por André Felipe de Lima
“Eu estava com a razão. Tinha certeza de que com aquele jogo lento e quase exclusivamente defensivo venceríamos o Brasil. Sucede apenas que não contei com as possibilidades de Garrincha. Iniciamos a Copa com uma equipe que deveria ser modificada. Isso só foi feito contra o Brasil. Com aquele mesmo time e apenas uma modificação — Di Stefano em lugar de Adelardo — jamais teríamos sido derrotados”. Estas palavras do genial Ferenc Puskas, referindo-se à vitória da seleção brasileira na Copa de 62 e à derrota de sua Espanha para os brasileiros no mesmo mundial, acolhe uma dose cavalar de despeito. O que era perfeitamente natural. Afinal, Puskas é considerado um dos maiores e melhores jogadores de futebol em todas as épocas, mas o destino negou-lhe o prazer de erguer a taça Jules Rimet uma única vez sequer.
Mas o que ele fez com a canhota no Honved, clube onde despontou na sua terra natal (a Hungria), e depois no Real Madrid, em um dos times mais extraordinários da história, definitivamente não tem parâmetro. Foi, contudo, a partir da seleção da Hungria que o mundo conheceu a magia do futebol de Puskas, e foi com aquele esquadrão que o próprio Puskas conheceu o sonho e o pesadelo ao mesmo tempo.
Na Copa do Mundo de 1954, o gênio da bola e sua poderosa Hungria, que também contava com craques do porte de Czibor e Kosics, tombaram diante da Alemanha de Fritz Walter na final pelo placar de 3 a 2. Perderam para os alemães que semanas antes haviam sido humilhados pelos mesmos húngaros pela acachapante goleada de 8 a 3. O mundo jamais compreendeu aquela derrota da Hungria que, para muitos, até mesmo mais que o Maracanazo de 50 e o fracasso do Carrossel Holandês em 74, constitui-se na maior injustiça da história das Copas. Daí a compreensão que devemos ao Puskas pelo despeito com a vitoriosa seleção brasileira em 62.
As marcas de 54 nunca o deixaram em paz. No fundo, mas bem no fundo de sua alma nunca se resignou após o apito final do juiz inglês Ling. A imagem daquele momento, que deveria ter sido um sonho, traduziu-se em pesadelo. As pessoas que lotaram a arquibancada do estádio Wankdorf, em Berna, recusavam-se a acreditar no que acabaram de assistir. A Hungria, que havia sido campeã olímpica dois anos antes, estava destroçada. Quanto à Alemanha, que buscava um motivo de orgulho para a sua nação após a tragédia do regime nazista e a Segunda Guerra mundial, resgatara sua autoestima. O genial Puskas somente chorava lágrimas contidas.
Se no futebol o país de Puskas viveu aquela tragédia, na política não seria diferente. Dois anos após a derrota em Berna, os húngaros se defrontaram com a acidez do regime soviético que impregnou a política do país anos após a Segunda Guerra. Movimentos sociais tentavam manter a Hungria no rumo democrático, mas os rebeldes foram sufocados. Entre eles o militar Puskas. Sim, Puskas era major do exército húngaro quando a revolta social contra os soviéticos eclodiu em outubro de 1956 e logo foi sufocada no mês seguinte. Porém o craque não estava no país. Ele viajara com o Honved para Bilbao, onde disputaria, em 22 de novembro de 1956, contra o Athletic local, um jogo pela segunda edição (1956/57) da Copa dos Campeões da UEFA, a Champions League como hoje a conhecemos.
Temendo o retorno ao país dominado pelos soviéticos, Puskas liderou os companheiros do time para que não retornassem à Hungria para o jogo de volta contra os espanhóis. Todos toparam e o Honved encarou o Athletic Bilbao em Bruxelas. A tensão era grande e os desconcentrados húngaros acabaram eliminados da competição.
Longe da Hungria, os craques do Honved realizaram amistosos pelo mundo (inclusive no Brasil) para manter o mínimo de renda possível. A Fifa foi uma grande barreira para aqueles jogadores. A entidade máxima do futebol proibia todos eles de jogarem até que regularizassem a situação com a Federação Húngara de Futebol. Essa ladainha durou mais de um ano até que oito dos craques do Honved decidiram regressar ao país enquanto o restante, incluindo Puskas, Kosics e Czibor, optaram por outros rumos.
Puskas morou um tempo na Áustria, mas não conseguiu jogar bola por lá. Tentou radicar-se na Itália, em 1958, acompanhado da esposa Elisabeth (1934-2015, que o craque conheceu quando ela jogava handebol pelo Kipset) e da filha Anikó (1952-2011). Juventus, Internazionale, Milan e Napoli o disputaram a tapa. Mas o Real Madrid correu por fora e atropelou os clubes italianos na reta final do páreo. Os companheiros Kosics e Cizbor partiram, entretanto, para o arquirrival Barcelona.
O Honved, onde Puskas começara a carreira nos infantis (quando o clube ainda se chamava Kipest), estava definitivamente no passado do gênio da canhota, que assinalou pelo clube 379 gols em 366 jogos, uma média espetacular de praticamente um gol por partida. Muitos húngaros ficaram magoados com ele. Obviamente induzidos por uma propaganda do governo soviético que o pintava como “desertor” e até mesmo “contrabandista”. Isso magoou muito craque.
Mas a vida na Espanha o ajudaria a superar a desilusão com a terra natal. Surpreendera-se com o convite do Real Madrid, e foi sincero com o mítico presidente do clube, Santiago Bernabéu, ao dizer que, além dos 31 anos de idade, estava bem acima do peso. “Estou gordo!”. Mas o cartola deu de ombros para os quase 20 quilos a mais de Puskas.
O risco da contratação foi compensado com 242 gols e 262 jogos. Sobre aquele Real monumental, Puskas disse certa vez ao britânico The Times: “O Real Madrid caminha pela Europa como os Vikings costumavam caminhar, destruindo tudo em seu caminho.”
Vestindo o manto “blanco”, ele formou uma dupla extraordinária de ataque com Di Stéfano e foi campeão três vezes do campeonato europeu de clubes campeões (a atual Champions League); uma vez do Mundial Interclubes (a antiga Copa Intercontinental) e cinco vezes do campeonato espanhol. Em quatro temporadas, Puskas foi o goleador máximo do campeonato nacional da Espanha, país que defendeu em quatro jogos.
Ferenc Puskas nasceu em Budapeste, no dia 2 de abril de 1927. Há, contudo, registros que apontam o dia 1 de abril. Sua família era bastante humilde e seu pai, que o treinava no antigo Kispest, foi seu principal incentivador para que seguisse a carreira de jogador. As primeiras bolas que chutara na vida eram feitas de papel de jornal e trapos. Seu brilho no Kispset era intenso. Com 16 anos já estava no time principal. O clube mudou de nome. Passou a se chamar Honved, e com a nova chancela conquistou cinco campeonatos húngaros. O craque do time, obviamente, era Puskas.
Se pudesse, jamais deixaria o Honved, seu clube de coração. O destino lhe pregou essa peça. Mas nunca se arrependeu de deixar a Hungria tomada pelos soviéticos. Não concordava com a opressão a que seu povo foi submetido.
O genial Puskas morreu em Budapeste, no dia 17 de novembro de 2006, depois de quase dois meses internado para tratar uma pneumonia. Sofria também do Mal de Alzheimer.
Seu nome é inesquecível. Seu futebol? Esse, ainda mais. Desde 2009, a Fifa (que o perseguiu na década de 1950) concede o Prêmio Ferenc Puskas ao autor do gol mais bonito do ano. Mas a reverência maior fica por conta de nós, torcedores do bom futebol e de sua linda história. Puskas é imortal.