por Serginho 5Bocas
Vocês sabem o que é uma Peneira? É a prova dos nove dos moleques candidatos a craques da bola, pois é lá que o jogo fica em seu estado mais bruto na vida dos jovens postulantes a craques e onde morrem ou nascem sonhos e esperanças daqueles que sonham em ser jogador de futebol.
Não há espaço para palavras educadas e motivadoras. Ao final do treino é aquela hora do momento mais temido, quando o homem da prancheta decide e diz quem fica e quem volta para casa.
O ex jogador Cafu, que foi recentemente eleito o melhor lateral direito do futebol mundial de todos os tempos pela revista France Football, foi um caso extremo de resiliência no campo das peneiras. Reprovado em mais de dez delas, sempre voltava e tentava novamente. Um dia ele foi lá e a coisa aconteceu e o resto todos já conhecem. Muita gente boa ficou pelo caminho, porque não tinha paciência para aturar os destratos dos negligentes avaliadores ou porque não davam importância mesmo. O certo é que querendo ou não querendo, tem que passar pela duríssima prova de fogo.
A vida dos meninos é tão difícil que para vocês terem uma ideia, Pelé precisou de uma forcinha do ex-craque da seleção brasileira Waldemar de Brito e Zico precisou do aval do radialista Celso Garcia. Imaginem os simples mortais? Mas vamos ao moleque da hora…
Moleque de rua, de paralelepípedo, das tabelinhas com as paredes, das paradas de bola para esperar a moça ou o carro passar, somos nós, somos todos nós, quando olhamos com carinho para a infância que passou. Piu Piu era bola-bola, gastava ela com amor, não era o melhor de todos, nem era o mais habilidoso, o mais driblador, mas era impávido, determinado, chato de ser vencido. Tinha qualidade no passe, visão de jogo, batia forte e com direção na bola e tinha uma vontade absurda de vencer.
Ainda menino, no auge de seus 11 anos, Piu Piu não tinha medo de cara feia, nem de cara grande, os temidos “galalaus”. Jogava suas peladas contra os caras bem mais velhos e grandes e num domingo desses de manhã, foi jogar um time contra o Vitoria do Lins, um clube de futebol de salão do subúrbio do Rio de Janeiro. Perderam nas três categorias (mirim, infantil e infanto), mas Piu Piu e o amigo Caolha foram chamados para fazer testes no clube. Passaram, mas não seguiram com a experiência, porque tinham medo de andar de ônibus à noite. Apesar da peneira superada, “queimou a largada” na primeira peneira superada.
Cinco anos depois, lá estavam juntos novamente, Piu Piu e Caolha fazendo um teste no infanto-juvenil do time de futebol de salão do clube Ríver de Quintino. Dessa vez, passaram e seguiram em frente, jogaram o segundo turno do Carioca daquele mesmo ano, no longínquo 1983. Outra peneira vencida, desta vez mais fácil.
No ano seguinte, Piu Piu se sentindo desprestigiado no clube de Quintino, foi fazer teste numa peneira no Grajaú Tênis Clube e mais uma vez passou no teste, chegando a disputar algumas partidas amistosas e uma ou duas do Carioca do campeonato juvenil. Mas novamente alguma coisa não vingou, ele era cabeça quente demais, não engolia sapos e decidiu jogar aquilo tudo para o alto e se dedicar aos estudos.
Neste intervalo de tempo, ocorreu o fato mais inusitado. A mãe do padrinho de Piu Piu trabalhava como doméstica na casa do jogador Júnior, do Flamengo, sim do Leovegildo. Dona Dolores pediu ao craque da seleção, o famoso lateral, mas que ainda não era o nosso maestro, para dar uma carta de apresentação que permitisse o afilhado do filho dela fazer um teste no Flamengo.
Júnior escreveu a carta pedindo ao Joel, ex-ponta direita do Flamengo, que desse a chance a ele de fazer um teste no campo conhecido como 8º GAC, um quartel na Vila Militar onde estava rolando uma peneira.
Carta recebida e quase ignorada por não acreditar que o Júnior daria esta moral. Passado o susto inicial, foi falar com seu pai, que lhe deu um valioso conselho, mas que infelizmente foi ignorado:
– Filho, pega um ônibus para lá um dia antes, para você ver onde é, para depois não errar o endereço.
Piu Piu deu de ombros e achou que era preciosismo demais de seu pai. “Quem não escuta cuidado, escuta coitado”, já dizia o velho ditado. No dia marcado, Piu Piu pegou o ônibus 689 “Meier-Campo Grande” e foi para o maior desafio daquele garoto de 14 prestes a fazer 15 anos.
Na cabeça era um misto de ansiedade, medo e vontade de ver como é que seria. Imagina só passar no teste e falar com a galera da rua que agora era jogador do Mengão, putz!
Piu Piu pegou o ônibus e quando chegou próximo da Vila Militar, perguntou ao cobrador e depois ao motorista se conheciam o campo do 8º GAC e ambos nunca tinham ouvido falar dele. Frustração e um frio na barriga, lembrou na hora do velho pai e já pensava o que diria para ele se não encontrasse o campo.
Desceu do ônibus um pouco mais a frente e saiu perguntando para algumas pessoas sem sucesso, ninguém sabia onde era o campo. Resignado, triste e um pouco menos tenso, porque não faria mais o teste, pegou o mesmo ônibus no sentido contrário e um estranho sentimento rondava sua mente. Sentira tanta ansiedade e medo que agora voltar para casa parecia uma coisa bem tranquila.
Aí, aconteceu a coisa mais marcante dessa história toda. Piu Piu se sentou próximo ao cobrador, num banco mais alto, que ele gostava de ficar, para ver melhor a rua e não enjoar com o balanço do ônibus e quando já estava saindo da Vila Militar, viu um Quartel a sua direita e teve quase a certeza que estava escrito no muro GAC. Não deu pra ver se tinha um 8º antes, foi muito rápido e imediatamente, virou-se para olhar por cima do muro e lá avistou alguns meninos jogando bola em um campo gramado.
– “É ali, Piu? – Seu cérebro indagou em milissegundo a pergunta cruel.
Agora havia uma decisão a ser tomada urgente, o que fazer? Descer do ônibus e sair correndo, se desculpar pelo atraso e tentar fazer o teste ou deixar pra lá, seguir seu destino e arrumar uma desculpa para contar em casa, para seu pai e sua mãe.
Optou pelo caminho mais confortável. Sentiu um terrível medo do insucesso, coisa nunca experimentada, talvez por ser no seu clube de coração. Talvez tenha imaginado o tamanho daquilo tudo e seu cérebro não parava de pensar em todas as possibilidades de fracasso.
À medida que o ônibus ia se distanciando do endereço de seu sonho, Piu Piu ia ficando triste e talvez com uma ponta de arrependimento de não ter voltado e ter realizado o grande teste de sua vida. O que poderia ter acontecido? Nunca irá saber.
Hoje, Piu Piu diz que o que passou, passou, mas sente lá no fundo, uma tristeza de não ter a certeza se dava ou não dava para ele. Faltou coragem, talvez experiência ou até mesmo um padrinho naquela fatídica empreitada, para lhe dar aquele último empurrão. No aconchego do seu travesseiro, quantas vezes ele já pensou que tem tanta gente que não joga nada e virou profissional, porque logo ele, que era um matador de peneiras, não se tornaria um jogador de futebol? Nunca vai saber.
Se houvesse na vida de Piu Piu um momento “De volta para o futuro” (ou para o passado), com o “Marty McFly” e o “Dr. Emmett Brown”, astros marcantes daquele filme inesquecível, lhe dando uma nova chance de reescrever o seu caminho, voltando no tempo momentos antes de entrar naquele ônibus. E se ele pudesse ter as informações e a orientação para realizar aquele teste, do seu próprio “eu”, será que ele seria feliz? Será que também encontraria a sua namorada de novo, que depois virou esposa e teria os seus filhos, que tanto ama? Será que realmente teria uma carreira de sucesso nesse esporte ou teria uma contusão grave ou ainda seria esquecido na penúria de um time pequeno? Ninguém pode responder, nem mesmo ele tem a certeza de que tentaria de novo, a conta já está fechada.
O mundo das peneiras é feito muito mais de momentos triste do que felizes, um funil apertadíssimo separa os homens dos meninos, muita gente boa fica pelo caminho, é lugar para casca grossa, a bola vira prato de comida e não dá tempo para dúvidas. Reparem que raramente vemos jogadores de futebol de origem rica ou de classe média alta, em sua grande maioria, são os meninos mais carentes que vingam, aquele que não tem plano “B”, não há escola para oferecer outro caminho, empresa da família ou qualquer outra opção para largar o objetivo e partir para outra, é dá ou desce.
A história do Piu Piu não é única, tampouco inédita. Na verdade ela é baseada em fatos reais, ocorridos com o Serginho 5bocas ou se preferirem, com o “Piu Piu”, da Dona Jalderia (sua mãe), do Seu Domingos (seu pai) e de seus queridos irmãos Jorge, Geraldo, Marcos (in memoriam), Graça, Dolores e Consuelo.
Ô tempo bão!