dentro dos seus domínios, “feito” que apenas a África do Sul conseguiu realizar, em 2010. Pelo que vimos na Copa das Confederações e na Eurocopa 2016, é bem difícil que isso aconteça.

Talvez o fator casa ajude, e o fato do grupo não ser nenhuma pedreira também. Mas fato é que não existe nenhum talento individual, tampouco força coletiva, capaz de fazer com que os russos sonhem com algo além da primeira fase. Briga pelo segundo lugar do grupo.


Já o Egito volta a disputar um mundial após 28 anos. Talvez seja a melhor seleção africana dos últimos tempos, o que também não ajuda muito, já que a Costa do Marfim tinha esse título nas últimas três Copas, e não conseguiu nada grandioso.

Mesmo assim, parece ser a segunda força do grupo, muito por conta do talento individual de Salah, que evoluiu muito, e hoje é um dos principais nomes da Premier League. Briga por uma vaga nas oitavas de final. Dificilmente passará disso, mas passar pela fase de grupos já seria uma grande conquista para os faraós.


O Uruguai, além da força de sua camisa, conta com dois dos melhores atacantes do planeta, Suárez e Cavani. Apesar de uma geração envelhecida, é a principal força do grupo, seja pela sua camisa, seja pelos jogadores que a vestem.

Apesar de já não ter o mesmo poderio de 2010 e de 2014, é a principal seleção do grupo, e uma das principais forças da América do Sul. Só não passa para as oitavas em caso de uma tragédia gigantesca.

Por fim, a seleção da Arábia Saudita volta a participar de um mundial, depois da ausência nas duas últimas edições. Dificilmente podemos esperar alguma coisa dos sauditas, que participarão da Copa pela quinta vez.


A classificação não foi das mais fáceis, e além de não possuir muita tradição em mundiais, não possui um talento capaz de decidir uma partida, ou uma classificação para a segunda fase. Provavelmente fica no meio do caminho, junto da seleção anfitriã.

Uma vez que dei os pitacos, volto a falar do grupo. Talvez, ao lado do grupo H, seja o mais enigmático da Copa. Podemos esperar qualquer coisa, inclusive partidas horrorosas, como Rússia x Arábia Saudita,  ou um jogo interessante como Uruguai x Egito. Mas, como tudo na vida, o ideal a fazer é esperar para ver, e se divertir com as partidas do grupo.

É bem provável que eu queime minha língua. E espero que vocês voltem aqui pra me cobrar se isso acontecer!

E você, qual seu palpite?

Um abraço, e até a próxima.

AS ÁGUAS DO MARACA

por Helio Brasil


16 de julho de 1950, Estádio do Maracanã (o tão carioca Maraca), Rio de Janeiro, decisão da Copa do Mundo de Futebol: a Seleção Brasileira, plena de talentos, favorita dos aficionados, é derrotada pela seleção uruguaia, pelo placar de dois a um. Bastaria o empate para que o Brasil se sagrasse campeão do mundo, porém…

Ah, se suas margens falassem… os estreitos lábios lodosos muito diriam do choro ali derramado no pior ano do mais fosco julho de nossas torcedoras vidas. E naquelas margens, mergulharam as cusparadas que não atingiram Ghigghiae as obdúlias garras. Ah, Maraca, ah Maracanã, fiapo de rio (risível ao lado dos amazônicos e iguaçudosfranciscos) a tangenciar o colosso dos colossos e a nossa (até então, orgulhosa) alma no templo da deusa-bola e do deus-demônio chamado craque. No trágico dia, os noventa minutos parcelados na decisão mundial: entrada de esperança, prestações de angústia, breve cota de euforia ao quebrar-se o gelo (é gol!) no calor de friaça (gol! gol!) após quase sessenta minutos de vergonhoso zero, no placar de zero (onde estás goleada?), pois para quem almeja vencer, chegar junto é derrota. Juntas, morrem na grama as prometidas fintas do mestre, as arrancadas do queixada; não funcionam as finas canelas que não mais detonam balaços. Quem os ignorou? Mas quem, quem o faria? Máspoli y sus muchachos. E o grande anel foi emudecido como já nos engasgara o gol de empate e nos calaram os pés de Ghigghia. O que restou de nossas miseráveis almas de náufragos, acusando goleiros e zagueiros, em vão culpados e execrados? Pobres, batidos por destino tão macanudo e adversários que, por todos os deuses ungidos, chamados serão, sempre, “maracanudos”?


(Foto: Reprodução)

E o indiferente rio vindo da serra, seguiu, carregando na torrente lágrimas, insultos e, em pedaços, as auriverdes esperanças afinal cuspidas e assoreadas na cintilante baía com fria e incrédula palidez. Hão de passar, passaram e passam as águas do maraca, sem que se lave o lodo da derrota preso na concreta garganta que jamais viu desnuda a tão sonhada glória.


(Foto: Reprodução)

Restou-nos cruzar atlânticos e cordilheiras e nas nórdicas paragens devolver humilhações, fazer tombar a arrogância. Deixar escravos, por fim, bola e mundo com os insolentes lençóis de um imberbe negrinho, peitar o mundo com a couraça pernambucana, secar as lágrimas nas folhas secas de um príncipe negro e, hosanas, garrinchar e garrinchar adversários, deixá-los torcidos na grama, provando a cal que assinala e desenha o verde campo de gloriosas pelejas.