por Rafael Casé
Em tempos de Internet, só não se informa quem não quer, ainda mais se o assunto é futebol.
É possível acompanhar qualquer campeonato do mundo, mesmo aqueles que estão aqui do nosso lado e que, durante muitos anos, foram praticamente invisíveis para a mídia esportiva e para os torcedores em geral. Falo do futebol dos “primos pobres”, aqueles clubes que estão anos-luz de distância da incensada Champions League. Times que disputam divisões de acesso dos estados brasileiros, equipes que tentam se equilibrar na corda bamba do futebol, buscando um mínimo de projeção ou, pelo menos, a sobrevivência.
Estima-se que no País haja cerca de 800 clubes profissionais, 13 mil times amadores e 11 mil atletas federados. Desses onze mil, não seria exagero especular que uns 10 mil vivam a mesma dura realidade: baixíssimos salários, condições extremamente adversas e caminhos incertos. Em comum, também, no entanto, existem os sonhos que bola traz consigo e a efêmera alegria de um gol.
A verdadeira face do futebol que se disputa na enorme maioria do país é essa. Um futebol sem glamour, mas com muita paixão. Paixão que se espalha por modestas arquibancadas, principalmente pelo fato de que muitos desses clubes representam suas cidades. Um confronto mineiro entre o Ypiranga, de Três Pontas e o Rodoviário, de Varginha, por exemplo, pode não ser um Fla-Flu, um Choque-Rei ou um Gre-nal, mas ai daquela equipe que perder… Serão dias, meses e, dependendo do placar, anos de gozações na região.
Descobri, no Facebook, uma página intitulada Primos Pobre RJ FC que mostra fotos e vídeos dos pequenos clubes do estado do Rio de Janeiro. Não resisti, tive que segui-la. Comecei minha carreira como jornalista cobrindo a Segunda Divisão carioca para o Jornal dos Sports. Era um foca, cheio de vontade, a quem o chefe de reportagem Carlos Rodrigues e o chefe de redação, Carlos Macedo, destinaram tão “nobre” tarefa. Eu, estagiário, adorei. Tinha espaço diário para escrever, coisa que em qualquer outro jornal dificilmente teria. Pra vocês terem uma ideia, minha primeira reportagem, uma prévia da disputa, teve ¾ de página.
Passei a ter intimidade com clubes sobre os quais nunca tinha ouvido falar: Rubro (Araruama), Paduano (Santo Antônio de Pádua) ou Tomazinho (São João de Meriti). Havia, também, times que já tinham vivido dias melhores, como Olaria, Madureira e São Cristóvão. Naquele ano, o time de Figueira de Melo buscava a reabilitação com um nome de peso no comando, Américo Faria, que já havia passado, inclusive, pela Seleção Brasileira. O jovem zagueiro Válber, aquele mesmo que atuou pelos quatro grandes do Rio, era o grande destaque da equipe. Nunca vou me esquecer, no entanto, do jogo que simbolizou a minha passagem pela gloriosa segundona carioca. Um disputado confronto entre Miguel Couto (de Nova Iguaçu) e Nova Cidade (de Nilópolis).
Ao sair da redação do jornal, um prédio cor-de-rosa como a capa do jornal, na rua Tenente Possolo, na Lapa, só me vinha à cabeça o samba de Dicró: “Domingo de sol, adivinha aonde nós vamos…”. Só que ao invés de um caminhão para a Praia de Ramos, eu e o fotógrafo Paulo Gomes partimos a bordo do fusquinha (rosa também), em direção à Via Dutra.
Chegar já foi uma aventura em tempos pré-GPS. Sabíamos que tínhamos que sair na altura de Belford Roxo e seguir em direção a Miguel Couto, mas o Estádio Joel Pereira não ficava no centro do bairro. Só depois de pegarmos uma estrada de terra e pedirmos licença para algumas vacas que dificultavam a passagem chegamos ao local do jogo.
Chamar o local de estádio era uma forçação de barra daquelas. O gramado até que era bom, cercado por um alambrado Tinha modestos vestiários e só. Arquibancada, não havia; as dezenas de torcedores do Nova Cidade, que cruzaram a Baixada para assistir ao seu time, em melhor situação na tabela, tiveram que se ajeitar num barranco que ficava atrás de um dos gols. O pessoal da casa ficava no entorno do alambrado, mesmo, com visão mais privilegiada. A imprensa tinha direito a uma laje na qual subi através de uma escada de madeira daquelas que os pintores usam. Não tinha cadeiras, mas era bem espaçosa, ainda mais se levarmos em conta que éramos a única equipe de reportagem no local.
O jogo, não merece muitos registros, até porque terminou 0x0. Foi mais interessante ver famílias inteiras curtindo um programa diferente no domingo ensolarado, crianças muito mais interessadas nos picolés vendidos por um senhorzinho que carregava um grande isopor, ou jovens e suas pipas, travando confrontos bem mais disputados do que o que rolava sobre a grama.
Mas eu tinha ido pra reportar um jogo e precisava ter o que escrever quando voltasse. Não fosse a revolta da torcida local, que passou a disparar morteiros em direção ao campo (um deles chegou a atingir de raspão o goleiro nilopolitano) ou a atuação desastrada do juiz, que deu cartão amarelo por cera para um jogador do Nova Cidade que estava caído após levar um soco na barriga desferido pelo zagueiro adversário, eu teria dificuldades para encher o espaço que me foi destinado na edição do dia seguinte.
Independente da qualidade futebolística do espetáculo, jamais me esqueci desse “El Clássico” da Baixada. Um retrato sem retoques do verdadeiro futebol brasileiro, empobrecido, sem o charme dos grandes estádios e suas enormes torcidas e, na enorme maioria das vezes, esquecido. Mas pelo menos naquela segunda-feira, de um já longínquo julho de 1988, a dor e a alegria dessa gente saiu no jornal.