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Rubens Lemos

RESENHISMO, CIÊNCIA

por Rubens Lemos


(Foto: Custodio Coimbra)

Tenho com o Museu da Pelada uma relação lírica. Estava à toa na vida, vendo o futebol passar e a turma de Sérgio Pugliese chegou com resenhas para me salvar. Um copo, uma garrafa, um pente, sai Adoniram Barbosa em samba de repente.

Um ídolo esquecido, o reencontro, uma cerveja gelada e o renascer vem do passado. Resenha é ato de desligar o interruptor do mundo, das propinas televisadas ao vivo, do sangue jorrando em traços bárbaros de audiência. É estar em transe com o papo literal e inconfundível do dialeto da bola.

Do vocabulário onde não caibam milhões, cifrões, contenções, marcações, transições, seleções e humilhações, pranchetas, esquemas, caneladas, assistências e atacantes agudos. Goleadores de cinco redes balançando por ano.


Assisto resenhas em monólogo. A última, em que me chorei (chorei por mim e é meu direito pelo que revi e perdi no futebol), foi a de Roberto Dinamite e Rondinelli num reencontro emocional, sem tradutores, nem procuradores, de dois adversários históricos e amigos com passagens maravilhosas para compartilhar com torcedores contemporâneos.

Quem vai chegando aos 50, aos 49, aguarda nos 48 um sopro de motivação na vida, sai da asfixia medíocre e respira o balão de oxigênio da arte nos personagens eternizados por dribles, gols, lançamentos e multidões em transe.

O Museu da Pelada me salva. Nas conversas sem censura, no linguajar boleiro de morro, de campinho, de rua, de ar puro da beira da praia. É uma ciência. Foi, não foi pênalti, não deu aquela porrada, sacanagem sua. Nosso time era melhor, vocês compraram o juiz (menos o Cabelada).

Viva a ciência memorial do futebol. O resenhismo. Sou resenhista em busca de pós-graduação.

FRANCISCO E O FUTEBOL

por Rubens Lemos


Gosto do Papa Francisco. Aquela simpatia genuína. De supetão.

José Mário Bergoglio escolheu o santo que respeito. São Francisco badala o som da minha infância em sua oração de renúncia. Se despe da vaidade, cilada sorridente, da riqueza e prega o amor ao outro mais que a si mesmo. Por enquanto, só é prática a canção.

Francisco, o Papa, sorri o sorriso fraternal. Papa é pai. Eu não tenho o meu. Quem sabe, esteja aí o gatilho de rompante admiração.

Danem-se polêmicas sobre a postura política do jovem Bergoglio. Ele é fuçado por extremistas. De qualquer tendência, são equilibrados e coerentes como talibãs explodindo crianças. Concentro-me na figura humana. E o Papa é gente. Deus nele parece real.

Gosta de futebol – terá sido por aí? – torce pelo San Lorenzo de Almagro e reconhece craques brasileiros que vestiram a camisa do seu time: Waldemar de Brito (descobridor de Pelé), Petronilo e Silas, o refinado, campeão em 1995.

Além de um brasileiro típico nascido portenho: o loiro Narciso Doval, atacante arrasador do Flamengo e Fluminense nos anos 1970, morto precocemente de overdose aos 45 anos.

O Papa me dá esperança. Suas palavras são bálsamos e mobilizações. Francisco me lembra vovó falando de outro carismático: João 23. Vovó.

É Vovó. Ela tinha o olhar agasalhador, triste, sedutor e terno do Papa Francisco. Sempre Maria. Maria do Carmo da Minha Saudade.

E a ele – só a Francisco de batina – confessaria minhas dores. A maior, Maria

CARLOS ALBERTO SILVA

por Rubens Lemos


Saber vender a própria imagem é artimanha fundamental para sobreviver hoje muito mais.

O competente retraído perde para o picareta. Morreu há dois anos (20/01), um exemplo carimbado do ermitão eficiente. O técnico Carlos Alberto Silva.

Caipirão, avesso à entrevistas, debates e almoços promocionais (o técnico pagando), com jornalistas. Para desdobrar gentilezas nas páginas e estúdios.

Fez do Guarani de Campinas (SP), em 1978, o primeiro clube do interior a vencer o Brasileirão. Derrubou como castelo de cartas, favoritos como Vasco, Internacional e finalmente o Palmeiras.

Revelou joias como o meia-armador Zenon, o meia-atacante Renato (brilhante na técnica, raridade para fazer gols) e um dos melhores atacantes da história: Careca, maior parceiro futebolístico de Maradona, no Napoli, década de 1980.

Na seleção brasileira, sempre esquivo, montou um esquadrão capitaneado pelo armador vascaíno Geovani, o último dos pensadores. Com Romário, Taffarel, Jorginho, Bebeto, João Paulo, André Cruz, ficou com a Medalha de Prata. Sem Geovani (suspenso), na decisão.

Perdeu o lugar para o abominável Sebastião Lazaroni, camelô de beira de campo.

Lazaroni formou, na Copa de 1990 um Brasil muito pior do que o do ameno Carlos Alberto nas Olimpíadas. Melhor meia da época, Geovani recebeu seu desprezo.

Carlos Alberto Silva consagrou a fragilidade dos silenciosos, dos tímidos, dos absolutamente verdadeiros. Perdeu a chance da vida, mantendo intocável o caráter.

AS MÃES DE HIPÓLITO

por Rubens Lemos


Em 1972, o ABC de Natal (RN) foi punido com dois anos de suspensão do Campeonato Brasileiro. Motivo: a escalação irregular do zagueiro Nilson Andrade, do lateral-esquerdo Rildo e do meia Marcílio na vitória sobre o Botafogo (RJ) por 2×1. O ABC acusou a federação que acusou a CBD.

Em 1973, passando uma banha, João Havelange conseguiu excursão alvinegra para a Europa e a África, que rendeu 102 dias longe de casa. Fama no exterior. O ABC chegou a empatar com a Romênia, de Dumitrache, que jogou duro contra o Brasil em 1970, na Copa do Mundo (3×2 para nós).

Pois bem, o ABC foi anistiado no início de 1974. Ficou o impasse. O ABC era tetracampeão e, tinha direito à vaga. O América havia representado o Rio Grande do Norte com brilho em 1973, conquistando a Taça Almir, melhor colocação entre clubes do Norte/Nordeste.

Fizeram um seletivo com três partidas: a primeira foi 0x0. Na segunda, vitória do América por 3×1. Na decisiva, ABC 2×1, jogo para a prorrogação, quando Davi, de cabeça, classificou o América para o Brasileirão/74. Vice outra vez no ano seguinte, ficaria de molho um semestre inteiro. Montou um expressinho. Chamado de Faz-Me-Rir, em alusão a uma melodia de dor de cotovelo dos anos 1960.

O zagueiro Hipólito, o ponta Aélio e um meia português barbudo, Luís Rodrigo, eram os ícones do timeco. Que juntava gente, porque abecedista nunca abandona seu time.

Hipólito, numa segunda-feira, aparece cabisbaixo na concentração em Morro Branco. Chama o supervisor Alberto Amorim:

– Seu Alberto, me arranje um vale. Minha mãe morreu e preciso mandar o dinheiro para Minas Gerais.

Comovido, Alberto Amorim providenciou a grana com a diretoria.

Um mês depois, Alberto Amorim adoece. Fica 15 dias longe do clube. Hipólito aborda o dirigente José Prudêncio Sobrinho, coração maior que o da torcida:

– Seu Pruda, estou em apuros. Minha mãe morreu. Preciso mandar um dinheiro para a Bahia. Me arrume um adiantamento.

Prudêncio tirou do próprio bolso o maço de notas e passou a Hipólito:

– Negão, gostei da sua sinceridade. E nem vai ser descontado o dinheiro.

Hipólito fez um singelo pedido a Pruda:

– Não fala pra ninguém, não. É assunto particular e o senhor sabe como é boleiro, gosta de mexer até em negócio de mãe.

O ABC vai disputar um jogo contra o Ferroviário, timeco do desportista Joãozinho Paiva, eterno secretário de esportes da cidade e conhecedor da psicologia da raça de chuteiras.

Hipólito está triste e o atacante Nilo, esperto, entra em seu quarto na concentração:

– Tô sabendo que você vai dar outro golpe nos “home”. Tu é famoso com essa história de mãe morta. Ela está vivinha da silva e eu vou trazer a velha aqui, para lhe desempregar. Quero o bicho dos próximos três jogos.

Ninguém entendia, só Nilo, a cena de vestiário depois das vitórias sobre três barangas: o Ferroviário, o Cosern e o Racing,do praiano bairro das Rocas. Hipólito, entregando o bicho, nota por nota, o dinheiro dos bichos recebidos logo após as partidas.

Hipólito apenas murmurava para o colega mais esperto:

– Filho da puta, filho da puta…

Nilo respondia:

– Posso até ser. Mas só de uma…

DICÁ

por Rubens Lemos


O futebol virou um desafinado coral de jovens brutos. Mergulho no redemoinho da  infância e relembro Dicá, tão esquecido e melhor do que todos de agora.  Negada exceção. Sim, batia falta tão lindamente  quanto Zico, Zenon do Guarani e Corinthians, Roberto Dinamite e Rivelino. Chutava com a parte interna do pé direito, a bola viajava em parábola e morria no ângulo do goleiro. Dicá raramente errava uma cobrança. Os adversários tinham por ordem expressa dos seus técnicos evitar faltas na entrada da área.

Dicá punha as mãos na cintura, dava dois passos, descia o peitoral e tocava levemente na bola. O passeio aéreo era lento, belo e agonizante. Goleiros grandes tipo  Jairo, do Corinthians, se esticavam inutilmente. Outros, ótimos como Leão do Palmeiras e Raul do Cruzeiro ou o mediano Waldir Peres do São Paulo ficavam plantados, esperando que a bola não chegasse até a trave. Imóveis, resignados, evitando saltos decorativos.

Em torno do talento cerebral de Dicá, girava o time mais charmoso daquela segunda metade dos anos cabeleira, das camisas Volta ao Mundo e das calças boca de sino. A Ponte Preta de Campinas assombrava o Brasil com seu jogo ofensivo comandado por um camisa 10 de inteligência enxadrista de tão serena.

Dicá dava as ordens, apontava os caminhos, fazia os lançamentos, chutava forte quando era preciso, devagar e com sutileza sempre. Luz de plasticidade no meio-campo de raça e disciplina tática, composto pelo volante Wanderley, tarimbado e campeão brasileiro pelo Atlético Mineiro, e o correto Marco Aurélio, que também sabia trocar passes com qualidade nota seis.

A Ponte Preta transformava o seu estádio, o Moisés Lucarelli, num campo de batalha insuperável. Ninguém vencia a Macaca. A Ponte Preta era o Vasco de São Paulo, com seu uniforme preto e branco com listra cruzando a camisa.


Seu ano prateado foi 1977. Uma campanha impecável levava todos os especialistas a apontá-la campeã paulista pela primeira vez, ultrapassando o Trio de Ferro formado por Corinthians, Palmeiras e São Paulo e o decadente Santos de Fernando Narigão, Totonho e Toinzinho, sofrendo os três primeiros anos de viuvez de Pelé.

A Ponte Preta contava com três jogadores da seleção brasileira que seriam convocados para a Copa do Mundo da Argentina no ano seguinte: o goleiro Carlos, e os zagueiros Oscar e Polozzi. Seu ataque tinha a rapidez dos pontas Lúcio Bala e Tuta e a irreverência do polêmico artilheiro Ruy Rei, revelado pelo Flamengo nos tempos de Zico na escolinha.

O destino começava a castigar a Ponte Preta e tirar de Dicá, o direito de usar uma faixa exclusiva de campeão paulista. Na Portuguesa, dividiu com o Santos o título de 1973 por erro na contagem dos pênaltis pelo irrequieto árbitro Armando Marques. Em 1977, o Corinthians parecia ungido pelo carisma transcendental do técnico Oswaldo Brandão e pela força da Fiel torcida esperando há 23 anos por um campeonato.

A Ponte Preta venceu quatro vezes o Corinthians durante os dois turnos. Na pontuação final, foram para a decisão. O Corinthians venceu a primeira e seria campeão na segunda partida, um domingo com 140 mil pessoas superlotando o Morumbi.

O Timão abriu o placar com o ponta Vaguinho  e o estádio celebrou em alegria contida. Botijões de gás usados para encher balões haviam explodido antes da partida e ferido dezenas de torcedores. A comemoração antecipada do Corinthians azedaria: Dicá, de falta, parecia encestar no basquete, empatando a partida. Ruy Rei virou e forçou o jogo extra.


O Corinthians foi campeão com o gol de Basílio, o predestinado. A Ponte Preta tinha melhor time e o camisa 10. Dicá jogava pelo meio-campo inteiro do Corinthians naquela decisão: Ruço, Luciano e o heroico Basílio.

A Ponte Preta nasceu sem a obstinação pela glória. Perdeu de novo em 1979 para o Corinthians e em 1981 para o São Paulo. O título – um que fosse – teria sido  uma maravilha. Numa cobrança de falta. Em reverência ao craque Dicá.