Escolha uma Página
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Uma coisa jogada com música

UMA COISA JOGADA COM MÚSICA – CAPÍTULO 4

por Eduardo Lamas Neiva

O samba de enredo em homenagem ao centenário do Flamengo não animou muito os quatro amigos, mas vendo a empolgação de muitos dos presentes, eles acompanharam respeitosamente a execução da música, com alguns comentários entre eles que não foram captados. Mas o time rubro-negro e seu rival tricolor continuaram na pauta da mesa.

Ceguinho Torcedor: – O Flamengo começou a ficar popular naquela época. Tinha a festa do reco-reco, que era homem dançando com homem. Jogador do Fluminense não ia a reco-reco. E as mocinhas passavam correndo pela garagem do Flamengo pra não ver aquela pouca-vergonha.

Um novo grupo de músicos já está no palco e a cantora Lila Olive, passando pela mesa dos 4 amigos, ouve a conversa e não deixa de comentar.

Lila Olive: – Num Fla-Flu, tem sempre sururu. Vamos cantar, ouçam só!

A diversão com a embolada “Fla-Flu”, composta por Camburé Silva, é total em todas as mesas. Depois dos aplausos, os nossos quatro amigos retomam a pelota e dão tratos à bola.

Sobrenatural de Almeida: – No Botafogo também tinha o reco-reco.

Ceguinho Torcedor: – No meu Tricolor não se admitia isso. Mas o Flamengo começou a levar o reco-reco pra rua e fazia um carnaval fora de época que foi atraindo o povo. As noites de qualquer domingo passaram a ser de carnaval, graças ao reco-reco do Flamengo.

Garçom: – Humm, a história que me contaram foi a do time que passou a ser popular por treinar na rua, perto do povo. Não foi isso?

Ceguinho Torcedor: – Como o Flamengo, que ficava na Rua Paissandu, não tinha campo, os jogadores passaram a treinar no gramado do Russel, na Glória. Aí juntava a garotada e os marmanjos pra verem os jogadores do Flamengo treinar.

Sobrenatural de Almeida: – O campo ficava cheio. De gandulas. Qualquer chute fora, iam correndo uns 20 garotos atrás da bola.

Garçom: – Então não foi só o Flamengo que foi ficando popular, mas o próprio futebol.

João Sem Medo: – Sim, Zé Ary, e a garotada louca pra bater uma bola.

Sobrenatural de Almeida: – Com isso, passaram a aparecer nos estádios as primeiras fitinhas rubro-negras nos chapéus de palha, exclusividade dos tricolores até então.

João Sem Medo: – As fitinhas eram encomendadas da Inglaterra, por isso eram usadas pelo torcedor da arquibancada, aquele mais rico. O povão ficava na geral.

Ceguinho Torcedor: – Mas mesmo o torcedor da geral, nas Laranjeiras, queria mesmo ser igual aos brancos, da elite, do clube fidalgo, tricolor. Alguns, pretos, mulatos ou mesmo brancos pobres, procuravam se vestir elegantemente.

Sobrenatural de Almeida: – As moças só ficavam na arquibancada. Muitas que antes acompanhavam suspirando os musculosos rapazes do remo, nos dias de regatas, passaram aos poucos a se encantar mais com os jogadores de futebol.

João Sem Medo: – Naqueles primeiros anos do futebol no Brasil, o árbitro advertia os torcedores que fizessem barulho fora da hora. Dava uma espécie de cartão amarelo, que não existia ainda, claro.

Ceguinho Torcedor: – Fui advertido várias vezes, várias vezes.

João Sem Medo: – Você deve ter dado muito trabalho, junto com o Gravatinha.

Ceguinho Torcedor: – Uma vez quase fomos expulsos. Mas certa vez foi até interessante: existia um juiz que era um canalha em estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: — levou bola dos dois lados. Justiça se faça a ele: — roubou da maneira mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno está correndo até hoje.

Todos riem muito.

João Sem Medo: – Essa coisa de juiz advertir torcedor que fizesse barulho ocorria mais pela Zona Sul, em clubes como Fluminense e Botafogo. Lá em Bangu a coisa era diferente.

Idiota da Objetividade: – É verdade, The Bangu Athletic Club era formado pelos ingleses da fábrica e alguns operários, brancos pobres, mulatos e negros também. E naqueles primeiros anos do futebol no Rio de Janeiro, no início do século XX, começou a haver aquela distinção de clube dos grandes e dos pequenos, porque os times de Fluminense, Paysandu e Botafogo, por exemplo, eram formados por ingleses, alemães e brasileiros abastados, quase todos brancos.

Ceguinho Torcedor: – Os que tinham pele negra só eram aceitos se fossem de família abastada também.

João Sem Medo: – E eles procuravam se vestir, até pra jogar, com as melhores roupas da época.

Sobrenatural de Almeida: – Pois em Bangu, começou essa rivalidade que levava a torcida a não aceitar derrotas em casa.

João Sem Medo: – O grande Mario Filho nos contou estas histórias no clássico “O negro no futebol brasileiro”. Aliás, o Mario Filho é o tio de vocês. Afinal era irmão de Nelson Rodrigues.

Ceguinho, Sobrenatural e Idiota concordam.

Ceguinho Torcedor: – É verdade. Mario Filho foi o criador das multidões!

Garçom: – E veja que absurdo, “seu” Ceguinho, quase tiraram o nome do Mario Filho do Maracanã há pouco tempo. Ainda bem que recuaram.

Ceguinho Torcedor: – Seria uma injustiça colossal!

Sobrenatural de Almeida: – Se confirmassem este absurdo,  o estádio que virou arena seria amaldiçoado, desmoronaria em ruínas de tantas podridões depositadas em suas entranhas ao longo dos anos por lorpas, pascácios, interesseiros minúsculos, e seria transformado definitivamente num coliseu, num Parthenon brasileiro.

Os amigos dão uma dispersada. Um vai ao banheiro, outro cumprimenta alguém de outra mesa, outro faz umas anotações num guardanapo, e Zé Ary vai, então, ao rádio mágico do restaurante e sintoniza na composição de João Fellipe Ramos e Maurício Lage para a exposição “Mario Filho: o criador das multidões”, ocorrida no Rio de Janeiro no início dos anos 10 do século XXI. 

Confira o capítulo anterior:

UMA COISA JOGADA COM MÚSICA – CAPÍTULO 3 » Museu da Pelada

UMA COISA JOGADA COM MÚSICA – CAPÍTULO 3

por Eduardo Lamas Neiva

Após o êxtase com a recordação da conquista do Campeonato Sul-Americano de 1919 e a apresentação de “Um a Zero” pelos Oito Batutas, quem toma a dianteira no papo entre os velhos amigos é o Idiota da Objetividade, que, amante do futebol de resultados, contesta a paixão pelo chamado futebol-arte. 

Idiota da Objetividade: – Vocês precisam ter uma visão mais pragmática das coisas. A tática, a estratégia… O jogo de futebol é igual ao xadrez.

João Sem Medo: – Sem essa, Idiota. Foi você que soprou nos ouvidos dos cartolas da CBF pra botarem o Dunga como técnico da seleção duas vezes, né?

Idiota da Objetividade: – Não fui eu, não! Quem faz essas coisas é o Sobrenatural. Mas eu achei boa a opção. Melhor vencer jogando feio, do que perder jogando bonito.

Os outros três, os músicos que subiram ao palco, algumas pessoas em mesas próximas e até o garçom protestam.

João Sem Medo: – Mas não venceu nem jogando feio, Idiota!

Idiota da Objetividade: – Venceu sim, João! A Copa América de 2007 e a Copa das Confederações de 2009.

João Sem Medo: – E serviu pra quê este torneio da Fifa? Perdemos pra Holanda em 2010 nas quartas e voltamos mais cedo pra casa.

Zé Ary se aproxima da mesa.

Garçom: – Senhores, desculpe interrompê-los, mas recebi um pedido das pessoas das outras mesas pra ouvir a conversa de vocês. Estão todos muito interessados.

João Sem Medo: – O papo é a vida do futebol, como eu disse.

Ceguinho Torcedor: – E a verdadeira apoteose é a vaia. E como só os imbecis têm medo do ridículo, vamos estender a nossa conversa, então. Como faremos?

Garçom: – Podem se sentar àquela mesa ao lado do palco que todo mundo vai conseguir ouvi-los muito bem.

João Sem Medo: – Perfeito. Vamos, então.

Enquanto os quatro amigos trocam de mesa, aplaudidos pelos presentes, um grupo musical que está no palco se apresenta: é o grupo Francisco Lima.

Francisco de Oliveira Lima: – Senhoras e senhores, já que a conversa aqui é sobre o “foot-ball”, vamos tocar uma polca de minha autoria que foi a primeira música relacionada a este esporte gravada no Brasil. Foi em 1912…

João Sem Medo (aos amigos): – Ano em que o criador de vocês três nasceu.

Francisco de Oliveira Lima: – … Ou 13, já não me recordo bem. Chama-se, naturalmente,  “Foot-Ball”.

Aplaudido, Francisco de Oliveira Lima e seu grupo começam a tocar.

Os músicos agradecem os aplausos e deixam o palco.

João Sem Medo: – Essa música é do tempo em que o futebol e a música do Brasil ainda eram totalmente influenciados pelos europeus, os ingleses especialmente.

Sobrenatural de Almeida: – A seleção brasileira nem existia ainda e já tinha música sobre futebol no país. Assombroso!

Ceguinho Torcedor: – Assombroso mesmo é que naquele tempo, em dias de regatas do remo, não havia jogos de futebol. Eram chamados à inglesa, de matches ou meetings no field. Depois o futebol ficou tão popular que o remo é que passou a esperar a tabela do campeonato de futebol pra marcar os dias e horários das regatas.

João Sem Medo: – O Flamengo no início resistiu muito a ter um time de futebol, mesmo recebendo nove dos onze titulares do Fluminense que foram campeões em 1911 e mais alguns sócios que trocaram de lado. Teve até um uniforme de futebol diferente do remo, que já era tradicional no clube.

Ceguinho Torcedor: – João, meus amigos, o Fla-Flu nasceu 40 minutos antes do nada. O termo, aliás é uma criação do grande Mario Filho, o criador de multidões.

João Sem Medo: – Não é por acaso que o Fla-Flu seja conhecido como o Clássico das Multidões, então.

Ceguinho Torcedor: – Pois então, o que ia dizendo? Ah sim, no primeiro Fla-Flu registrado na História, o segundo time do Tricolor, reforçado apenas por Osvaldo Gomes e Calvert, venceu o antigo primeiro time, que passou a vestir a camisa rubro-negra.

Idiota da Objetividade: – A primeira camisa do futebol do Flamengo era quadriculada.

João Sem Medo: – Que o pessoal chamava de Papagaio de Vintém.

Sobrenatural de Almeida: – Era muito feia, os jogadores até diziam que dava azar. Na verdade, andei jogando contra aquele time de desertores tricolores até arrumarem um uniforme mais bonito.

Alguns na plateia riem.

Idiota da Objetividade: – O primeiro título rubro-negro, em 1914, só veio com a camisa cobra-coral, que tinha listras finas brancas entre as pretas e vermelhas. Os primeiros títulos, pois foi bicampeão carioca, em 14 e 15.

Sobrenatural de Almeida: – Aliás, o primeiro título de remo do Flamengo só veio depois do futebol no clube.

Idiota da Objetividade: – Também foi um bicampeonato, em 16 e 17.

Sobrenatural de Almeida: – Mas não sou muito chegado ao remo.

João Sem Medo: – Com a explosão da Primeira Grande Guerra, os inimigos alemães foram perseguidos também aqui no Brasil. Como a camisa do Flamengo era parecida com a bandeira alemã e lá havia muitos sócios alemães, a camisa e os sócios alemães foram banidos do clube.

Garçom: – Este papo sobre as origens do Flamengo me deram uma ótima ideia.

O garçom se ausenta rapidamente e retorna com o LP das escolas de samba do Rio de Janeiro de 1995. Vai à vitrola, escolhe a faixa certa e põe pra tocar “Uma vez Flamengo…”, de David Correa, Adilson Torres, Déo e Caruso (samba de enredo da Estácio de Sá em 1995.