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Sergio Pugliese

A PRIMEIRA GOLEADA

texto: Sergio Pugliese | fotos: Guilherme Careca Meireles


PC e Tamba

Era aniversário do Grajaú Tênis Clube e Paulo Cezar Caju aceitou o convite do presidente Sergio Sapo para prestigiar o evento, mas ao entrar no salão de festas arrepiou-se como um felino acuado.

– Aquele ali é o Tamba? – me perguntou.

– O próprio – respondi.

– Ele não me traz boas lembranças….

– Como assim??? O Tamba é nota mil!!!!

– Trauma de criança…..

– Ele te bateu?

– Muito…….


(Foto: Nana Moraes)

Caju diminuiu o passo e congelou o olhar como se recordasse aquele embate pelo Campeonato Carioca, na quadra de futebol de salão da Associação Atlética Tijuca, de dimensões reduzidas e piso de cimento áspero. Era o alçapão de Tamba, mas PC representava as cores do Mengão e, aos 13 anos, já era marrentinho e tinha fama de craque. Jogava de ala e o “irmão” Fred, de parado. Ainda tinha Maina, de pivô, Maurício na ala esquerda e o goleiro Marcelo. Impossível perder.

– Vamos, PC! – tentei despertá-lo.

– Vamos…

– Por que vocês brigaram? – quis entender.

– Foi inacreditável – comentou, aumentando a minha curiosidade.

– Desembucha, PC!!!

– Levei um sacode de 6 x 2 e ele meteu quatro gols espíritas. Foi a primeira goleada que sofri na vida e me traumatizou.

– Caramba, PC, achei que o cara tivesse te embolachado.

– E embolachou….

Quem viu Tamba jogar sabe que os tais gols espíritas não tinham nada de espíritas. O cara era especialista em fazer gols sem ângulo. Pura técnica, zero sorte.

– Vamos lá falar com ele, PC. O cara nem deve lembrar mais disso. Quem bate, esquece – incentivei.

– Tomara…..


Com Tamba estavam outras lendas do futebol de salão: Serginho do Vila, Aécio, Adilson, Celsinho e Álvaro Canhoto. Ao chegar próximo, Caju curvou o corpo e esticou os braços para a frente, num claro sinal de reverência aos caras que foram os papas das quadras. E após os abraços e apertos de mãos, Tamba disparou, com um sorrisinho debochado:

– Recuperado, PC?

Caju me fuzilou com o olhar como se perguntasse “quem bate esquece?”.

– Recuperado de que, não estava doente – tentou despistar.

– Da goleada, PC!!! Hermes, Ademar, Zé Carlos Louro, eu e Zé Carlos……………

– Ah, tá, 6×2 só com gol espírita….

– 6×2, não, 7×1!!!!

– Peraí….6×2!!!!!

– 7 x 1!!!!


Aí o celular de PC toca, ele pede licença e vai afastando-se da rodinha….afasta-se, afasta-se, afasta-se até sair do clube. Da porta, discretamente, me faz um sinal e avisa que precisará ir embora. Ofereço carona e ele aceita. No carro, lembrou que estava no Flamengo quando o Botafogo, seu time de coração, aplicou aquela histórica goleada de 6 x 0, no Maracanã. E não se importou com a goleada de 7 x 1 da Alemanha no Brasil. Mas aquela de, para ele 6 x 2, o irritou profundamente. E entre uma bufada e outra, deixou escapar.

– Esse Tamba jogava pra caceta!!!!

GOL DE LETRAS

texto: Sergio Pugliese | edição de vídeo: Daniel Planel

De repente, o puxão de orelha. Era o quarto da semana, pelo mesmo motivo. 

– Já para casa treinar caligrafia! 


(Foto: Arquivo)

O menino não era louco e obedecia. Conhecia bem o peso da mão de Odilon, um dos quatro irmãos. Ele sempre chegava de surpresa, dava o bote e com apenas dois dedos capturava a presa. Incontáveis vezes invadiu os rachas da Rua Manoel Leitão, na Tijuca, para aplicar seu radical método de ensino. Nessa época, as orelhas de Arnaldinho cresceram alguns centímetros, mas a técnica do mano surtiu efeito. E que efeito! O fominha de bola, sem abandonar os campos, se tornou o primeiro aluno do Colégio Vera Cruz e da Faculdade de Educação, do Instituto Lafayette. Aos 15 anos, começou a escrever crônicas esportivas no Última Hora e aos 17, talento reconhecido, foi contratado pela Manchete, onde ficou 37 anos. Hoje, o intelectual Arnaldo Niskier é imortal da Academia Brasileira de Letras, presidente do Centro de Integração Empresa Escola (CIEE) e autor de 60 livros educativos. 

– Nenhum deles incentivando a prática do puxão de orelha – garantiu, às gargalhadas, durante chá na ABL com a orgulhosa equipe do A Pelada Como Ela É. 

Mas Arnaldo reconhece a importância da família em sua formação e apesar das broncas todos sempre o incentivaram a tentar a sorte no futebol. Torcedor apaixonado do América, treinou no clube como ponta-esquerda do infanto-juvenil e ganhou a vaga de titular quando Zagallo, Mariozzi e Manfredo foram para o Flamengo. No início, conseguiu conciliar a paixão com os estudos e os plantões no jornal. Lembrou da primeira matéria, em 1954: Bangu, do goleiro Princesinha, 6, Madureira 1. Também era excelente nadador e ganhou 56 medalhas, mas uma otite o afastou das piscinas. Na Manchete Esportiva, o cenário mudou. O chefe Augusto Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues, o liberou para três treinos, mas no quarto chiou e o jovem Arnaldo optou pelo jornalismo. Só sobraram as peladas na areia da Praia da Barra da Tijuca e os campeonatos de futebol de salão pelo Clube Municipal. 

– Nossa vida era dura e eu pagava meus estudos, precisava trabalhar – contou, enquanto dividia um bolo de aipim com coco, com Reyes de Sá Viana do Castelo, intelectual dos bares e da equipe do A Pelada Como Ela É. 


(Foto: Arquivo)

Mas a história de Arnaldo ganhou corpo e seu nome virou referência na área de Educação. Orgulha-se do currículo e dos altos cargos, mas prazer mesmo foi jogar ao lado do filho Celso Niskier, o Samarone, hoje o reitor bom de bola mais jovem do Brasil. As peladas aconteciam no Teresópolis Country Clube e também participava o goleiro Antonio Nascimento, atual editor do caderno de Esportes de O Globo. Segundo Arnaldo, o uniforme de Toninho era praticamente uma armadura, cheio de parafernálias e cobria quase toda a extensão do gol, sendo impossível penetrá-lo. Arnaldo também lembrou os campeonatos intercolegiais e elegeu o gol de cabeça feito pelo Vera Cruz como o mais lindo de sua carreira. Mas foi obrigado a ouvir uma tirada infame de Reyes de Sá. 

– O gol da vida de um intelectual só podia ser de cabeça. 

Arnaldo se fez de surdo e para o cenário das fotos escolheu a imponente Biblioteca Acadêmico Lúcio de Mendonça, no prédio anexo à ABL. Ali, virou menino, quebrou regras e falou alto. Acabara de receber uma bola de nossa equipe e estava exultante, então encarou Reyes de Sá e devolveu o trocadilho. 

– Me fotografa fazendo um gol de Letras. 

Aos 76 anos, num elegante terno, puxou a bola com o bico do sapato engraxado e arriscou algumas embaixadinhas, mas ela escapou. “Você era bom nisso”, comentou baixinho para ele mesmo, como exercitasse a memória, provocasse o talento guardado desde os 65 anos quando atuou pela última vez, em Barra do Piraí, e foi aposentado por um estiramento. Concentrado, novamente rolou a redonda no assoalho e iniciou o show. Uma, duas, três, agora sim…ela subiu e aterrissou mansa na gravata de seda. Tanta empolgação assustou Luiz Antônio de Souza, há 39 anos dirigindo e zelando pelo nobre espaço abarrotado de livros raros. De sua mesa alertou sobre o perigo de uma porta de vidro das estantes ser quebrada. Não chegou a puxar a orelha do escritor, como Odilon, mas pediu modos. Mergulhado num mar de nostalgia, Arnaldo recordou suas boladas explodindo nas janelas das casas da Rua Filgueiras Lima. Era como se o tempo não tivesse passado e ele ainda fosse o mesmo menino peralta da Tijuca. Emocionado, citou Machado de Assis: “Esta a glória que fica, eleva, honra e consola” e pela primeira vez, desde que assumiu a cadeira 18, da Academia Brasileira de Letras, há 27 anos, entendeu o verdadeiro sentido da palavra imortal.

Texto publicado originalmente na coluna A Pelada Como Ela É, do Jornal O Globo, em 2 de julho de 2011.

RECEITA DA FELICIDADE

por Sergio Pugliese


Pôster. O grupo da Pelada da SimFarma, no Clube Grama Sintética – Terceiro / Agência O Globo

Há alguns anos, a revista médica “European Heart Journal” divulgou pesquisa reforçando o que nós e a torcida do Flamengo já sabíamos, mas nunca é demais lembrar: os estressados têm mais chances de sofrerem ataques cardíacos, de empacotarem antes do previsto, de subirem para o andar de cima precocemente, de irem para o vestiário mais cedo. Assim sendo, cumprimos aqui nosso papel de colaborar com esses potenciais homens-bomba e avisá-los sobre algo de extrema importância: passem longe da Pelada da SimFarma, no Clube Grama Sintética, no Gragoatá, Niterói.

— Aqui só sobrevivem os com nervos de aço — adiantou Júnior, o Juneco ou Tufão, um dos fundadores.


(Foto: Reprodução)

A única segurança dos que se aventuram ali é o fato de a SimFarma, antiga Tamoio, ser uma rede de farmácias de São Gonçalo, e remédio não faltar numa emergência. Precavidos, alguns atletas apelam ao Rivotril sublingual só para aturar as encarnações de Charlão Brocador, Cleber, Jaílson, o Jajá, e do goleiro Boca. Ali, as apostas ajudam a elevar a temperatura. Uma delas é para cada caneta ou lençol levado, duas cervejas. E o pior em campo, “a baranga”, é obrigado a jogar vestido de mulher na semana seguinte. Buylling é fichinha. No dia de nossa visita, Vinícius canetou Márcio e a encarnação foi tanta que o pobrezinho se mandou sem deixar vestígio, e, o mais grave, sem pagar a dívida.

— Sua atitude antidesportiva será avaliada pelo conselho — avisou Adelino, um dos líderes do grupo, com Roni Artilheiro, Charles e Marcinho Marinheiro.

As partidas são de excelente nível, afinal o grupo é formado por vários ex-profissionais, como o cracaço Alberoni, do Vasco, Inter de Milão e campeão mundial sub 17; Jajá, do Blue Star, da Suíça; Baratinha, do D. Pedro, do Espírito Santo; Boca, do Itaperuna; Cleber, do Bahia; Adelino, do União São João; e Pablito, cobra criada do futsal. Mas naquela noite de quarta-feira, Jajá destacou-se e, inspiradíssimo, driblou, lançou, pedalou e balançou as redes inúmeras vezes. Cada pintura, uma pose para o clique de Daniel Oliveira, nosso correspondente internacional de Niterói. Nas disputas de 10 minutos ou dois gols, só perdeu uma para Alberoni e no par ou ímpar.

— Ele quis aparecer para vocês, nas últimas semanas tem perdido todas — entregou Mansur, que, após ter cometido pênalti cortando um cruzamento com a mão, virou Mãosur.

Do lado de fora, poupado por problema “de junta”, Charlão Brocador infernizou a vida dos companheiros, em sua maioria representantes farmacêuticos e funcionários da SimFarma. Talvez por isso, o craque aposentado tenha sugerido tantos remédios em suas cornetadas. Para Vinícius, “perdido em campo”, receitou comprimidos contra labirintite. Para Erto, “morto com farofa”, sugeriu Targifor, tradicional fortificante. Na ausência do goleiro Azul, nada a ver com Viagra, apenas a cor de seus olhos, sobrou para Tardelli, balconista do bar do clube. Após o segundo frango, Brocador deu a solução, “colírios Moura Brasil”. A gritaria era tanta que Lorenzo Carlos, de 1 ano; e Yan, de 9, filhos do gigante Cleber, choravam sem parar, na beira do campo… de batalha.

— Dá chá de camomila para essas crianças — gritou Brocador.

Mas quem precisava mesmo de tranquilizante era o pai. Zagueiro experiente, Cleber quase enlouqueceu com os atacantes Baratinha, Pablito e Alberoni, e abriu a caixa de ferramentas. Pau puro ao lado de Bubu! A pelada não tem árbitro. Todas as tentativas de contratar um foram frustradas e vários tiveram cartões e apitos arrancados da mão. Ninguém se arrisca, só Jiraya, outro vetado pelo departamento médico, garotão com apelido de ninja. Quem vai encarar? De repente, o choro das crianças cessa. Na de fora, Jajá, sósia do ator Aílton Graça, usou seu carisma e, claro, uma bola para distrair os filhos do camarada.

— Sou dupla função, em campo garçom; fora dele, babá — brincou.

Na resenha, churrasquinho sagrado de Cosme e Dan, as encarnações continuam. Boca lembrou do amistoso no Espírito Santo, farra bancada pela direção da farmácia. Muitos entrariam num avião pela primeira vez, como era o caso de Jajá. No aeroporto, durinho da Silva, Jajá ouviu que precisaria fazer o check-in. “Chequinho?”, perguntou para Boca. E emendou: “Não tenho um puto no bolso”. Explosão de risadas! Vinicius, Bubu, Gustavo, Felipe Toca Nada, Leandro, o galã grisalho, e os gêmeos Dudu e Lala não trocam aquele momento por nada! Alberoni mandou descer mais duas! Aplausos, afinal Engov não é problema para os patrões.

E a rapaziada varou a madrugada bebendo, rindo, extravasando e comprovando que não existe no mercado Lexotan mais eficaz do que estar entre grandes amigos.

Texto publicado originalmente no site do Jornal O Globo em 30 de março de 2014.

SARACUTACO

texto: Sergio Pugliese | fotos: Guillermo Planel


Os meninos da escolinha do Saracutaco: time mantém projeto no Complexo da Penha

O maior sonho do saudoso José Alves de Oliveira, o Seu Zezinho, era montar um time bom de bola, de mesa e de ideais. Um dia, numa reunião, compartilhou seus desejos com a família, amigos e alguns craques do Complexo da Penha, região onde morou desde os 20 anos, vindo do Norte, até seus últimos dias, aos 83. Os filhos José, João, Manuel e Carlos, o Playboy, aderiram e iniciaram a caça aos boleiros do bairro. O goleiro Luiz Augusto seria o mestre-cuca das resenhas, afinal ninguém faz um sarapatel como o dele. E Pedro Sebastião Rodrigues, o Pedrão, cuidaria da escolinha. Fechado!!!!

— Mas faltava o nome do time — recordou o roupeiro Adenir da Silva.

E veio por acaso. Num bar, claro! Na tentativa de afugentar um resfriado, Carlos Rosa, o Playboy, pediu um saracutaco, nome inventado na hora para uma bebida que misturasse de tudo um pouco, mel, limão, gengibre, 51, quase uma poção mágica. A galera em volta ouviu o nome e o time estava batizado! Saracutaco!!! Esporte Clube Unidos do Saracutaco, que o dicionário cita como requebro, remelexo. Conseguiram um campo, na Pedreira, e viraram o rolo-compressor da Penha. Além dos irmãos José, João, Manuel e Playboy, tinha Luiz Augusto, Denilson, Nando, Nininho, Demetrio, Padio, Silverio, Eraldo, Creu, Jalmir Talismã e Gersinho. Timaço!

— Ganhamos vários campeonatos, ficamos famosos na redondeza e todos queriam jogar no time — comentou, orgulhoso, o zagueiro Moacir Silva, o Mundico.

As partidas com os rivais Dona Tereza, Apolo e Aimoré pegavam fogo, mas o confronto mais esperado era com o Luzes da Cidade, de Gilberto, Zezé e do técnico Lindomar. Casa cheia e o bicho pegava!!! No final, os dois times confraternizavam na birosca da Rua 29 ou na própria sede do Saracutaco, onde saboreavam as delícias do “chef” Luiz Augusto. Ali mesmo, nasceu a escolinha, que hoje conta com aproximadamente com 150 crianças.

— Realizamos o sonho de meu pai e do saudoso Samarone, outro fundador — vibrou Carlos Rosa, o Playboy.


Os jogadores do time de máster e veteranos

Nossa equipe foi convidada por Flávio Augusto Siciliano para conhecer de perto a história do Saracutaco. Flávio é o faz tudo da turma e uma espécie de anjo da guarda, que surgiu na vida da rapaziada para transformar o time numa instituição sem fins lucrativos, legalizada, principal desejo de Seu Zezinho. Marcamos um ponto de encontro, cedinho, num domingo. Os ressacados Guillermo Planel, André Fernandes e Guilherme Careca Meireles me acompanharam na missão. Antes de partirmos, Flávio Siciliano, constrangido, pediu atenção para algumas cenas ao longo do caminho. Imaginamos fuzis, traficantes mascarados, mas a violência era outra: a condição subumana vivida por alguns moradores. Pobreza extrema na área conhecida por Pedreira, Vacaria ou Sem Teto.

— A escolinha é uma luz no fim do túnel — afirmou Flávio.

Na sede, encontramos Pedrão dando palestra para a garotada. O tema variava. Tinha dicas de posicionamento para o goleiro Açúcar, elogios para Davidson, o meia Leonardo e William, o Mineirinho, e conselhos sobre a importância de estudar e respeitar o próximo. E no final ele pediu a palavra a Matheus, ex-aluno, hoje fuzileiro naval, que venceu a pobreza e abraçou o lado bom da vida graças ao carinho recebido na escolinha.

— Aprendemos a não esperar pela ajuda de ninguém. A iniciativa é nossa e sabemos nos virar — ensinou Pedrão, ao lado de Alberto Braga, rei das planilhas.

Foi o que vimos. O uniforme e o lanche são bancados pelos R$ 5 que cada “saracutaense” do máster e dos veteranos contribuem pelo uso do campo. Mas aos poucos a ajuda vem chegando. Flavio colocou na roda André Nogueira, da OCA, ong que está buscando parceiros para os serviços serem ampliados e a voz, amplificada. Aurélio, do Guanabara, também vai ajudar!!! Nos emocionamos com o esforço do grupo e pedimos uma gelada para curar a ressaca, no Bar da Néia. E ainda teve o batismo da cuia, um goladão de cachacinha mineira, prenda de Luiz Augusto. Que dia!!!!


As crianças encantavam-se com as filmadoras e o sarapatel sumiu num piscar de olhos, culpa de nossa esfomeada equipe. Felicidade e samba, com Gersinho e Jalmir Talismã, do Razão Brasileira, no comando. Ali, o descaso de políticos é atropelado pela união dos amigos. O Saracutaco é um foco de resistência, uma aula de determinação, um tapa na cara dos que reclamam de barriga cheia. O campinho de terra batida é o espaço aglutinador, onde a rede de solidariedade cresce a cada entrada de um novo sócio. Cinco reais a mais!!!! É pouco? Mexa-se, vá conhecer o Saracutaco e entenderá que não.

Texto publicado originalmente no site do Jornal O Globo em 16 de julho de 2015.

 

A TROCA

por Sergio Pugliese


(Foto: Arquivo)

Longe das Lei Secas e Choques de Ordem que brotam em cada esquina do Rio, o carioca Rodrigo Duque Estrada, após passear pelas belas ruas de Faenza, pequena cidade ao norte da Itália, onde mora há oito anos, estacionou sua lambretinha vermelha e preta para caminhar e pegar sol no Parque Bucci. Trabalha com gastronomia e eventos no badalado Osteria della Sghisa, dorme pouco e precisava relaxar. Mas alguns metros depois viu um policial, cara de mau, aproximar-se e anotar sua placa. Voltou correndo.

– Oi! Bom dia, senhor! Por que está me multando?

– Porque aqui não é permitido estacionar scooter e motos, só bicicletas. Não viu a sinalização alertando? – respondeu, sem disfarçar a impaciência.

O aviso realmente era gigante e a lambreta descansava milimetricamente sob a placa, ridículo.

– Impressionante como não vi…..distração total – desculpou-se, com um sorriso amarelo.

– Mas um painel deste tamanho? É impossível não vê-lo! – resmungou o guarda Ivan, enquanto prosseguia as anotações.

Realmente era incontestável, indefensável, inexplicável…….

– Só posso pedir desculpas – admitiu, baixinho.

A cara triste do menino do Rio, certamente desenvolvida em mergulhos teatrais, no Tablado, levou o policial a erguer uma das sobrancelhas e observá-lo.

– De onde é?

De onde mais poderia ser? Moreno, recém chegado de uma temporada de surfe na costa francesa, malhadão, sorriso fácil, rato de praia, neto de Dona Inês e, acima de tudo, bom de lábia!

– Sono brasiliano! Vengo da Rio de Janeiro – respondeu, orgulhoso, com sotaque ítalo-carioca.

Quando ouviu “Rio de Janeiro” a sobrancelha erguida deu lugar a um sorrisinho malicioso, reservado aos grandes estrategistas.

– Rio! Praias, belas mulheres e…..futebol! Joga futebol?

Peraí! É até falta de respeito perguntar isso para um carioca da gema, cria da escolinha do Flamengo e ídolo no Maconhão, tradicional campo de soçaite, na saída do Túnel Rebouças. Calma, Dona Inês, o apelido do campo é esse, fazer o quê? Dona Inês Estrada é a avó coruja, fã de carteirinha do moleque. Ela lembrou que o neto também era craque em piruetas e faltava pescoço para guardar tantas medalhas conquistadas na ginástica olímpica do Mengão.

– O futebol é minha paixão e me considero bom de bola, sim – respondeu com a inconfundível marra carioca, ao estilo baixinho Romário.

O policial respirou aliviado com a revelação e guardou o bloquinho no bolso.

– Jura? Que ótimo! E por qual time torce?

Aí, virou bagunça. Ivan deu um braço e Rodrigo abocanhou o corpo todo! Olhos arregalados, como em transe, sacudiu os ombros do guardinha e encarou-o firme antes de gritar, relembrando os velhos tempos de Raça Rubro Negra, no Maracanã: 

– Tifo per il Flamengo!!!! Flamengo fino allá fine!!!! (Torço pelo Flamengo!! Flamengo até morrer!!!).

E emendou.

– Jogo na praia, em salão, cimento, terra batida, paralelepípedo, pé-de-moleque, ladeira…..

Um jogador completo, pensou o fominha Ivan, que construíra um campinho nos fundos de sua casa. E um brasileiro bom de bola por lá, além de levar fantasia às peladas de sábado, ainda colocaria os adversários no bolso. Seria a salvação da lavoura! Então, foi a vez dele, olho no olho, balançar os ombros de Rodrigo e propor, entusiasmado.

– Cavolo! Allora ti lascio il mio numero e vieni a giocare con noi! La multa lasciamo perdere, facciamo finta di niente! L’unica cosa che devi promettere è di venire a giocare nella mia squadra! Ci conto!!! (Puxa!!!! Então deixo o meu número e vem jogar conosco! A multa deixamos para lá!! A única coisa que precisa me prometer é vir jogar no meu time! Te espero!).

Rodrigo carimbou a proposta ali mesmo. Prometeu ficar de olho vivo nas placas e virar garoto propaganda das leis de trânsito. Desculpou-se pela infração e partiu.

Feliz, o guarda Ivan observou sua nova contratação sumir em direção ao parque. Antes de entrar na viatura, retirou o bloquinho do bolso e arrancou a página da multa. Com um sorriso maroto, transformou-a numa bolinha e a jogou para o alto. Na sequência, matou no peito, fez três embaixadinhas e com um chute preciso acertou a pelota de papel dentro da lata de lixo.