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A FORÇA DO MAGRÃO

por Paulo Escobar


Foi em Belém que brotou um dos jogadores mais lindos que o futebol viu nascer. Em Ribeirão Preto foram vistos seus primeiros passos,num misto de genialidade e criatividade. De um talento e de uma vida intensa, de um olhar penetrante e de uma inteligência rara dentro dos gramados.

Não há como não dizer que o Magrão foi único, nasceu na época e lugar certo. Podemos dizer que não sentou em cima dos muros que a vida coloca. O trem da história que passou pela vida de Sócrates não foi em vão, ele subiu e participou.

Talentoso e jogador de lances inesperados, inteligente, utilizou do seu calcanhar para surpreender, não sendo apenas um lance de beleza a ser vista, mas eficiente. Fazedor de belos gols, como me disse Paulinho, volante daquela Democracia Corintiana, numa resenha:

– O Magrão dizia: “coloca a bola em mim que eu resolvo” e resolvia de maneira fria.

Sócrates participou de dois belos times, a Democracia Corintiana e a seleção de 82, dois times que eram bonitos de se ver jogar. Mas foi sem dúvida no Corinthians que fez parte daquilo que viria ser mais do que um time.


Fiz resenha para o Museu da Pelada com alguns dos jogadores daquela Democracia, entre eles Paulinho, Biro-Biro, Ataliba, Zé Maria e Zenon e todos eles me falaram a mesma coisa quando o assunto era o Magrão: um cara humano e gente boa, genial e mentor daquela ideia que o time carregava.

Nos dias de hoje seria utópico você entrar num vestiário de futebol e encontrar os roupeiros do time decidindo os rumos da equipe dentro e fora dos campos. Sim, Sócrates ajudou a montar uma verdadeira utopia, por isso não cansamos de lembrar e desejar aquilo que é fantástico de ser vivido.

Sabia no lugar que estava, reconhecia na torcida que defendia uma grande massa de pessoas pobres e sofridas, era para estes que Sócrates jogava. E foi naquela torcida que influenciou também os pensamentos daqueles que gritavam e protestavam além dos estádios de futebol.


A cada gol o punho fechado e uma faixa na cabeça com mensagens de luta, a cada comemoração um protesto. O Magrão dos gramados aos comícios, da genialidade aos gritos pela liberdade, foi intenso a exemplo do que foi sua vida.

Nos dias cinzas que vivemos e que insistem em nos reprimir os desejos de liberdade, onde os preconceitos, o ódio às diferenças, sei muito bem de qual lado Sócrates teria ficado. Sei que nos tempos em que vivemos, mais saudades sentiremos deste tipo de jogadores, que pensem com os pés no chão e que sejam o chão que o povo mais sofrido pisa.

Sócrates viveu a vida que quis viver, e morreu a morte que quis também, escolheu seu jeito de morrer e não aceitou as limitações que a doença quis lhe impor. Morreu num domingo com o seu Corinthians campeão, no meio ao choro dos seus órfãos do povão, o Magrão deixou de maneira intensa este mundo.

Este texto foi uma pequena homenagem àquele que jamais seria um herói pelos conceitos morais, ou pelo bom mocismo desejado. Uma homenagem aquele que pensou o futebol como um instrumento de luta pela liberdade, e uma reverência aquele que me faz usar o numero oito nas tardes de várzea.

SÓCRATES 1×0 E A SINA DO OPALA COR DE SANGUE

por Marcelo Mendez

O ano de 1983 foi um ano bacana na minha vida.

Foi o primeiro sopro de emancipação que eu tive. Quer dizer, quase isso…


Meu Tio Bida havia trocado de carro e finalmente conseguiu realizar seu sonho de consumo; Um Opala Comodoro 1982, vermelho, tinindo! Quando ele baixou com a barca nova no Parque Novo Oratório, correu em casa mostrar pra nós. E enquanto todos ficavam embasbacados, minha mãe Dona Claudete teve como sempre, o juízo necessário:

– Bida, seu doido, como você vai pagar esse carro?

– Eu dei o outro de entrada…

– Aquele fusca velho, peidorreiro? Bida o que você tem na cabeça?!

– Detinha, calma. Uma coisa de cada vez; Primeiro eu vou ter o carro que eu quero, depois eu penso nessas responsabilidades aí…

Bem, eles seguiram discutindo, como de costume na nossa família. Se debatia tudo, se falava de tudo. Mas essa parte não é a importante aqui da história. O que vale contar é que, com a chegada do Opala Cor de Sangue, me tornei o lavador oficial da barca, aos domingos.

Com isso, passei a ganhar umas moedas do Tio, que num davam lá pra muita coisa, mas juntando, até que dava uma numerariozinho. Foi o que fiz naquele mês até conseguir atingir a quantia necessária pra ir à Discoteca Aldo, no Centro da Cidade.

– Vou comprar o disco novo do AC/DC!

Fui, comprei e então a magia se fez. Junto do Palmeiras, agora tem o rock e o Opala cor de sangue. Cor de Sangue…

Mais do mesmo…


O Campeonato Paulista do Palmeiras não havia sido lá uma benção. Mas deu pra classificar pra semifinal. O time era novo, muito bom. Tinha Cléo, Jorginho, Luis Pereira, Vagner Bacharel, Eneas, Baltazar, Carlos Alberto Borges, um craque! Pegou no breu na reta de chegada e então faltava o cruzamento que seria novamente contra eles:

Corinthians!

Dessa vez, os nossos rivais estavam na moda. Casagrande, Sócrates, Wladimir, Ataliba, Zenon, Biro-Biro, sob a égide da Democracia Corinthiana, um movimento que marcaria a história da abertura política no Brasil.

E então era muito pop ser Corintiano.

Enquanto o Palmeiras…

Já eram seis anos de fila. A coisa começava a incomodar, nada de caneco e as partidas todas iam ficando cada vez mais difíceis. A primeira da semifinal foi um inferno. No placar do Morumbi 1×1. Palmeiras fez com Baltazar e Corinthians foi buscar a igualdade com Sócrates guardando de pênalti. E de novo, assim como no Carnaval, tudo ia acabar na quarta-feira…

O silêncio que a derrota traz

De novo na numerada inferior do Morumbi.


Aquele canto do gigantesco estádio são-paulino havia se tornado o meu alpendre de dor de fossa favorito. Ali, com 13 anos de idade eu já passava a acumular um bom número de frustrações ludopédicas. Mas juro que naquela noite, achei que poderia ser diferente.

O Corinthians chegou atrasado para o jogo porque ficaram presos no trânsito. O time do Palmeiras ia completo, precisava fazer um gol no Corinthians e estaria tudo resolvido. Seria uma facilidade maravilhosa, mas um time como o Palmeiras não sabe nada dessas tais felicidades aí…

O Verdão amassou o Corinthians. Em 10 minutos jogados, o goleiro Leão já havia feitos dois milagres. Sim, Leão. Ele estava do lado de lá. Vendo aquele começo de jogo, quase que cheguei a acreditar que aquela noite seria diferente, que passaríamos pelo Corinthians e tudo mais. Não…

Em uma jogada genial, Sócrates faz um giro de corpo em cima do nosso zagueiro Márcio, conduziu a bola para o bico da área e bateu cruzado, rasteiro, devagarinho, pra doer mesmo. O Corinthians abriu o placar e o drama voltava acontecer. Se o Palmeiras jogasse três dias contra o Corinthians, não viraria esse jogo. Não viramos.


Placar final, 1×0 para eles e por mais um ano, lá ia eu, cheio de contrariedades e sonhos frustrados. De novo, meu Pai e meu Tio Bida tentando me consolar, mas eu nem ligava. No banco de trás do Opala Cor de Sangue, eu via a cidade passando, enquanto a gente voltava pro ABC. Via a festa dos amigos corintianos nas ruas da Cidade, contrastando com o deserto de alegria que havia em mim.

No peito, a dor de imaginar que seria mais um ano sem títulos. E uma incerteza atroz me roendo. Será que um dia eu ia fazer aquela festa também?

Quem sabe…

REVELANDO UM SÓCRATES DESCONHECIDO

por Émerson Gáspari               


Dito e feito.

Basta eu começar a ler qualquer texto sobre o Dr. Sócrates, seja em livros, revistas, jornais, sites e – invariavelmente – todos descambam para um lugar comum: seu engajamento político, suas convicções, sua luta pela democracia plena.

Não que eu ache que jogador ou torcedor deva ser alienado. Ninguém deveria ser.

Mas, para mim ao menos, é uma chatice só. Mais do mesmo, sempre! E nada de se falar daquilo que realmente nos interessa: seus feitos em campo, numa partida de futebol.

Apesar disso, boa parte dos leitores já deve conhecer razoavelmente a carreira do “Magrão”: seus títulos pelo Corinthians, seus gols e jogadas na Seleção. E a luta pelas “Diretas Já”, a “Democracia Corintiana” e aquele “blá, blá, blá” político todo, que não acaba mais, ocupando sempre a maior parte do texto, infelizmente.

Embora respeitando o direito de quem queira abordar mais política do que futebol, meu objetivo aqui é diferente: contar jogos e casos memoráveis do querido Doutor Sócrates – do qual fui fã de carteirinha na juventude – que sejam desconhecidos pela maioria dos torcedores brasileiros, ocorridos muitas vezes na cidade em que moro, a Ribeirão Preto que ele adotou como terra natal.

Sim, porque embora a família de Sócrates vivesse na minúscula Igarapé-Açu – interior do Pará – o menino nasceu mesmo, foi na capital Belém, em 19/02/54.

Primeiro de seis filhos homens, ele receberia o exótico nome, devido às leituras do pai, sobre filosofia grega. Seu Raimundo amava os livros em geral e foi através deles, que aos poucos, conseguiria passar em concursos, melhorando a vida da família e vindo terminar sua saga em Ribeirão, para onde se mudariam, quando Sócrates tinha seis anos. O garoto já era santista.

Um dia (04/9/65), assistiram o Santos de Pelé golear o Botafogo – ainda no antigo Luiz Pereira – pois Raimundo se tornara botafoguense e frequentava o estádio. Já Sócrates, ficou bem satisfeito com a goleada de 7×1 imposta pela equipe praiana.


Para desespero do técnico tricolor Oto Vieira, sua dupla de zaga naquele dia – Baldochi e Veríssimo – levou um tremendo baile da dupla atacante sensação do Peixe: Pelé marcou três gols e Coutinho, outros dois.

Foi um período mágico para o menino, que adorava jogar bola na rua com a garotada, diante de sua casa. Usavam o próprio portão da garagem como gol. Sócrates já estudava no tradicional Colégio Marista e atuava por um time amador da cidade, o Raio de Ouro.

Além de excelente revelação do amador, ele também disputava jogos de futebol de salão no colégio e foi assim que o professor de educação física Haroldo o conheceu e o encaminhou para o Botafogo, até por ter estreitas relações com o clube.

Foi nesse período das quadras, que o craque desenvolvera rara habilidade no toque de calcanhar. Por ser alto, magro e lento, percebia que demorava muito tempo para virar o corpo e se acostumou a tocar a bola de primeira, recorrendo a essa estratagema, com frequência.

O ano de 1970 marcou os primeiros jogos dele, nas categorias inferiores do Bota. Tudo ia bem, até que a Faculdade de Medicina entrou em sua vida dois anos mais tarde e ele precisou se esforçar muito para conciliar as duas obrigações, a partir dali.


Devido aos estudos, era dispensado de vários treinos ou mesmo atividades físicas, para fortalecer a musculatura, pois sempre havia aulas ou plantões a comparecer, na USP. Por causa disso, certa vez viajou às pressas para São Paulo, chegando em cima da hora de uma partida contra o Corinthians (29/5/75), tendo que pagar ingresso (!) para poder entrar no estádio e assim, se aproximar do túnel dos vestiários do Botafogo, de onde foi visto e afinal, incorporado à delegação. O Botafogo até perdeu por 4×1, mas o gol de honra foi dele, após apanhar o rebote de uma bola na trave chutada por Geraldo, igualando o marcador, naquela altura do jogo. Mais uma de suas peripécias!

Obviamente isso atrapalhou sua carreira por um tempo.

No ano de 1972, participaria de suas primeiras partidas pela equipe de cima (quando até marcaria seu primeiro gol), porém, sempre com um déficit no preparo físico, ainda não conseguia se destacar, apesar dos lampejos de inteligência que já exibia em campo. Foram eles, que mantiveram o Botafogo interessado naquele jogador tão frágil e ao mesmo tempo, tão promissor. Parecia ser impossível alguém com 1,91 m. de altura e pesando pouco mais de 70 quilos, conseguir jogar futebol em alto nível. Ainda mais, sendo fumante.

Às vezes criavam-se situações muito embaraçosas, pois seu Raimundo jamais descuidou da rigidez paternal exercida pelo bem do filho. Se por um lado, cobrava-lhe para que priorizasse os estudos, por outro, ficava em cima de suas atuações nos gramados, desde o começo.

Daí ocorrerem casos como o do dia em que tinha prova num cursinho daqui da cidade e – no mesmo dia e período – Come-Fogo decisivo da categoria de base.

Raimundo o deixou de carro na porta do colégio, pouco antes da prova. Mas Sócrates não entrou: saiu de lá, atravessou boa parte da cidade a pé e foi para o jogo, onde teve destacada atuação, definindo a vitória botafoguense com dois gols. Só que o pai descobriu sua peraltice, pois os amigos vieram lhe cumprimentar pelo desempenho do filho, naquela decisão. Imaginem só o tamanho da bronca que ele ouviu!

Como disse, as exigências do pai ocorriam ao mesmo tempo, pelo outro lado: nos jogos, ele costumava berrar para que o filho saísse da sombra que se formava na lateral do gramado, geralmente no segundo tempo dos jogos. Explique-se: digamos que a temperatura da “Califórnia Brasileira” sempre foi inescrupulosamente quente e abafada (a ponto de dizermos que aqui só existem duas estações: verão e “inferno”).

O problema térmico é agravado pelo fato da cidade ficar numa depressão que pode ser facilmente notada por quem chega de São Paulo, pela Via Anhanguera.

Isso se complica ainda mais no estádio Santa Cruz, escavado na encosta de um morro, sendo fechado por todos os lados e tendo suas arquibancadas bem altas, o que parece dificultar a circulação dos ventos e ampliar a sensação de intermitente mormaço. Uma espécie de “panela quente” a céu aberto.

Daí Sócrates buscar um “refresco” na sombra das numeradas, às vezes, para irritação de seu exigente pai. Bem diferente do modo como alguns pais tratam seus filhos jogadores hoje em dia, não é mesmo?


A partir de 1974, Sócrates passaria a entrar mais assiduamente no time titular, depois que o meia Maritaca se contundiu durante uma partida e ele ajudou na vitória de 1×0 diante do América/SP, em casa, no estádio Santa Cruz (06/02/74).

Assumindo a condição de titular, esteve nas vitórias em cima da Ponte Preta por 2×0 (10/02/74), do SAAD por 2×1, quando marcou um gol (10/3/74) e do Paulista por 4×1, quando fez dois pela primeira vez. Dali por diante, deslanchou.

Logo de cara, se tornaria o principal articulador de jogadas e também o craque do time, fazendo do raçudo e pouco talentoso centroavante Geraldão, o artilheiro do Paulistão, com 23 gols na temporada. O meia já demonstrava toda a sua genialidade em campo, com toques surpreendentes e clássicos, além de incrível visão de jogo, bem como, noção exata do valor das assistências que distribuía.

Foi um atleta que sempre preferiu dar o passe para um companheiro melhor colocado, que tentar ele mesmo, um gol. Era o avesso do chamado “fominha”.

Apesar disso, não deixava de assinalar muitos gols, também, pela meia-direita: em 1974 faria 12, em 1975 seriam 21, em 1976 foram 27, em 1977 também 27 e em 1978, outros 13 gols, desta vez em pouco mais de meia temporada, pelo Botafogo.

Só não marcaria quando de sua última (e curta) passagem pelo clube, já em 1989, para encerrar a carreira. Ao todo, 101 gols em 271 partidas pelo Fogão. Em 1976, por exemplo, ele foi artilheiro do Paulistão, com 15 tentos assinalados.

Formidável, ainda mais em se tratando de um time de interior e de um atleta que preferia conceder gols aos outros. Aos poucos, suas atuações foram empolgando mais e mais a torcida, pois ele começou a desequilibrar partidas a torto e a direito. 

O meu Paulista de Jundiaí mesmo, que foi o primeiro clube a ter a “primazia” de levar dois gols dele, acabaria sendo também, o primeiro a tomar quatro, na vitória do Bota por 5×3 no Santa Cruz (21/5/75). Nem a presença do ótimo goleiro Edson Borracha adiantou para o “Galo da Japi”, naquele dia. 

Outros times, como o Juventus e o São Bento, também levaram dois gols de Sócrates numa só partida, mais de uma vez, enquanto ele esteve no Botafogo.


Foram vários jogos com dois gols marcados por ele, contra vários clubes; inclusive num compromisso pelo Brasileirão, Botafogo 4 x 0 Goiás  (17/10/76)  que parte da torcida panterina considera o melhor da equipe em todos os tempos, porque ele e Zé Mário (outro fenômeno daquele time) “gastaram a bola”, naquele dia.

Mas, três dias mais tarde (20/10/76) fariam também aquela que “a maioria” dos botafoguenses considera a “obra-prima” daquele time: o 1×1 em casa, diante da poderosa “Máquina do Prof. Horta”, o Fluminense bicampeão carioca de 1975/6, gerando recorde de público “oficioso” no “Santão”, inclusive.

Aos 8 minutos, Zé Mário abriu a contagem, pela direita, num belo gol por cobertura e aos 43 do segundo tempo, PC Caju trouxe pelo meio e serviu à Rivellino na ponta-esquerda, que pegou um lindo chute de três dedos, livrando o time da derrota em cima da hora.

O Botafogo estava “jogando muito”, mesmo quando Sócrates não marcava.

Imaginem então, no dia em que ele desembestou a marcar gols sem parar!

Isso ocorreu naquele mesmo ano, só que pelo Campeonato Paulista. A vítima seria a     

Portuguesa Santista e antes, cabe aqui uma explicação, pois a partida guarda alguma relação com outras três. Eu explico.

Em 06/9/64, o Santos (desfalcado de Pelé) perdeu por 2×0 para o Bota em Ribeirão, que quis dar “olé” em campo. Pois bem: no jogo de volta pelo Paulistão, em 21/11/64, Pelé vingaria o Santos, marcando oito gols na goleada de 11×0 sobre o Fogão. Seu treinador, Oswaldo Brandão, que acabou demitido e indo parar no Corinthians; teria dito antes do jogo, que Pelé “não estava mais no auge, marcando menos gols”.

Duas semanas depois daquele massacre (06/12/64), o Santos enfrentou o Timão e tome nova goleada, dessa feita por 7×4, com Pelé marcando mais quatro, fazendo com que Brandão se arrependesse do que teria dito e levando doze gols do Rei, em poucos dias. Mas o que Sócrates tem a ver com isso tudo, afinal?

Acontece que a traumatizada torcida botafoguense jamais esqueceu o vexame (até porque os comercialinos os gozavam sempre) e doze anos depois, no campeonato paulista de 1976, a pobre Portuguesa Santista é que acabaria “pagando o pato”.


Nesse dia (13/6/76), Sócrates esteve impossível: aos 16 minutos, fez seu primeiro gol. Aos 20 ampliou, num golaço que merece ser recordado em todos os detalhes (eu mesmo o ilustrei, para uma série com os maiores gols dele, publicada por um jornal daqui), tal sua plasticidade.

O jogador Alfredo veio com a bola dominada pelo meio e à cerca de quinze metros da grande área a lançou, por elevação, para Sócrates que estava na meia-lua, tendo dois beques colados por trás, “fungando em seu cangote”.

O craque, ainda de costas para o gol e seus marcadores, saltou e a matou no peito, direcionando a bola para o lado direito, a fim de ludibriar a marcação. Girou o corpo e assim que o espaço para o chute se abriu, naquela fração de segundo, o Doutor acertou um tiro seco, de direita, sem deixar a pelota sequer quicar no gramado. Indefensável! Entrou no ângulo esquerdo da meta do goleiro Pedro Paulo, que sequer esboçou reação. Um gol para aplaudir de pé!

Só por isso, já teria valido o ingresso, mas Sócrates não parecia satisfeito: decidiu “acabar” com o jogo, na segunda etapa, marcando mais cinco gols!

Aos 15, 25, 27, 31 e 44 minutos. Como se não fosse o bastante, deu também as três assistências para os demais gols da equipe, que massacrou a Portuguesa Santista por 10×0, com sete gols dele. Os outros tentos – com passes dele – saíram aos 25’/1º com João Marques, aos 37’/1º com Zé Mário e aos 16’/2º com Alfredo.

Acharam pouco? Pois a torcida botafoguense achou. Tanto, que no último lance do jogo, uma bola foi cruzada na área e Sócrates chegou atrasado, perdendo a chance de marcar o oitavo dele, devolvendo o escore de 11×0 para a cidade de Santos. Na sequência da jogada, o juiz encerrou a partida e (acreditem!) começaram a surgir algumas vaias das arquibancadas, por ele não ter conseguido o mesmo feito de Pelé.

Pensam que foi coisa de torcida? A própria imprensa, insatisfeita, acabou elegendo o meia-esquerda Alfredo, como “o melhor do jogo” e Alfredo acabaria por faturar o prêmio oferecido ao maior craque em campo. É mole ou querem mais?

Isso revela o quanto o futebol podia ser exigente com seus jogadores. Lembro vocês, que Zico declarou certa vez numa entrevista, que no tempo deles, era preciso marcar uns três gols e fazer umas dez jogadas legais num jogo, pra ganhar uma nota 10.

Hoje – segundo Zico – bastam um gol e uma jogada legal e o “carinha” leva o dez, numa boa. Concordo com o Galinho: é exatamente isso!

Outro clube que sofreu horrores com Sócrates no Botafogo, foi o rival da cidade, o Comercial. O tradicional “Come-Fogo” hoje apresenta retrospecto equilibrado: em 170 jogos, 61 vitórias do Fogão (212 gols), 57 empates e 52 vitórias do Bafo (208 gols).


Mas vejam a importância de Sócrates nessa rica história que já dura quase um século: na primeira fase do confronto, quando o Comercial era o time da elite, chegando a vencer o primeiro clássico por 8×0, o “Leão do Norte” estabeleceu larga vantagem de vitórias. Porém, a partir de 1954, essa diferença foi caindo, inverteu-se e foi ampliada, em especial nos tempos do Doutor, à favor do “Pantera”, durante a década de 70.

Depois dele, se reequilibraria novamente.

Em mais de cinco anos de participação, Sócrates disputou 19 clássicos, marcando seis gols ao longo de nove vitórias, sete empates e três derrotas.

Entretanto, talvez nenhuma delas tenha sido tão incrível quanto a que “profetizou” a vitória e seu gol. Na verdade, uma coincidência muito grande, que vale à pena ser contada para vocês.

Após decidir com gols, os dois últimos clássicos “Come-Fogo” por 1×0 (em 07/12/75 e 01/02/76), o Doutor, provocado por amigos comercialinos às vésperas de mais um clássico, “vaticinou” que repetiria a dose, com “requintes de crueldade”, marcando no último minuto da partida. E não é que aconteceu mesmo?

O jogo era em Palma Travassos, estádio do Comercial e o 0x0 modorrento, que já se arrastava principalmente nos dez minutos finais, sob um sol escaldante, estava prestes a terminar. 

Sócrates já havia marcado antes, no decorrer da partida, mas o juiz assinalara impedimento, invalidando o tento. Satisfeito com o empate – mesmo em casa – o Bafo trata de “fazer o tempo passar”: são 43 minutos e a bola, lançada ao ataque pelo Botafogo, é dominada pela zaga comercialina.

Nisso, surge a figura do goleiro Lula, que sai de sua meta e segura a bola, com as duas mãos. Aguarda alguns segundos e quando praticamente todos se afastam, solta a bola e se aproxima da risca da grande área, pelo lado esquerdo da zaga, tocando rasteiro, para o quarto-zagueiro Gonçalves, próximo dele.

Gonçalves, tendo apenas a presença de Sócrates – a uma segura distância – hesita por um instante e resolve devolver para o goleiro (numa época em que isso era permitido). Chegamos aos 44 minutos. O árbitro Almir Laguna observa o lance, ali da meia cancha,

aguardando um chutão para o círculo central. Vaias eclodem da torcida, em direção ao gol “dos fundos” do estádio (aquele que fazia fronteira com o antigo poliesportivo do alvinegro).

Lula recolhe a bola e por um instante, faz de conta que vai descarregá-la para o campo de ataque, mas decide tocar outra vez para Gonçalves, chegando agora até a linha da grande área. Sócrates se aproxima preguiçosamente do zagueiro. Gonçalves recebe a pelota e sente o botafoguense de repente se aproximar por trás, correndo. Pressionado, recua às pressas para o goleiro, mas a precipitação faz com que o passe não seja perfeito e Sócrates mantém o trote, agora atrás da bola.

Lula se assusta e corre na direção da redonda, que adentra a área, seguindo quase na direção da marca penal. O Doutor acelera, passa pela meia-lua e parece que vai chegar atrasado, um segundo após o arqueiro. Mas Lula escorrega ligeiramente e quando se atira, não consegue alcançar o craque, que de carrinho, empurra a bola para as redes, de pé direito. A “profecia” se cumpria. E tome gozação botafoguense, depois disso.

Mais um gol que ilustrei para a tal série de gols dele, num jornal daqui de Ribeirão.


Obviamente esta não foi a única história entre Sócrates e o rival, o Comercial.

Houve de tudo um pouco: do dia em que o treinador Alfredinho Sampaio mandou o time recorrer ao “cai-cai” com medo de uma goleada, até jogo decidido com gol dele, após uma briga generalizada que durou praticamente dez minutos.

Sócrates ainda não era exatamente aquele jogador frio e calculista que vocês se acostumaram a ver no Corinthians e na Seleção.

Jovem, às vezes dava mostras de instabilidade emocional, nos momentos em que o clássico mais esquentava. Num deles (09/10/77), novamente disputado no campo do rival, acabaria sendo agredido pelo arqueiro. Caído ao solo, seria agora, pisado por um zagueiro, na sequência. Eram outros tempos no futebol…

O goleiro foi expulso e, com a saída providencial de um atleta da linha, entrou o arqueiro Lula, que estava na reserva.

Poucos minutos depois, pênalti para o Botafogo! Sócrates, ainda intranquilo com o ocorrido e molestado pela vaia intensa da torcida, mais a catimba do novo goleiro, acaba chutando para fora, pegando mal na bola.

Algo difícil de ocorrer, pois o Magrão tinha certas particularidades em campo e uma delas, era justamente sua incrível vocação de chutar no canto, sem desperdiçar. Não só nos penais: nos gols que fazia, Sócrates costumava tocar seco, no canto e a bola, bater na lateral da rede, pelo lado de dentro. Quer dizer: difícil para o goleiro pegar e com uma margem de segurança, até a trave.

Naquela época, apesar da altura, Sócrates ainda não cabeceava bem. Chegou a jogar na Seleção de Cláudio Coutinho com a camisa 9, mas não tinha no cabeceio, uma virtude, ainda. Foi a perseverança de Telê Santana em fazê-lo treinar esse fundamento, que o tornaria um bom cabeceador, com o tempo.

Poucos se lembram, mas Sócrates ainda ajudava na marcação. Ele era um dos poucos que davam carrinhos perfeitos, rasteiros, com os pés bem juntos, sem ocasionar faltas e no tempo preciso de desarme. Dava até gosto de ver. No Corinthians, apenas ele e Wladimir faziam isso de maneira precisa e perfeita. Essa precisão fazia com que o desarme não fosse perigoso, por mais difícil que seja acreditar, para quem não viu.

Naqueles tempos de Botafogo, Sócrates já era ótimo cobrador de faltas, também.

Não bastasse isso, o Magrão possuía privilegiada visão de jogo e uma virtude que poucos atletas tiveram: o sentido de antecipação de jogadas fabuloso.  Impressionante a facilidade com que, num único toque, conseguia ludibriar a zaga e colocar um companheiro na cara do gol. Os passes denotavam um jogador de rara inteligência.

Agora, o “ponto fora da curva” do Doutor, era mesmo o toque de calcanhar. Em qualquer situação, com grande variação de força e precisão absurda, ele o utilizava e praticamente nunca errava. Impunha respeito em qualquer partida e em quaisquer circunstâncias. Não há registro, em todo o planeta, de algum outro jogador que o tivesse usado com tamanha habilidade, em qualquer período da história do futebol.

O próprio Pelé (ídolo o qual Sócrates conseguiria enfrentar em campo, na Vila Belmiro, em 14/8/74, num Santos 2×1 Botafogo), afirmava achar o Doutor um jogador “melhor de costas do que muito jogador, de frente”.


Muitos se lembram do golaço de calcanhar que ele fez pelo Timão, contra o Guarani, em Campinas, após um rebote da zaga. Alguns, de um treino no Parque São Jorge, em que brincou de bater pênaltis contra o goleiro Solito.

Mas poucos sabem que ele já havia usado sua especialidade jogando pelo Botafogo e frente a um clube grande, o Santos. E na Vila Belmiro! Claro que acabou sendo mais um gol que ilustrei para o jornal daqui de Ribeirão.

Foi numa virada sensacional e que é considerado por muitos, o jogo que “revelou para o país”, aquilo que Ribeirão já sabia: que o Bota era um timaço com dois craques fenomenais: o ponta Zé Mário e o meia Sócrates. Antes, é preciso que eu abra um pequeno parêntese e explique para os que não o conheceram quem foi Zé Mário.

Um craque! Um extraordinário ponta-direita. Rápido, driblador; tem até, quem julgue que ele foi melhor que Sócrates, porque se tornou o primeiro jogador do clube, a ser convocado diretamente para a Seleção Brasileira.

Exageros à parte, a grande verdade é que ambos – ele e Sócrates – atuavam na meia-direita. Por Magrão ser mais cerebral e articulador e Zé Mário, mais rápido e driblador, acabou o primeiro virando o dono da camisa 8 e o segundo, o dono da 7. Sobrava para Paulo César Camassuti, reserva de dois cracaços e que mais tarde, acabou indo jogar no São Paulo, Corinthians e outros clubes.

Mas o destino seria cruel para Zé Mário: após dois jogos nos quais entrou e mostrou virtudes na Seleção Brasileira (onde Gil era o titular), exames diagnosticaram que ele tinha leucemia. Morreu poucos meses depois e seu enterro causou uma consternação inesquecível na cidade. Uma perda irreparável!

Isso posto voltemos ao tal Santos x Botafogo (23/3/77): o Peixe vencia por 2×0, quando o Doutor diminuiu a vantagem santista, aos 42 minutos da primeira etapa. Lançado por Zé Mário, Sócrates correu para a área, perseguido pelo zagueiro Neto. Invadiu a área e, diante da saída do goleiro Wilson, tocou por sobre o defensor, aplicando-lhe um chapeuzinho. Só que Neto correu pelo outro lado e prensou com o craque, contra a trave. Sócrates, mais esperto, tocou de calcanhar para dentro do gol, enquanto Neto se desequilibrava para fora do campo. Um gol com a marca registrada do Doutor.

Dois minutos depois, outra bela jogada de Zé Mário – agora pela direita – e o Magrão, num lindo peixinho, empatou. No segundo tempo, após uma disputa de bola pelo alto entre ele e o goleiro adversário, o Botafogo viraria.

Aquele ano de 1977 acabou sendo iluminado para o clube. Após uma excelente campanha no primeiro turno, no qual perdeu uma única partida (para a Ferroviária), o time, treinado pelo experiente Jorge Vieira e que contava também com o goleiro Aguilera, o lateral Mineiro, o meia Lorico, entre outros, acabou dando “liga” e chegou à final do primeiro turno daquele Paulistão, diante do São Paulo, no Morumbi.


Após uma brilhante partida na semifinal diante do Guarani – na qual perdeu um gol incrível – Sócrates repetiu a dose contra o São Paulo e o empate de 0x0 após a prorrogação, daria o Título da Cidade de São Paulo ao clube ribeirão-pretano. Pena que o juiz viu uma falta dele onde ninguém havia enxergado e anulou um belo gol dele.

A festa na chegada do time a então “Capital do Café” (19/5/77) acabaria sendo a maior de que se tem notícia, até hoje, na cidade.  A conquista seria capa do jornal Gazeta Esportiva e da revista Placar.

No segundo turno, o Botafogo acabaria perdendo a chance de uma final contra o Corinthians, num jogo frente a Ponte Preta em Campinas, onde valeu até, apagarem os refletores, para impedirem o empate iminente do Botafogo.

Mas a campanha tricolor foi elogiável e isso atraiu o interesse dos clubes pelos atletas panterinos. A equipe acabaria sofrendo algumas mudanças.

Sócrates se formou meses depois e finalmente decidiu por continuar sua carreira de jogador – uma decisão que ele havia deixado para tomar mais tarde – renovando com o Botafogo. O Doutor não foi convocado para a Copa de 1978, mas chegou a estar na lista dos 40 “selecionáveis” do então treinador da Seleção, Cláudio Coutinho.

Em agosto daquele mesmo ano, numa manobra espertíssima de Vicente Matheus, o Corinthians “passou a perna” no São Paulo (que já estava de olho no atleta fazia tempo) e contratou o Doutor primeiro por 5,860 milhões, a segunda contratação mais cara do futebol brasileiro, até então.

Um ano depois, a revista Placar já publicava uma edição especial dele, sob o título, na capa: “Sócrates – O melhor jogador do mundo”. 


A partir daí, todos praticamente já sabem, o Doutor se tornaria nacionalmente conhecido como o grande ídolo do Timão e mais tarde, através da Seleção Brasileira, seria mundialmente respeitado, como o capitão daquele selecionado que encantou o planeta, com seu futebol-arte.

O restante da história, também: que Sócrates atuou pela Fiorentina, onde não se adaptou muito ao futebol (e ao frio) italiano. E que um problema de hérnia de disco o prejudicaria mais tarde, na Seleção de 1986 e no Flamengo.

Chegou a parar de jogar, encerrando a carreira prematuramente. Mas retornaria, quase dois anos depois, para atuar no Santos, seu time de infância, já aos 34 anos.

Sua estreia se deu na partida Santos 4 x 2 Cerro Porteño. Apesar de ter já ter feito um gol no primeiro tempo e de ser o melhor em campo (mesmo sentindo falta de ritmo de jogo), Sócrates comandaria a virada dos santistas sobre os paraguaios, ficando na lembrança dos torcedores, o lance maravilhoso que protagonizou na segunda etapa, momentos antes de deixar o gramado, quando foi substituído.

O Magrão recebeu um passe praticamente no meio-campo, pela direita. Deu um drible da vaca no primeiro marcador que surgiu pela frente e acelerou, levando também, a marcação do segundo, passando entre os dois.  Arrancou com vontade e quando o terceiro zagueiro chegou para enfrentá-lo, enfiou-lhe a bola por entre as pernas.

Invadiu a área pela meia-direita, perseguido por esse último zagueiro e tocou ante a saída desesperada do goleiro Roverano, numa jogada simplesmente cinematográfica!

Por um capricho dos deuses, a bola – matreiramente – encobriu o travessão, saindo pela linha de fundo. Foi aplaudido de pé por uma torcida acostumada com as jogadas geniais de Pelé, no passado.

A propósito, assim como o Rei, o Doutor merece ser lembrado não apenas pelos gols geniais que marcou em sua carreira, mas também, pelos que perdeu.

Com a carreira praticamente encerrada, na temporada seguinte – a de 1989 – ele topou fazer algumas poucas partidas, apenas para ajudar o Botafogo no Brasileiro da Segunda Divisão e se despedir do clube, como os torcedores tanto pediam.

Fez uma meia dúzia de partidas e fui com meu saudoso pai, assistir sua despedida dos gramados em jogos oficiais, aqui em Ribeirão Preto, no “Santa Cruz”. Foi um 0x0 diante do São José, sem maiores emoções (11/10/89), no qual ele procurou armar o time e arriscou dois chutes de fora da área, que saíram por sobre a meta adversária.

Notei que colocava a mão nas costas ao fazer esse tipo de esforço maior, após chutar de longe e comentei com o velho, de que ele certamente sentia dores lombares, ainda. Fruto de sua hérnia de disco na coluna operada e de uma joelhada que levara nas costas, logo no início de sua reestreia com a camisa botafoguense.

Entretanto, apesar dos 35 anos e das limitações físicas, nos pareceu o único com alguma lucidez em campo, naquele dia. Tecnicamente então, era um absurdo a disparidade que o distanciava dos demais.

Sócrates ainda fez mais um jogo – amistoso – despedindo-se sem festas, nem alarde. Sempre foi avesso a esse tipo de badalação nos gramados.

Estava encerrada uma carreira pela qual marcou mais de 330 gols, proporcionando outros mil aos seus companheiros. Alguns desses parceiros ficaram na memória, em tabelinhas sensacionais com ele, como Zé Mário, Geraldão, Palhinha, Casagrande, Zico.

Vestiu as camisas do Botafogo, Corinthians, Seleção Paulista, Seleção Brasileira, Fiorentina, Flamengo e Santos.

Ele ainda colaborou com o Botafogo, tendo uma breve passagem como treinador da equipe. Foi também secretário de esportes do governo de Antônio Palocci por pouco tempo, mas algumas de suas medidas eram, digamos, “socialistas demais” para que a população pudesse compreender e aceitar.   

Começou a exercer sua profissão de médico, procurando ampliar seus conhecimentos e, além da ortopedia, se especializou na área de fisiologia esportiva. 


Montou a “Medicine Sócrates Center”, uma bela clínica fincada na Avenida Nove de Julho – então o endereço mais concorrido de Ribeirão Preto – e foi lá mesmo, que ele autografou algumas revistas e cards, para mim. Era uma pessoa afável, embora não curtisse muita tietagem futebolística.

Absolutamente desligado da fama, demonstrou sequer conhecer uma revista especial toda dedicada a ele, esboçando surpresa, quando a folheou, dizendo: “- Puxa, que revista legal; nunca a havia visto, antes!”.

Claro que ele não quis ficar com a revista, de presente. Assim como não cultuava o

hábito de tantos futebolistas, de guardar recortes de matérias e fotos de sua carreira. Sua secretária me presentearia, tempos depois (acreditem!) com um troféu já todo oxidado, que ele recebera no passado e uma camisa da Seleção Brasileira de Masters.

Havia acabado de jogar fora, duas caixas repletas de recordações pessoais do craque, após muito relutar – até que, receosa por uma bronca do patrão que insistia para que ela descartasse aquilo logo – cumpriu enfim o “sacrilégio” que ele havia determinado.

Após alguns anos, deixou também essa vida de lado e passou à militar na cultura, trabalhando num cine cultural de um amigo, bem no centro da cidade. Por um tempo, quase todas as manhãs, passava a pé, junto de sua última companheira em vida, na calçada de meu sebo, a caminho do trabalho.

Jamais o interpelei nessas oportunidades, mesmo tendo em meu modesto sebo, uma carga incrível de material futebolístico dele, com direito, inclusive, a pôsteres na qual envergava o uniforme do Botafogo, em um tempo no qual ele ainda usava aquelas borrachas para evitar que o “meiões” acabassem arriados, descendo por suas canelas tão finas. Sei que ele se sentiria incomodado; que não iria curtir.

Preferia ouvir suas análises sem aborrecê-lo, toda semana, no programa “Cartão Verde”, da TV Cultura.

Sócrates havia se tornado uma espécie, digamos, de “embaixador cultural” da cidade e muitas celebridades e intelectuais que por aqui passavam, adoravam visita-lo, ocasiões em que geralmente uma boa mesa regada à chopp era dividida com os novos amigos.

Um hábito que ele já cultivava há muito tempo.

Até que a cirrose hepática ceifou sua vida, em 04 de dezembro de 2011. Nesse dia, vi muito amigo botafoguense chorar. E eu – mesmo um comercialino nas horas vagas – também fui às lágrimas naquele domingo, já que sempre fui muito fã do Magrão.

A ponto de, na infância, chegar a apanhar de minha mãe por tanto fanatismo pelo futebol, pelo simples fato de saber absolutamente tudo sobre a carreira dele e até, de sonhar – ainda pequeno – com um inusitado encontro com meu ídolo.


Há quase sete anos, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, o craque dono de futebol tão gigantesco quanto seu próprio nome, se tornaria uma espécie de “vizinho” meu, pois seu corpo, sepultado, repousa até hoje no Cemitério Bom Pastor, muito próximo de minha residência, aqui no Jardim Zara, periferia de Ribeirão Preto.

Enquanto isso, sua personalidade fascinante continua sendo relembrada pela mídia e seus lances geniais permanecem na memória dos torcedores, órfãos de seu futebol.

SÓCRATES, O ÚNICO CORINTIANO QUE ME FEZ CHORAR

por Israel Cayo Campos


Quem me conhece sabe o amor que nutro pelo São Paulo Futebol Clube. Sentimento esse que surgiu desde que me entendo por gente ao ver aquela máquina comandada pelo mestre Telê Santana do início dos anos 1990.

Para quem dizia que o “Fio de Esperança” era um “pé frio”, eu só vi a fase pé quente dele. Seja em campeonatos paulistas, brasileiros, Libertadores da América duas vezes, Recopas, Torneios internacionais e principalmente em duas conquistas de campeonatos mundiais de clubes sobre nada mais nada menos do que os poderosos Barcelona (1992) e A.C. Milan (1993).

Nesse período meu ídolo dentro de campo era Raí, mais conhecido como o “Terror do Morumbi”. Que se não é o maior jogador do São Paulo, e aí podemos citar muitos que pleiteiam tal vaga, foi o mais decisivo nos títulos que me cativaram a tornar-me torcedor do clube, pois o vi em seu auge na fase em que comecei a amar o esporte bretão.

Claro que para um torcedor de verdade, ter um time a se amar não é nada se não existirem rivais a se odiar. Para mim logo dois surgiam: o Corinthians, que a época não ia muito bem dentro do campo, e o Palmeiras, com o timaço montado pela transnacional italiana Parmalat. É claro que escolhi o Palmeiras! Que vencia o São Paulo com maior frequência, e ainda levava nossos melhores jogadores que não iam para a Europa! Antônio Carlos, Cafu (que foi a Europa apenas para não mudar diretamente de clube) e Müller são exemplos.

Depois de meia década de pura felicidade, o São Paulo começava a entrar em ostracismo, Telê por problemas de saúde deixava o clube e o tricolor passou três anos amargando campanhas discretas.

Foi quando Raí, meu ídolo no futebol voltava em plena final do Campeonato Paulista de 1998 (quando o campeonato ainda era um paulistão!) para enfrentar o Corinthians! Na minha cabeça o São Paulo voltaria a ser grande, e aquela conquista em cima do novo time mais odiado na minha mente juvenil me fazia pensar assim.

Entretanto, o título paulista de 1998 foi a única coisa que Raí conquistou em sua volta ao Morumbi, e enquanto isso, o Corinthians vencia dois campeonatos brasileiros, torneios Rio-São Paulo e campeonatos estaduais… Muitos deles passando por cima do tricolor!

Tantas derrotas para o time de Parque São Jorge sacramentaram que minha rivalidade no final dos anos 1990 e início do ano 2000 agora era com o Corinthians. E só Deus sabe quanto ódio senti ao ver o Raí perder aqueles dois pênaltis contra Dida na semifinal do Brasileiro de 1999 contra o Corinthians. Aquilo já passava de simples rivalidade! Era ódio puro!


Até então de Sócrates só tinha ouvido o básico… Que era o irmão do Raí (e não o contrário!), que tinha sido um excelente jogador de futebol usando a camisa do rival, que era chamado de “Doutor” pois de fato era médico formado, o que era uma raridade para os jogadores daquela época, e que era uma das estrelas daquela Seleção que fracassou no mundial de 1982 diante da Itália. Para mim, era estranho alguém com esse currículo ser o (ou um dos) maiores jogadores da história do time que mais me fazia sofrer enquanto torcedor do São Paulo.

Um pouco mais velho, via os tapes das partidas de Sócrates pela Seleção e lia nas minhas coleções de Revista Placar um pouco da história desse jogador.

– 3 títulos paulistas são os maiores troféus desse jogador? Pensava comigo. Não chega aos pés do Raí! Só campeonatos paulistas o Raí tinha cinco!

– Nenhum campeonato brasileiro conquistado? Libertadores? Mundial?Até jogando na Europa o currículo do irmão mais novo é superior! Esses comentaristas esportivos que dizem que ele é melhor que o Raí só podem estar loucos… Pensava eu ainda em minha pré-adolescência!

Com o chegar da minha adolescência e a intensificação das leituras sobre futebol comecei a perceber que a importância do Doutor ia muito mais do que somente pelos títulos dentro de campo. Mesmo sendo um jogador espetacular, Sócrates conseguia despertar a admiração de quem quer que fosse pela sua autenticidade, sinceridade e inteligência!

Mesmo não tendo a melhor relação do mundo com o goleiro Leão, votou a favor da contratação do mesmo para o gol alvinegro e dedicou o título paulista de 1983 a grande atuação do arqueiro na final contra o São Paulo (novamente o São Paulo!) terminada em 1 a 1 no Morumbi. Na frente de todos os jogadores e funcionários do clube.


Por falar em voto, o paraense radicado em Ribeirão Preto foi um dos principais idealizadores do movimento “Democracia Corintiana”. Que tinha como principal ideal que todas as decisões referentes ao time de futebol seriam votadas por todos os funcionários do clube! Do mais humilde ao presidente, todos teriam o mesmo peso de voto! Com isso, os jogadores decidiam se deveriam ou não se concentrar antes dos jogos, quais outros jogadores eram necessários para a melhoria do time (como foi o caso de Leão!), e até como o dinheiro do “bicho” (premiação dada por êxitos alcançados dentro de campo), deveria ser dividido de maneira igualitária entre os jogadores, roupeiros, motoristas e todos os outros funcionários do clube!

Era uma ideia de igualdade de direitos e deveres entre todos em um país que ainda estava na mão de uma ditadura! Obviamente, muitos não foram a favor desse conceito de liberdade, mas o que fazer? O Corinthians era o time mais popular de São Paulo, e Sócrates, o cabeça do movimento era não só um dos maiores jogadores do clube, como da Seleção Brasileira!

Mesmo com alguns reacionários de plantão a atacar essa ideologia com viés marxista em meio ao futebol, e algumas “fichadas” recebidas pelos policiais, o Regime Militar do início dos anos 1980 já não tinha forças suficientes para impedir essa revolução política dentro do futebol, ou seria do futebol dentro da política?

Entretanto, aquele viés revolucionário do “Magrão” (apelido carinhoso recebido a sua elevada estatura, mas estrutura corpórea magra), não se restringia ao clube de futebol que defendia. Buscando a redemocratização parcimoniosa do país ele militou na campanha “Diretas Já”, entre os anos de 1983 e 1984, que visava aprovar as eleições diretas para presidente da república no país por meio da proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira que seria votada pelo congresso nacional.


Sócrates convocou o povo as ruas de São Paulo como forma de pressionar a aprovação da lei, participou de showmícios dedicados a divulgar a causa e garantiu que se a Emenda Dante de Oliveira fosse aprovada ele continuaria a jogar no futebol brasileiro, mesmo o Corinthians recebendo boas propostas de clubes italianos para a compra de seu passe! Como a lei não foi aprovada, ele embarcou rumo a Florença para jogar na Fiorentina por uma temporada…

Ao ler tais atitudes, pensava comigo ainda nos anos 2000, quando os salários nem se comparavam aos atuais, mais já eram altos. – Que jogador atualmente teria tal coragem de perder seu pé de meia em prol de um ideal que nem ele sabia se mesmo aprovado, seria bem-sucedido? Nenhum me veio a cabeça!

Eu que sempre fui fã de pessoas revolucionárias começava a deixar meu ódio ao Corinthians de lado e admirar aquela figura. A mesma figura que ouvia meus parentes mais velhos xingarem por ter errado o primeiro pênalti contra a França naquela fatídica quarta de final do Mundial do México em 1986. Ou que criticavam pelo seu já conhecido gosto por bebidas alcoólicas e cigarros!

 Continuava a achar o Raí ídolo, mas não poderia deixar uma figura tão emblemática como essa deixada de lado simplesmente por não ter conseguido tantos campeonatos importantes! E afinal, o que é importante ou não, não está na nobreza ou nos valores de um título, mas na própria importância que o seu torcedor dá a aquela conquista, ou não conquista, como foi a Seleção de 1982.


Em 1986, na Copa do México usava uma faixa na cabeça com dizeres a cada jogo. Era uma forma de demonstrar ao mundo todo o quanto as questões sociais eram tão importantes quanto os 90 minutos de bola rolando.

Na primeira partida contra a Espanha, o “Magrão” usava uma faixa em seus cabelos com os dizeres “México sigueen pie”. Em uma clara alusão ao terremoto de mais de 8 graus que devastara parte do país as vésperas do início do torneio. Em outros jogos os textos das faixas atacavam temas ainda recorrentes ao mundo atual. Tais como a fome, o Imperialismo, o racismo e as guerras.         

Sócrates aproximava o futebol das questões sociais que mais afligiam os oprimidos no principal torneio de futebol do mundo. Algo admirável e nunca visto por nenhum outro jogador até os dias atuais. Até porque, nos dias atuais é difícil saber o que eles de fato pensam! Pois manifestações de cunho político e social são proibidas pela FIFA, e os assessores atuais impedem que qualquer um de seus agenciados diga algo que venha a causar algum impacto reflexivo a quem os assiste ou segue!

É claro que os milhões de dólares perdidos contam mais que o desejo de mudar o mundo, mas não era assim para Sócrates, que claro, ainda jogava em um futebol que não pagava milhões. Mas já pagava bem mais do que o restante da sociedade recebia, o que o próprio Sócrates deixa bem claro no início dos anos 1980 em entrevista a José Luiz Datena quando este ainda era repórter esportivo da Rede Globo!

Quanto mais lia sobre Sócrates, ou via suas entrevistas na televisão, mais me tornava fã de sua humildade, carisma, inteligência e coragem ideológica. Não cabendo aqui julgar se seus preferenciais políticos estavam corretos ou errados, Sócrates abertamente socialista defendia o partido com quem compartilhava suas crenças ideológicas, mesmo rejeitando desse mesmo partido quando esteve no poder um cargo ministerial. 

Por outro lado, aceitou o convite de Fidel Castro para treinar a fraca seleção de Cuba (convite que acabou não se concretizando) com apenas uma condição: a de que receberia um salário igual ao dos demais moradores da ilha, respeitando o ideal de igualdade marxista o qual tinha convicção ser o correto para qualquer sociedade… O homem do melhor passe de calcanhar da história era mais que um excelente jogador de futebol. Era a ovelha negra que dava a cara a bater por seus ideais, ao mesmo tempo que não perdia a capacidade de lutar, mesmo entendendo as diferenciações de mundo ideológico e real. Graças a serenidade do seu brilhante cérebro!

Além do esporte e do engajamento político, Sócrates também se destacava na música, teatro, televisão, literatura e é claro, mesmo não exercendo, na medicina! O que chama a atenção, pois mesmo não sendo leigo no assunto, o Doutor foi deixando a doença chamada alcoolismo o vencer durante toda a sua vida.

É claro, Sócrates não era um super-herói. Não podia sozinho mudar o mundo. Mas também não deixou que o mundo o mudasse! Mantinha os amigos feitos desde sua infância, passando pelos feitos durante seu auge de carreira, até os construídos já em seu último trabalho na tradicional e semanal mesa redonda da TV Cultura “Cartão Verde”.

Tinha seus vícios, adorava uma cervejinha como já dito antes, e aqui não cabe qualquer tipo de julgamento, mas sim um reconhecimento de apesar de ser um ser humano diferenciado em todos os aspectos ainda era um ser humano igual aos demais! Infelizmente, esse vício o levou ao fim da vida em 04 de dezembro de 2011, aos 57 anos de idade.


E eu, que acordava de maneira displicente naquela manhã de domingo em que o arquirrival do meu time se sagraria campeão brasileiro, acabei também chorando pela perda de um ser humano tão fantástico! Ainda maior do que foi como jogador de futebol! E olha, hoje (com a maturidade e racionalidade!), reconheço ter sido um espetacular jogador de futebol (estava no Top 100 da FIFA do Século passado)!

Se ele foi melhor ou pior que Raí dentro dos campos? Isso é assunto para um outro texto! Entretanto, aquele triste dia me fez ter uma reação que nunca pensei que fosse acontecer… Chorei muito pela perda de um ex-jogador corintiano, que faz uma falta danada nesse mundo onde as pessoas estão cada vez mais vazias e medíocres em todos os aspectos!

OBRIGADO, DOUTOR!

por André Felipe de Lima


Assim, certa vez, contou Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira: “Sou introvertido. Por isso, quando garoto, punha apelido em todos os meus colegas. Era defesa para ninguém notar minha timidez”.

Obrigado, Doutor Sócrates, pela sua “timidez”. Obrigado, Doutor, pela sua história. Obrigado, Doutor, por ser nosso ídolo “Souza”, “Vieira”, “Oliveira”. Ídolo de todos os Silvas em cada canto de nosso Brasil, um país que você tão bem respeitava.

Obrigado, Doutor, por ser Brasileiro no nome, no sobrenome, no Sampaio, no raio e na alma.

Obrigado, Doutor, por ser eterno em nossos corações tão apaixonados pelo futebol-arte que desata o nó do angustiante dia a dia do Brasileiro torcedor.

“Se as pessoas não tiverem o poder de dizer as coisas, eu vou dizer por elas. Quando eu era jogador, minhas pernas amplificavam a minha voz.”

Falarás sempre, Doutor… e o escutaremos, sempre também.

Nosso Sócrates faria anos nesta segunda-feira, 19 de fevereiro. 
A merecida reverência a um monstro sagrado do futebol em todos os tempos.

Veja alguns vídeos sobre Sócrates: