por Marcos Vinicius Cabral
“Júlio César era um personagem, aquilo era um monstro, onde eu botava o manto e virava aquilo. Eu queria driblar. Para mim, era como matar a fome”, disse certa vez Júlio César Uri Geller, ex-ponta esquerda do Flamengo.
Após mais um dia de aula no extinto Colégio Parque Proletário Número Três, na Comunidade da Praia do Pinto, o pequeno Julinho se preparava para mais um dia daqueles.
De manhã até o meio-dia, o menino aplicava dribles nos sóis, nas chuvas, nos olhares desconfiados das pessoas e duelava com a fome, seu mais duro marcador.
Com uma flanela nas mãos, tentava convencer os frequentadores do Clube de Regatas do Flamengo a lhe dar uns trocados por ter dado um ‘capricho’ em seus carros.
Era a garantia do almoço.
Com a barriga cheia, todo cuidado era pouco para não perder o dinheirinho arrecadado ao pular os muros altos da Gávea, para se juntar aos outros meninos, e assim, passar despercebido aos olhos de seu Zizinho, técnico do dente de leite do clube.
Não bastassem os treinos exaustivos na parte da tarde do dia, o menino franzino se desnudava das chuteiras, meiões e caneleiras, para atuar noutra posição: vendedor de amendoins torrados.
Tudo isso para ajudar dona Carmita, sua mãe, nas despesas de casa.
Criado apenas pela poetisa – como era chamada pelo filho Julinho – a adversidade era grande.
Mas o destino, um duro marcador, quase reduziu a pó sua vida e as de outras nove mil pessoas.
Na ocasião, naquele 11 de maio de 1969, mil barracos na Favela da Praia do Pinto, zona sul do Rio de Janeiro, viraram cinzas em um incêndio onde as causas nunca foram reveladas.
Das centenas de milhares de pessoas atingidas pela tragédia, uma em especial não se curvou ao destino: Júlio César da Silva Gurjol.
Sorriso doce, olhar obstinado, herança da mãe, a vida lhe colocaria frente a frente com Adílio, em 1963.
Era Cruzada São Sebastião x Favela da Praia do Pinto.
Era Julinho x Brown.
“Disseram que um garoto jogava mais do que eu. Eu duvidei! Tínhamos seis ou sete anos. Foi aí que começou a nossa história”, conta Júlio César Uri Geller numa tarde dessas na Gávea.
História esta construída com muitos gols, jogadas, assistências e tabelinhas que, desde o dente de leite até os profissionais, foi interrompida pela convocação do camisa 11 para disputar pela Seleção, o Pan-Americano em 1975, em gramados mexicanos.
Mas nesse mesmo ano, o mundo conhecia Uri Geller, o ilusionista que deixou todos boquiabertos ao dobrar talheres, identificar objetos ocultos e parar ou acelerar ponteiros de relógios a distância.
A Rede Globo aproveitou e promoveu dois programas especiais ao vivo com o israelense: o primeiro, direto do Teatro Fênix, no Rio de Janeiro, no dia 15 de julho de 1976, uma quinta-feira, e o segundo, no Teatro Globo, na capital paulista, no dia 1º de agosto, um domingo.
Os dois programas fizeram muito sucesso e entraram na lista dos mais vistos daquele ano.
Mas, Júlio César também era visto.
Tão visto que no ano seguinte, disputou sua primeira (e única) Olimpíada, a do Canadá
O quarto lugar teve um sabor amargo que contrastou com o doce de seu empréstimo ao Remo em 1977.
Era sua redenção.
Porém, superou mais uma vez a adversidade e ganhou da revista Placar a Bola de Prata e voltou ao clube de coração em 1979, a pedido de Cláudio Coutinho (1939-1981).
– Agradeço muito ao Leão do Norte, por ter me dado a oportunidade de vestir aquela camisa e com ela ter sido escolhido o melhor ponta-esquerda do país! – diz orgulhoso.
Mas foi em abril, naquele 1979, num amistoso contra o Atlético-MG no Maracanã, na partida que teve a renda revertida para as vítimas das enchentes em Minas Gerais, que o endiabrado ponteiro fez valer o prêmio de melhor ponta do país e deu um show de dribles desconcertantes.
Na ocasião, último jogo de Dadá pelo Atlético, que totalizou 290 partidas e 211 gols pelo Galo, Uri Geller fez, literalmente, chover para os quase 140 mil pagantes que foram ver Pelé e Zico juntos pela primeira vez, mas acabaram vendo um ponta-esquerda acabar com o jogo.
Resultado: 5 a 1 para o Flamengo.
Com o ‘Manto Rubro-Negro’, deu tempo ainda de ganhar o primeiro título nacional em 1980, antes de colocar o monstro para fora que existia dentro de si, em gramados argentinos no ano seguinte.
Já era chamado pelo radialista Jorge Curi (1920-1985) de ‘Uri Geller’, que entortava não os talheres como o enigmático mágico, mas sim, pobres marcadores.
Correu o mundo ao sair do ‘Mais Querido’ em meados de 1981 indo jogar no Talleres da Argentina, onde encantou os argentinos.
– Menotti me chamou para a Seleção das Américas e ele tinha o sonho de me ver ao lado do Maradona. Me naturalizei mas o Passarela ‘me achou’. Quebrei os ligamentos e fiquei fora do mundial! – lamenta.
Com passagens também no futebol mexicano, no português, no América/RJ, no Athlético Paranaense, no Grêmio e no Vasco, Uri Geller, a personificação de Garrincha, parou em 1990.
Se formou em Educação Física e viaja o Brasil com o Fla-Master, onde continua mostrando o futebol moleque de quem completou em março deste ano 64 anos.
– Antes que alguém ache que eu enlouqueci por causa da comparação que vou fazer, digo que não e não. Mas gosto de dizer aquilo que penso: Júlio César não ganhou o apelido de Uri Guiller à toa. Ele, de fato, entortava os seus marcadores. O que Garrincha fez durante anos com os seus ‘Joões’, Júlio César, em uma escala menor, é claro, fez com os seus adversários. Dava gosto vê-lo jogar. Ele praticava o puro futebol arte. Se aquele time inesquecível do Flamengo tinha a cara de Zico, Júnior, Andrade, Adílio… tinha também a cara de Júlio César.”
(Francisco Aiello – Radialista da Rádio Globo)