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Sergio Pugliese

PINTURA DE PELADA

texto: Sergio Pugliese | ilustrações: Fernando Mendonça


“Pelada na grama” – Acrílica sobre tela (2016)

 

Osório é o mais organizado do grupo e sempre adorou liderar grandes eventos. Tudo bem que uma vez ou outra se enroscou, como na chegada do Papa ao Rio. Lembram-se? Por um problema de logística a comitiva pegou o caminho errado e o homem de Deus viu-se cercado por uma multidão, num engarrafamento infernal. Mas Osório mete a cara, é destemido e continuou na área, sempre na linha de frente, peito aberto. Sua última brilhante ideia foi organizar uma pelada entre os candidatos e jornalistas. Seria uma forma de atrair a simpatia do eleitor, um ato de civilidade. Convocou seus principais marqueteiros, pegou a prancheta e a reunião virou resenha, das boas.  


“Jogador do Vasco”. Acrílica sobre tela (2013).

– Vão ser sete na linha e um no gol. Chamamos quem para a zaga, hein? – questionou Osório.

– Chama o Molon, chama o Molon! – gritaram os assessores.

– Jandirão, claro! Ela intimida, grandona, leva jeito.

– Mas, será? – freou, Osório.

– Meu Deus, ela é destemida, já liderou várias manifestações, enfrentou PMs, spray de pimenta…vai ter medo de atacante?

– Me convenceu!

– Mas ela não pode pegar muito pesado, hein!

– Como? Zagueiro tem mais é que espanar! – discordou Osório.

– Mas o Freixo vai reclamar e pode até acionar o pessoal dos Direitos Humanos, sabe como é, né?

– Verdade, ele é mais estilo Ganso, futebol-arte, cabeça em pé, se acha.

– Mas nós vão jogar juntos, contra a imprensa! – resmungou Osório.

– Por isso mesmo! Ele é o queridinho da imprensa. Bateu na imprensa, bateu nele!

– Mas se o jogo for descambar para a violência é melhor chamar um árbitro….


– Chama o Molon, chama o Molon!!!

– Já sei, o Índio!!!

– Por que o Índio – perguntou Osório.

– Porque Índio quer apito!!!!


– Vamos levar a sério, não temos muito tempo – ralhou Osório. E emendou: – Será que o Pedro Paulo bate uma pelada?

Como os publicitários perdem o amigo, mas não a piada, um dos estrategistas largou a bomba.


” Pelada de refugiados”. Acrílica sobre tela.

– Se bate uma pelada, não sei, mas que bate numa pelada, bate!

Nem Osório conteve a gargalhada.

– Quem vai ser o capitão do time?

– Chama o Molon! Chama o Molon!

– Acho que só o Bolsonaro tem patente militar.

– Mas Bolsonaro vai expulsar todo o time da imprensa.

– Melhor pra nós! – comemorou Osório.

– E o Crivella?

– Ele só entra nas comemorações de gol: “primeiramente gostaria de agradecer a Deus”.

– O Crivella também pode recolher o dinheiro do churrasco. Esses caras são bons nisso, rapidinho arrecadam uma grana.

– Quem será o churrasqueiro?

– Chama o Molon! Chama o Molon!

– Se for churrasco de peixe, o Índio entende. Essa turma caça para sobreviver.

– E quem vai tomar conta do dinheiro, cuidar do caixinha, ser o tesoureiro?

– Não, chega de chamar o Molon – antecipou-se Osório.

Essa questão do dinheiro é mais complicada e os estrategistas preferiram não colocar a mão no fogo por ninguém. Ficou decidido que vão terceirizar o serviço e abrir concorrência.

As pinturas que ilustram esse texto são do consagrado artista maranhense Fernando Mendonça, vascaíno roxo e fã de Juninho Pernambucano.

A URNA

texto: Sergio Pugliese | ilustração: Claudio Duarte


Convocado pela Justiça Eleitoral para exercer a função de mesário, Aranha respirou fundo e tentou manter o controle emocional. Ele não merecia isso, não naquele dia. Brasileiro, cumpridor dos deveres, impostos em dia, excelente aluno e filho de advogado famoso, o estudante de Economia era considerado um menino prodígio em Petrópolis. Agregador, ainda organizava uma pelada sagrada, paixão de sua vida, no Campestre, e durante meses liderou uma campanha pela reforma do campinho do clube, totalmente esburacado. E o xis da questão era justamente esse: a reinauguração da nova arena estava marcada para o mesmo dia da eleição, no fim da tarde. Aranha tinha a exata noção da importância dos mesários, representantes do povo participando da construção da democracia, mas a obrigação cívica o transformou num jovem alucinado, rebelde e disposto a qualquer loucura para não ficar fora do racha.

– Lutei muito para reformar o campo e não existia a menor possibilidade de ficar fora da festa – lembrou Aranha, que suplicou para não ser identificado porque até hoje, 30 anos depois, o desfecho da história ainda lhe rende severas críticas familiares.

Também pudera, a estratégia usada por Aranha foi a pior possível. Até hoje ele nunca revelou o mentor do desastrado plano e prefere assumir sozinho o estrago. No dia da eleição precisou madrugar porque não era apenas mesário, mas o presidente da seção. Tinha 18 anos, estava de ressaca e seu vice era um senhorzinho invocado. Reuniram a equipe, passaram as últimas coordenadas e abriram a porta da escola aos eleitores.

– O plano era encerrar a seção vinte minutos antes e desaparecer – contou.

O movimento foi grande durante a manhã. Da porta, Aranha sinalizava para as pessoas entrarem logo e na sala organizava a fila e tirava dúvidas. Só faltava bater palmas para os indecisos votarem mais rápido. Estava visivelmente tenso, olho vidrado no relógio. O campo, em Nogueira, ficava a 10 quilômetros da escola, no Retiro, e os amigos já estavam avisados de sua presença na primeira partida. O grande problema seria convencer o vice, homem sério, aposentado do Banco do Brasil, a encerrar a votação às 16h45, 15 minutos antes do previsto. Só na marra, lançando mão da autoridade de presidente.

– Quando a sala deu uma esvaziada falei para a equipe ir desmontando o acampamento – disse, às gargalhadas.

Claro, ninguém entendeu nada. Ainda faltavam 40 minutos, mas o objetivo era preparar o terreno. Adiantou o relógio e rezou. Dois companheiros da pelada entraram para votar e no final o alertaram para não se atrasar. Atirou-se sobre a dupla antes que falassem demais. Alguns minutos depois, iniciou o show. Aproveitou a sala vazia e começou a gritar “encerrou!”, “liberados!”. Alguns mesários não pensaram duas vezes e viraram fumaça, outros exigiram explicações e o vice precisou de água com açúcar. 

– Fechei a casa, coloquei a urna no Fusca e me mandei para o jogo – falou.

Os amigos Flavinho Botelho, Salim, Edmundo, Maurinho, Bocão e o saudoso Tony não entenderam nada quando Aranha entrou correndo no clube, carregando uma urna. Ofegante, ele convocou Benildo, o faz tudo do clube, e mais um grandalhão para tomarem conta do “saco”. Deu R$ 15 para cada e foi jogar, olho no padre e outro na missa. O campo estava um tapete e Aranha deixou o seu, de placa, logo aos cinco minutos. No fim da segunda partida, tomou banho e se mandou para entregar a urna no SESC, onde acontecia a apuração. 

– A contagem estava atrasada por minha causa e chegando lá quase fui preso – lamentou.

Após horas de confusão e a presença do pai, irado, constataram que a urna estava intacta. Aranha alegou problemas gástricos, enjoo e fortes dores de cabeça. Foi liberado e levou a maior bronca da vida. Completamente arrependido, ficou sozinho, encostado no Fusca. Arrasado, precisava de ombros amigos. E sabia onde encontrá-los! Entrou no carro, acelerou e ainda chegou a tempo do churrascão no Campestre.

AZIZ, BOM DE PARADA

por Sergio Pugliese


Celso Bueno, Aziz Ahmed e Alberto Ahmed

Quem conhece Aziz Ahmed sabe a figura que ele é! Lenda do jornalismo e goleiro aposentado do Caldeirão do Albertão, no Grajaú, onde permaneceu invicto por várias temporadas, há 10 anos ele desfila na Parada de Sete de Setembro, acompanhado do grupo de ex alunos do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), e há 10 anos ele sai do evento direto para o campo. Claro que sua chegada sempre é uma farra e todos querem uma foto ao lado do segundo tenente da reserva.

– Mas em campo sempre fui titular! – garante.

E várias testemunhas podem confirmar, entre elas o jornalista Ricardo Boechat, presa fácil do goleiraço, e os adversários Celso Bueno e Alberto Ahmed, seu irmão e dono do campo.

– Quando ele estava no dia dele realmente não passava nada! – atesta Celsinho.

O que importa é que Aziz Ahmed pendurou as chuteiras, mas continua comandando a resenha e disposto a retomar a presidência, cargo ocupado hoje, desastrosamente, pelo esforçado ponta Viquinho.

– Na minha época era mais organizado, tinha café da manhã recheado de frutas, cerveja gelada e mensalidade mais barata. Acho que preciso voltar – anunciou.

Caso se confirme, a galera, assim como o parceirão Viquinho, prestará continência ao fundador e nome mais respeitado do Caldeirão!

O REI DA MADRUGADA

texto: Sergio Pugliese | fotos: Celso Raedes


Time do restaurante Antiquarius

Roberto da Silva estacionou o BMW na porta de um dos restaurantes mais chiques da cidade e desceu com o peito estufado de orgulho. Há 14 anos a cena se repete. Só muda o modelo do carro, às vezes um Audi, um Jaguar, uma Mercedes… Roberto não é jogador de futebol famoso, sonho acalentado até os 21 anos quando trocou a camisa 10 do Jacarepaguá, time da segunda divisão carioca, por seu primeiro e único emprego até hoje, o de manobrista do Antiquarius, no Leblon. 

– Por causa da bola abandonei os estudos, perdi namoradas, fiquei cego. Mas um dia a ficha caiu – contou ele, que tem um Golzinho 2008. 

Para garantir o emprego, o fominha Roberto precisou de muita dedicação e, se já havia abandonado o futebol profissional, não tinha tempo nem para as peladas. Saía muito tarde e pela manhã fazia bicos. Sobrava a madrugada. E foi nela que investiu. Há 12 anos criou o campeonato entre restaurantes, que reúne cerca de 250 garçons de toda a cidade em jogos que vão até o sol raiar, em Rio das Pedras, Jacarepaguá, comunidade humilde onde nasceu e se criou. 

– Acho muito bom ver o nome de restaurantes tão badalados circulando pelo meu bairro. Muitos gerentes já vieram aqui assistir os jogos das finais – disse, orgulhoso, ao lado de Jorge Rocha, seu parceiro na organização do torneio. 

Com um time forte, o Antiquarius entra sempre como um dos favoritos, assim como o Fellini. Há alguns anos, estivemos no campo, na Praça da Associação, numa madrugada chuvosa, e comprovamos o sucesso do evento. Eram duas da manhã quando o primeiro jogo das semifinais, entre Fellini e Franz Café, ia começar. Centenas de pessoas, carrocinhas de cerveja e cachorro quente por todos os lados. Roberto não perdeu um lance. Sabia que os dois times eram grandes rivais e, por isso, prestou atenção na tática de cada um mesmo sendo ele a grande estrela do campeonato. Os adversários dizem que seu estilo lembra o de Válber, ex Vasco e seleção brasileira, mas seus ídolos inspiradores são Geovane, Romário e Bismarck, todos vascaínos como ele. No seu jogo, 4 x 3 no Devassa, da Barra.

– Lançamos talentos. O Iranildo, que brilhou no Flamengo, saiu daqui. Na época esse campo de grama sintética era um lixão e aqui nos divertíamos – lembrou, emocionado. 

 


 

Time do restaurante Fellini

Muitas transformações já foram conseguidas com o esforço dos próprios moradores. Além do torneio dos garçons, Roberto organiza outros tantos para crianças de diversas idades. Sabe a força do futebol para afastar os jovens das drogas e da violência. Seu novo projeto é montar uma escolinha, mas falta ajuda. Acostumado a lidar diariamente com empresários, ele sabe que a bola é a melhor arma para unir as classes sociais. 

– Os sócios e clientes vibram com nossos títulos. Nos campeonatos estamos no mesmo barco – ensina ele, que só reclama da falta de apoio da maioria dos donos de restaurantes. 

Hoje em dia, Roberto é mais cartola do que jogador e reconhece isso. Só fica bravo quando lhe chamam de “Eurico de Rio das Pedras”. Casado há 18 anos, quer um futuro promissor para seu filho Robertinho. 

– Só penso em paz e amor. Antes queria ser famoso – comentou. 

Nesse momento uma senhora gordinha, que ele sequer sabia o nome, lhe cumprimentou com carinho. Em seguida foi a vez de um senhorzinho passar a mão em sua cabeça e logo atrás cinco crianças gritaram felizes ao vê-lo. 

– Mas você é famoso! – emendou Reyes de Sá, da equipe do A Pelada Como Ela É. 

Ele se enroscou com a garotada e assumiu que os torneios lhe tornaram uma espécie de celebridade em Rio das Pedras. 

– As peladas têm esse poder. Elas constroem um caráter, provocam sonhos, reúnem grupos. Queria ser um profissional e hoje sou. Isso aí me encanta! – disse apontando com os olhos brilhando para o campo, seu Maracanã de Rio das Pedras, transbordando de gente feliz em plena madrugada de terça-feira.

COM JEITO VAI

por Sergio Pugliese

“A nossa pelada, como é que ela é
Não tem precatada, só joga Pelé,
E a rapaziada cadencia a jogada:
É chapéu, elástico e bola virada

Ronaldos e Rivellinos com a bola no pé
Jogam sério, enfeitam, sem dar olé
A defesa, sisuda e mal encarada
Só bate na bola, arrepia, sem pancada

É a reunião do espírito da grande jogada
Ao fim da pelada, tem a encarnação
E os derrotados de cabeça abaixada
Também bebem a cevada, merecem perdão”

A equipe do Museu da Pelada resgata hoje um texto SENSACIONAL da antiga coluna “A Pelada Como Ela É”, de Sergio Pugliese!!!! Para entender a razão de tanta euforia, será necessário ouvir o delicioso samba acima, de Vitor Português e Leandro Samurai, composto em homenagem à coluna! É honra demais para esses humildes peladeiros!

Estivemos no Bar X-10, em Botafogo, para conhecer os autores e a roda de bambas, formada por atletas aposentados do Com Jeito Vai, timaço que marcou época no campo de grama rala do Palmeirinha, no Alto da Boa Vista. Foi difícil voltar para casa! Música de alta qualidade, Ângela, Gal, Beth e Valéria formando um corinho afinadíssimo de pastoras e cerveja estupidamente gelada. Dez, nota 10!!!!! 

O Com Jeito Vai sempre foi um time 50% futebol e 50% música. Junto com ataduras e caneleiras, os jogadores sempre levavam banjos e violões. Foram 15 anos de pelada da melhor qualidade. Mas de repente o número ficou contadinho e alguns atletas, como Nero do Pandeiro, só apareciam para a resenha. Para dar quórum alguns iam se arrastando, brigavam com a família e se estressavam com as namoradas. Manter viva uma pelada é tarefa para poucos. O organizador e botafoguense Victor Sereno tentou de tudo, mas quando ele mesmo precisou substituir o meião por meias Vivarina para tratar suas varizes sentiu o fim próximo.

– É doloroso admitir o fim de uma pelada. O grupo sempre foi unido, mas não houve renovação e tiramos o time de campo. Na verdade, trocamos o campo do time – explicou Sereno.

Compromissos e contusões torpedearam o Com Jeito Vai. O jornalista Aluizio Maranhão foi promovido e passou a “morar” na redação, Maurice, o Ferrolho Suíço, montou uma pousada em Ilhéus, na Bahia, Oscar Sznajder, o El Porteño, voltou para a Argentina e o querido Wilson Timóteo, o Tom, partiu dessa para melhor. Além disso, o cardiologista da turma, Dr. Wall, foi engolido pelos plantões, Alemão aprisionado pela namorada e Carlos Falcão, o Rato, levou uma caneta tão desconcertante de um velhinho, num jogo contra, que, humilhado, nunca mais deu as caras. A outra metade do time sofria com o famoso problema de junta. Junta tudo e joga fora! Mas nenhum deles admitia a hipótese de não se encontrar mais. Foi quando a resenha musical ganhou corpo, Victor Sereno revelou seu lado Chico Buarque, encarnou o caboclo Vitor Português e a pelada virou samba. E dos bons!!!!

– Na mesa do bar continuamos fazendo nossas tabelinhas e voltamos para a casa cansados do mesmo jeito – brincou Maranhão, enquanto dedilhava seu violão.

Aluizio tem razão. O Com Jeito Vai nunca se separou, nunca saiu de campo. Nossa equipe comprovou essa sintonia, no X-10. Ali, a turma saboreou as tirinhas de alcatra servidas pela garçonete Cremilda e iniciou a tarde musical com Trem das Onze, de Adoniran Barbosa, e emendou com Tá Legal, de Paulinho da Viola. Lima de Amorim caprichou no banjo e Arnaldo, no tan tan. Veio Malandro, de Jorge Aragão, e Zé do Pandeiro bateu mais forte, mas a cuíca de PJ gemeu alto foi com Nação, de João Bosco e Aldir Blanc. Mas naquele dia, todas essas obras primas ficaram em segundo plano quando Leandro Samurai caprichou no vocal e puxou “A nossa pelada, como é que ela é….”. Os pandeiros de Altair e Fernando fizeram o boteco tremer! Caramba, quanta emoção!

Me despedi dos novos amigos e caminhando pelas ruas de Botafogo ainda ouvi a voz das pastorinhas entoando “Deixa a vida me levar, vida leva eu”. Obedeci e fui em frente contagiado pelo clima de alegria e união da rapaziada do Com Jeito Vai.


COM JEITO VAI FOOTBALL CLUB. escalação: de pé da esquerda para a direita: Maurice (Ferrôlho Suiço), Oscar (Porteño), Aquilles, Dr. Wall, Arnaldinho, e Moreninho. Agachados, da esquerda para a direita: Mangaba, Vitor Português, Carlos Falcão (Rato), O saudoso Wilson Timóteo (Tom), Aluízio Maranhão (Maraca) e Chumaqui (em homenagem ao grande goleiro Schümacker da Alemanhã na época).