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Rubens Lemos

DINAMITE COMOVENTE

por Rubens Lemos


Creia, amigo leitor: ser emocional até a medula me mantém vivo. A herança existencial do meu velho pai foi a prioridade ao sentimento em desprezo à frieza insípida de números e pragmatismos. Então, a notícia veio ao cair da tarde do domingo, o que, para os prisioneiros das oscilações da alma, foi, como sempre, fatal.

Roberto Dinamite, com o destemor dos guerreiros de talento e fibra, abria o peito para dizer que estava com câncer. Tumor diagnosticado, ele magro e abatido na aparência, firme na certeza de que a luta será maior do que vencer zagueiros excepcionais do nível de Edinho e Ricardo Gomes do Fluminense, de Aldair e Mozer do Flamengo, de Gotardo e Mauro Galvão nos idos do Botafogo.

Roberto Dinamite foi a cara e a coragem do Vasco. Hoje, o Vasco é uma caricatura distante da grandeza épica de um artilheiro de sorriso triste e volúpia insaciável. De gols raçudos e magníficos, como o do chapéu em Osmar Guarnelli, zagueiro do Botafogo em 1976. Roberto Dinamite dominou no peito, deu um toque por cima de Osmar, que caiu sentado.

Roberto Dinamite fuzilou de sem-pulo, o arremate letal fulminando o goleiro Wendell antes de a bola tocar no chão. O Vasco vencia o Botafogo, ou melhor, Roberto Dinamite garantia a vitória no segundo final. É o gol mais reprisado da TV brasileira de tão lindo, um cartaz hoje digital da beleza do velho Maracanã do povo, do Maracanã das gerais, de favelados e desdentados, cuja invisibilidade social dava luz aos seus corpos mal vestidos pela luz de um artilheiro imortal.

Imortal. Roberto Dinamite é imortal. É o homem acima da lenda. Sempre afável, sorridente, solícito, é o sujeito tímido que me deu um autógrafo à beira da piscina do hotel Ducal, quando a seleção brasileira de Telê Santana enfrentou a Alemanha Oriental no Estádio Castelão, início de 1982. Ele, acolhedor, eu, trêmulo. A timidez do craque e a alegria infinita do moleque magro e apaixonado. Por Roberto Dinamite.

Saber Roberto Dinamite doente, dói. Vê-lo disposto a enfrentar a quimioterapia, atenua a tristeza. Ler as mensagens de Geovani – que venceu o mesmo problema com fé, obstinação e a força solidária de Roberto Dinamite, de Júnior, tantos companheiros e adversários, sacode o espírito para a guerra desigual.

Um ídolo é, na imaginação do fã, um íntimo, um amigo maior que os outros, uma arma contra as emboscadas da vida. Por isso, que chorar, chorei mesmo quando Zico apareceu e desejou, com sua integridade acima de duelos clubísticos, o apoio renovador de esperanças.

Zico é uma instituição de genialidade similar ao caráter límpido. Rivalizava – em campo -, com Roberto Dinamite nos clássicos que chegaram a 174 mil pagantes no campeonato carioca de 1976, ambos no auge. Fora dos gramados, amigo de Roberto Dinamite. Zico está em campo, na partida mais difícil do camisa 10 do Vasco vitorioso.

A dor de Roberto Dinamite é a dor de minha geração. Estamos envelhecendo, nós, mais novos que ele – tem 67 anos -, padecendo no obituário avassalador de todos os dias.

Minha geração aprendeu que ídolo é aquele herói que não padece, salva o menino em desvantagem no placar, num gol de falta, de cabeça ou de voleio, bem no fim do jogo, que recomeça com Roberto Dinamite amado e o amor é um senhor antídoto contra o calvário da saúde. Roberto Dinamite vai vencer. Com gol narrado por José Carlos Araújo, o Garotinho.

O OTIMISTA

por Rubens Lemos


Tive um amigo alguns anos atrás que poderia chamar de otimista. Gostava muito dele. E ele, dos seus patrões. Era incrível, nos divertíamos, quase aos orgasmos, eu e um terceiro comparsa, que me ensinou a gostar das crônicas de Antônio Maria.

E eu me apaixonei por Antônio Maria uns 32 anos depois de sua morte, de infarto no Le Rond Point, em Copacabana, dia 15 de outubro de 1964, de profunda tristeza.

Nunca esqueceu Danuza Leão, seu amor maior, que ele arrebatou de Samuel Wainer, um dos mais completos jornalistas do país para depois sentir o fel da mudança de lugar na fila.

Pois bem, esse amigo, meu e do terceiro amigo, homem bom e homem probo, nos chegava periodicamente:

– Assumiu um novo chefe. E o cara é fantástico. Me adorou.

Havia dito, meses antes, frase igual sobre o titular ora substituído, para surpresa, minha e do terceiro amigo, que, de humor ferino, perdeu a paciência:

– Patrão bom para você é sempre o próximo!

O nosso amigo, de coração e timidez, não fazia o tipo bajulador. Ao contrário. Era talentoso. Mas inseguro. Temia – como eu, um angustiado de barco à deriva, a perda do emprego. E enxergava, nos comandantes, virtudes normais que maximizava, para torná-los afetivos e camaradas.

Pelo talento que tinha, não pela bondade gratuita dos sucessivos chefetes, nunca correu risco de ficar no olho da rua. Olho da rua é uma expressão de esfinge. Rua tem esquina, retas, curvas, mas se há olho, está nas suas fofoqueiras de certificado.

Nas desocupadas e feiosas que estabelecem a geografia da falsidade, criando guerrilhas nas casas alheias, usando – elas, as canalhas de calçolas, na mentira dita ao pé do ouvido e, naqueles tempos mais remotos, nos telefonemas com lenço na boca para disfarçar a infâmia.

Então, o meu amigo, meu e do terceiro amigo, esmerava-se em novas ideias, que, de tão criativas, sensibilizavam os burocratas que o chefiavam. Daí, passava, da relação meramente protocolar, à camaradagem com o superior, seguro de sua postura séria e aflita, sempre projetando o próximo regra-três de paletó lascado atrás, como diziam os veteranos do interior.

Eu e o terceiro amigo observávamos, maliciosos, o esforço do primeiro para transformar medo em mérito, temor em êxito, ansiedade em satisfação pelos justos elogios. Era um profissional competente, não precisava da avaliação sempre positiva dos líderes ou nem tanto assim, sujeitos sisudos que vinham transferidos, por exemplo, de Macapá, no Amapá, para ditar regras em Natal.

Até que veio o Campeonato Paulista de 1993 e o responsável pelo setor do primeiro amigo era Corinthians. Corinthians, não. “Curíntia”. Paulistano nato, de um fanatismo puxado ao humorista Mazzarópi. O Corinthians decidiria com o Palmeiras, há 17 anos na espera de um estadual.

Time por time, o Palmeiras era bem superior. Do meio-para a frente, uma máquina: César Sampaio, Mazinho e Edílson; Edmundo, Evair e Zinho. Na lateral-esquerda, Roberto Carlos e seus iêiêiês potentes de canhota. O Palmeiras, controlando os nervos, venceria fácil.

O Corinthians tinha Neto, o camisa 10 gorducho e bom batedor de faltas e escanteios – apenas -, de estrela. Viola de centroavante, Tupãzinho, o goleiro Ronaldo e o inexpressivo atacante Paulo Sérgio, que terminaria tetracampeão mundial no ano seguinte, na reserva de Mazinho.

Paulo Sérgio é um exemplo daquelas imposições sádicas de técnicos que escolhem pernas de pau apenas para chatear a torcida. Rivaldo jogava muito mais e ficou por aqui.

Na primeira partida, o Palmeiras, rebolou e Viola fez o gol da vitória de 1×0, saindo para espezinhar os rivais imitando um porco. Meu primeiro amigo – soubemos eu e o terceiro -, recebeu safanões eufóricos do corintiano, que cantou o título antecipado uma semana inteira.

Até a decisão do domingo seguinte, o clima de caneco na mão tomou conta da repartição. O chefe cantando os subalternos a apostas. Na finalíssima, o Palmeiras massacrou: 4×0 e campeão líquido, certo e justo.

O primeiro amigo consolou o rabugento chefe: “Foi injusto”. Olhos esbugalhados, o derrotado o chamou a um canto: “Porra nenhuma. Tomamos um olé. Não precisa querer me agradar”. O primeiro amigo, em providência imediata, jogou fora a camisa do Corinthians.

VASCAÍNO DE YOUTUBE

por Rubens Lemos


Tenho sido venenoso com o que restou do Clube de Regatas Vasco da Gama. Sou cáustico e não me arrependo. O Vasco, em 20 anos, vem caprichando na maldade comigo, um torcedor que dele fez razão de existir. Desde menino, quando descobrimos amores inoxidáveis, o Vasco é um sentimento de herança, do meu velho pai, morto e poupado dos vexames sucessivos.

É fim de ano – mais um – de Vasco vergonhoso, derrotado, humilhado e cínico. O Vasco de um presidente paquiderme, um técnico ridículo e um time que sequer existe.

Jorge Salgado, o presidente, é um azedume de fracassos compartilhados com um Zé Ricardo absolutamente néscio, responsável pelas perdas que se acumulam levando na Lagoa Rodrigo de Freitas, onde o Remo é imortal, as esperanças cruzmaltinas.

Sou torcedor de Youtube, sou torcedor do passado vitorioso. Descobri um atalho chamado Acervo DVD Vasco e passeio por ele revendo timaços que disputavam pau a pau com o Flamengo, heroicos por serem frequentemente roubados pelas arbitragens e, ainda assim, encarar clássicos memoráveis sem medo, com raça e, a partir do baixinho Geovani no meio-campo, técnica que eles, os rubro-negros, monopolizavam.

O fim de ano amolece corações, mas em relação ao Vasco, evito notícias. Cogita-se um volante do CSA, de onde virá o goleiro. Sou do Vasco de volantes do naipe de Zé Mário, o campeão de 1977, Carlos Alberto Pintinho, Dunga, Zé do Carmo e Luisinho. Goleiros: Mazarópi, Leão, Acácio e Carlos Germano.

Todos clássicos, todos raçudos, todos valendo em cada gota de suor, a catarse de arquibancada do velho Maracanã e de São Januário, hoje muito mais para São Funerário.

Me anestesio em meio à fase interminável, pois é preciso gostar muito para tolerar duas décadas de surras, desclassificações, rebaixamentos, promessas mentirosas de recuperação, os botecos de portugas com um quê de igreja em missa de sétimo dia.

Consigo encontrar o fato positivo. Não suportaria a desgraça de hoje (e ontem e anteontem), se fosse criança. Iria chorar todo dia, apenas para minha avó (torcedora do Fluminense), ver e me consolar, achando uma beleza, por exemplo, o horripilante desempenho de um Zeca, um Ricardo Graça e um MT, nome de cantor de baile funk.

O Vasco de agora, nas antigas, me faria prisioneiro na velha casa hoje fechada em mistérios e saudades. Vazia de gente e afeto. Não sairia na rua. Nem eu nem meus amigos Leco, Otacílio, Flávio Tércio de Jardim do Seridó e Adriano Didica. Éramos felizes vascaínos ainda que do lado de lá, estivesse Zico, serial killer dos dribles impossíveis.

Pois chegamos a ganhar oito vezes em nove partidas contra o Flamengo, de Jorginho, Leandro, Andrade, Zico, Renato Gaúcho e Bebeto. Tínhamos Acácio, Mazinho, Dunga, Geovani, Tita, Mauricinho, Roberto e Romário. Como, pouco antes, tivéramos Zanata, Dirceu, Guina, Roberto, Ramon e Paulinho.

Os que detestam futebol jamais sentirão o amargo da incompetência. O Vasco caiu para a Série B quatro vezes e de lá não consegue sair. Os blogs imbecis de jornalistas malucos inventam contratações todos os dias.

De pernas de pau de times de terceira do futebol paulista, do Bonsucesso, do Olaria, do São Cristóvão e do Goytacaz, sacos de pancada surrados a cada quarta-feira e domingo. Dos anos 1970, 80 e 90.

Decidi me levantar para escrever deixando em modo pause a final do Campeonato Brasileiro de 1989, vencida com um gol de Sorato em cruzamento perfeito do lateral-direito Luiz Carlos Winck.

Daqui a pouco, o São Paulo de Bobô e Raí irá pressionar e Acácio operar milagres em defesas elásticas. Haverá até uma recuada horrorosa do equatoriano Quiñones que, de novo, Acácio vai transformar em salto mortal.

É verdadeira a emoção que sinto ao rever os jogos. Faço até uma tabela. Pelo Natal, verei o Campeonato carioca de 1987, as surras no Flamengo e no pobre Bangu, que apanhou de 3×0 e 4×0, shows de Roberto, Romário e Geovani. Assim, resisto. Se for para escolher, nada verei ao vivo. Entre o masoquismo e o saudosismo, sou vascaíno de Youtube.

PELÉ SEM COMPARAÇÃO

por Rubens Lemos


Começando pelos compatriotas: Friendenreich, Leônidas da Silva, Zizinho, Jair Rosa Pinto, Zico menos por vontade de Zico do que da mídia. Todos comparados a Pelé. Nenhum sequer 30% dono do futebol do Crioulo.

No Brasil, inferior complexidade, Pelé sempre foi cobrado mais pelo que seu corpo humano Edson Arantes fazia do que o extraterrestre maravilhoso produziu. O Brasil tem inveja de Pelé.

Contam os antigões que, Leônidas da Silva, o brilhante propagador da bicicleta, o salto corporal ao infinito para o chute poderoso sem defesa para os goleiros, foi o mais incomodado entre os craques depois da chegada de Pelé.

Pelé mundialmente famoso a partir de 1957, aos 16 anos marcando um gol contra a Argentina em Maracanã diante de 60 mil pessoas no Martacanã, ele um menino atrevido e sem dar a menor peteca às tremedeiras juvenis.

Chegava a entidade capaz de chutar, cabecear, driblar, lançar, bater falta, pênalti, escanteio, ser mau quando preciso, desde que uma bola foi usada sabe-se lá onde. Pelé veio para ser primeiro e incomparável. Ninguém, enquanto existir espécie humana sobre a terra, será, sequer, assemelhado a ele.

Seguiram os invejosos. Na Argentina, Di Stéfano era tão bom ou superior ao neguinho estupendo. Maradona por palavras próprias, era melhor do que Pelé, neurose de milhões de portenhos que jamais admitirão um brasileiro no topo da lista e a anos-luz à frente do segundo colocado, outro brasileiro, Mané Garrincha.

Pelé quatro vezes campeão mundial aos 23 anos, duas pela seleção brasileira, duas pelo Santos. Nenhum dos seus concorrentes forçados chegou perto. Pelé campeão de três das quatro Copas disputadas.

Maradona disputou quatro, ganhou uma, em 1986, esplendoroso. Mas saiu em 1994 pela antessala da eternidade, dopado até a medula apenas no começo da derrocada que lhe tirou a vida. E Maradona foi ilusionista.

Chegando à Europa, ousaram comparar Pelé com o magnífico português Eusébio, destaque na Copa do Mundo de 1966, aquela em que o Brasil convocou 44 jogadores e não conseguiu formar um time.

Eusébio acabou com o Brasil na partida(Portugal 3×1), em que os zagueiros patrícios esfolavam todas as dobradiças do Rei. Do único e irrevogável Rei.

Dois meses depois do Mundial, em um torneio nos Estados Unidos, Pelé pelo Santos e Eusébio pelo Benfica se encontraram. Cara a cara. De testa. E Pelé usou sua filarmônica de jogadas de efeito e gols humilhantes, sem precisar provar nada, apenas mandando os chatos para a PQP. Santos 4×0.

Antes, Pelé havia triturado Eusébio em 1962, em Lisboa, na decisão do Mundial Interclubes, Santos 6×2 Benfica, provavelmente a melhor partida entre clubes da história.

Depois o múltiplo holandês Cruijff na Holanda de 1974. Supercraque. Líder de um carrossel em que ninguém tinha posição. Mas Cruijjff para chegar a Pelé seria preciso um tiro de canhão acertar uma formiga. Pelé aguentando, suportando, ouvindo e rindo.

De todos os pretensos, Maradona foi o mais insistente. Maradona era equivalente a Roberto Rivelino, ele, padroeiro das contradições, dizia e repetia: imitava Rivelino em seu bairro pobre da Villa Fiorito, território da aristocracia boleira de Dieguito. Ele copiava Rivelino porque, a exemplo de todos os milhões de seres humanos, nunca repetiria os toques e traços de Pelé.

Messi, gênio, devidamente integrado aos cobras dos séculos, ganhou, com Justiça, sua sétima Bola de Ouro de melhor jogador do mundo. Messi é melhor do mundo e não haveria necessidade de concurso.

Semana passada, o critiquei pela violência e arrogância contra os brasileiros pelas Eliminatórias da Copa do Mundo, mas sou macaquito(assim os argentinos chamam os brasileiros) de auditório da Pulga e tenho textos suficientes para um livro sobre ele.

Pena que a blogosfera estampa: Messi se iguala a Pelé. Pecado capital. Pelé não entrava na disputa porque seria referendo, mas experts, sabe com base em quais quesitos, o colocaram em primeiro em 1958/59/60/61/63/65 e em 1970, ano em que, sozinho, teria jogado a Copa do Tri.

Messi não chega nem perto de Pelé, o que não lhe ofusca o brilho. Ele nasceu, como todos os outros, em chão terreno. Pelé é da galáxia espiral da Via Láctea. E ponto final.

10 ANOS SEM SÓCRATES

por Rubens Lemos


Sócrates faz parte de minha vida como Quixote da bola. Com Zico e Falcão, forma a trinca de ases dos meus sonhos insones de menino, colorindo o Brasil de imbatível. Só fui comemorar uma Copa do Mundo em 1994, um mês antes de fazer 24 anos.

Na foto, o capricho de ourives dos quatro cantos verdejantes de Sócrates é observado pelo argentino Ardiles na mistura de encantamento e perplexidade. Um baile de 3×1 para o Brasil na melhor exibição do Mundial de 1982.

Ardiles foi um dos melhores armadores da história do futebol, campeão mundial de 1978 quando era o único acima da média no time ajudado pela Fifa para ganhar sob o chicote de uma sanguinária Ditadura.

Sócrates parece empalmar uma pedra preciosa. Usa o pé direito para acariciar a bola em pleno sossego, naturalidade e perfeição , virtudes que ele exibia sem vaidade por onde jogou.

É, ao lado de Roberto Rivelino, o melhor jogador do Corinthians (SP) de todos os tempos, embora a mídia virgem tente impor Marcelinho Carioca e até Neto, o bom de escanteio e cobrança de falta.

Suave gazela em campo, Sócrates irritava os conservadores pois não era o boleiro-padrão. Era médico e vinha de uma família de classe média alta, com pai auditor fiscal federal. Jogava no diletantismo com que Vinicius de Moraes compunha seus poemas musicais.

Estavam em Sócrates a genialidade de Vinicius e a calma irritante de João Gilberto, fosse o Magrão integrante da Bossa Nova. Sócrates dançava conforme o ritmo, impondo sobre o gramado sua coletânea clássica desenvolvida por invisível violino. Passadas largas, estabelecia seu movimento de enganosa lerdeza, levando os outros 21 homens na disputa a caçá-lo em câmera lenta, infrutífera artimanha.

As pernas de palito em carne e osso distribuíam passes certeiros tirados do pensamento de águia de um jamais atleta a mover-se em permanente processo de criação. Lindos acordes acompanhados pelo deleite das arquibancadas.

Sócrates pagou caro por se envolver politicamente sem deixar clara, de verdade, sua ideologia, fruto de uma inquietude conhecida a partir do primeiro pêndulo corporal até a batida de calcanhar direto no companheiro próximo. Se entendeu melhor com Palhinha, técnico, malandro e habilidoso, ambos campeões paulistas de 1979.

Em 1982, com Zico, Falcão, Leandro(um mágico usando a camisa 2), Júnior e Éder, formou um sexteto violado de fintas e desfile de jogadas sinfônicas.

Hoje, faz 10 anos da morte de Sócrates, que nunca deixou seu copo de cerveja tampouco seu cigarro para obedecer a ninguém. O técnico Telê Santana, tido como rabugento, sabia que não poderia abrir mão do seu camisa 8 e deixava-o livre. Para dar o petardo do empate contra a União Soviética(Brasil 2×1) e bater entre o goleiro Zoff e a trave na derrota para a Itália(2×3) no gol do empate em 1×1, criação artesanal de Zico ao enxergar o espaço para servir ao Magrão.

Alguns idiotas protestaram pelo cumprimento de Sócrates ao primeiro italiano que encontrou ao apito final da derrota para a Azzurra. Sócrates compreendia o futebol como jogo limpo, sem a neurose do vida ou morte banalizado. Também reclamaram do pênalti perdido por displicência contra a França, em 1986, repetindo o canto que acertara contra a Polônia nas quartas.

O futebol anda chato e uma das razões é a ausência de Sócrates, polemista irritante para adversários burros e frasista demolidor de conservadores. Liberdade. Há uma década, o Magrão, após o sofrimento do álcool, incompreendido e secundarizado em sua importância, passeia pelos clássicos eternos, onde não há cronômetros nem medíocres a incomodá-lo.