por Mauro Ferreira
Lá na serra carioca de Santa Teresa, os campinhos de pelada eram muitos. Curvelo, Frei Orlando, Paula Mattos, Rua Áurea. Apesar deles, a bola também rolava nas ladeiras, como a da Eduardo Santos, mesma rua da Escola Santa Catarina. Lá, a baliza ficava na calçada. Delimitavam o gol, de um lado as paredes e muros das casas e vilas; do outro, os postes de iluminação. O “gramado” tinha três tipos de textura: cimento rala-coco, asfalto e paralelepípedo.
Rua bem inclinada, dominar o “courinho” era tarefa difícil. Menos para quem jogava morro acima, é verdade. A gravidade corrigia os lançamentos, os passes mais longos e os caneleiros com pouca intimidade. O time morro abaixo suava para controlar a pelota e frear a desabalada carreira. Kichutes e Bambas sofriam. Invariavelmente rasgavam e expunham os dedões – sempre eles – a contatos doloridos com o piso “irregular”.
Assim eram os fins de dia. A turma da escola da manhã se juntava com a da tarde. A bola esfolada, gomos descascando, esperava os dois par-ou-ímpar. O primeiro, para escolher os times; o segundo, para determinar quem jogava sentido arriba, quem sofria morro abaixo. As lamparinas dos postes de luz da Eduardo Santos eram os refletores do “estádio”.
Alguns dos moleques, cujos tênis eram calçados de dia inteiro, jogavam descalços. Sim, descalços. Sabe-se lá por que cargas, eram os melhores. Colô era um deles. Mário, o outro. Um, louro de olho azul, cabelo liso e comprido, sorriso farto, cuja principal característica era coçar a ponta do nariz com a ponta da língua. Morreu cedo, o Colô. Acidente mal contado, história incerta. Mário, mulato de cara emburrada, cabeça maior que o corpo, sempre disposto a sair na porrada. Mário, mais tarde, virou bandido. Apareceu de óculos rayban mequetrefe, muito tempo depois, exibindo um “trezoitão”. Não demorou muito, foi em cana e sumiu de vez.
Os outros moleques eram os outros moleques. Coadjuvantes dos dois craques. Eles, que jamais jogavam no mesmo time, discutiam a valer, mas inseparáveis quando o jogo encerrava com os assobios e gritos de pais e mães, chamando os filhos para o banho e a janta. Mesmo descalços, quase nunca esfolavam os dedos, tamanha habilidade. Jogar contra ou a favor da gravidade, pouco influenciava no trato carinhoso da maltratada gorducha. E ela agradecia. De tão gasta e tantas vezes recosturada, já quase expunha a câmara de ar, mas reinava doce nos pés dos dois.
Até que surgiu o Campinho. Dos escombros de um cortiço ergueu-se um monumental terreno baldio, espaço adequado para que se cravasse duas traves com redes de barbante e um piso sem efeitos gravitacionais (nem tanto, mas bem menos) e de textura única: o bom e macio barro amarelo. É justo contar que havia algumas pedrinhas para uma adaptação mais rápida. O barranco da travessa Fluminense servia de arquibancada para os grandes eventos. E lá, nesse campo, Mário e Colô passaram a jogar juntos, no time da Eduardo Santos, vice-campeão do famoso torneio da Frei Orlando. Era um time quase imbatível com os dois. Quase. O goleiro era uma porcaria e dias antes da decisão, caiu da bicicleta, ralou joelhos e cotovelos e, mesmo assim, foi jogar a final. Se já era ruim, sem mobilidade foi um desastre total. Derrota anunciada.
O Campinho fez morrer as peladas da ladeira, das bicudas nos paralelepípedos e até ele próprio morreu, quando o Jornal O Dia comprou o terreno baldio e transformou o local em garagem e oficina da frota de fusquinhas. Até a garagem acabou morrendo. Hoje, nada lá funciona. Poderia voltar a ser o Campinho. Poderia. Morreria adiante também. O tempo apaga tudo. Mário e Colô, craques que eram, estão vivinhos da Silva na memória de um espectador privilegiado do futebol peladeiro de ambos: eu, o goleiro do time da Eduardo Santos.