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Pedro Barcelos

ALTA RESISTÊNCIA

texto: Pedro Barcelos | fotos: Alex Ribeiro


Aviso importante para as areias cariocas: a altinha virou Patrimônio Cultural Imaterial da cidade do Rio de Janeiro na última semana. Apesar de toda a frescura alheia e de sua quase proibição (só podendo ser praticada legalmente a partir das 17h na beira da água), este esporte se mantém vivo e mais valorizado do que nunca.

Se nossos futebolistas ainda frequentassem as praias cariocas, nosso jogo continuaria atrativo para o expectador. Penso que se o domínio com elegância ainda fosse uma marca do nosso futebol, o Brasil permaneceria como o melhor do mundo. Se Heleno, Romário, Júnior e tantos outros não treinassem num terreno desnivelado e arenoso, sem dúvidas teriam mais dificuldade para jogar no gramado do Maracanã. 

Com todo o respeito aos jogadores do hemisfério norte, mas não se entra nas praias cariocas vestindo botinas. Nosso futebol se formou descalço e conquistou o mundo muito antes de se pensar que amortecedores nos calcanhares elogiariam nossos joelhos. Isso é besteira! O que acalma nossos joelhos é a areia, a estabilidade inconstante de posicionar os pés nela para um melhor controle da redonda. A imprevisibilidade do vento, a água do mar chegando justamente naquele momento de plasticidade e o grito dos ambulantes numa tentativa ingênua de desconcentrar nossos praticantes. A altinha se joga em roda e todos se ajudam. 


Por falar nisso, talvez as expressões culturais de matrizes africanas também estejam presentes aqui. A cultura de roda: roda de samba, roda de capoeira, roda de jongo, roda de altinha… A altinha é jogada por apenas um time e todos se esforçam pelo coletivo. Não é uma competição, está mais para uma dança praticada com uma esfera conectando seus artistas. 

E no nosso mundo, como tudo que não é competitivo, como tudo que só funciona através da cooperação total de seus participantes, a altinha sofreu diversas tentativas de proibição. Fracassaram! A altinha continua resistindo aos grã-finos e seus sapatos amortecidos. 

Viva a altinha carioca e o futebol genuinamente brasileiro!

SILVA E O SEU TALENTO NATO

por Pedro Barcelos


Foto: Alex Ribeiro

Semana passada, durante o futebol dos fumantes, na Barão do Bom Retiro, Grajaú, um daqueles momentos cruciais na vida de uma partida aconteceu. O jogo, péssimo como de costume, não valia nada. O coroa do xadrez na mesa de concreto nem ameaçou espiar os jovens atletas, visto tamanha desenvoltura com a redonda. Mas não foi sempre assim, os velhos já foram felizes. Antes, o risco de uma bolada atrapalhar seu sossego era nulo.

Fato é que no meio da batalha, Marquinhos, de colete azul, dispara: “o Silva tem um talento nato”, e, para mim, aquilo foi uma porrada. Sim, às vezes, diante de tamanho absurdo, o tempo para. São os três segundos após o soco acertar o estômago. E fiquei refletindo: “talento nato”… o que significava aquela profecia? 

Uma concepção sartriana do futebol? Ou apenas uma redução existencial e gratuita da vida do atleta? Uma visão de que sua capacidade esportiva estivesse umbilicalmente ligada ao sofrimento de parto da senhora Silva, sua estimada mãe, me assombrou. Alguém gritar “impedimento” no meio daquela partida teria sido menos acachapante para todos os presentes.

Tal frase, proliferada diariamente nos veículos midiáticos que tentam falar sobre futebol, não causa tanto impacto. Falar isto para Garrincha, Zidane e Messi não gera surpresa; eles, de fato, têm algo de sobrenatural. Mas vale lembrar que Marquinhos, parente longínquo de Nostradamus, proliferou tal sacrilégio ao Silva, jogador da pior espécie que torcemos todos os dias para que a seleção natural impeça seus descendentes de seguirem a mesma carreira…

Posto isto, minha inquietação não acabou. Parado, no meio da quadra, pensava sobre as possibilidades irreais de tal acontecimento cósmico ser possível. Qual a ligação entre os talentos natos e o dito “futebol de índio”?  Suas virtudes futebolísticas vinham do mesmo acontecimento cósmico? Silva, sem dúvida, não apresenta um futebol europeu de primeira grandeza, mas sua vida estar atrelada às suas capacidades em quadra seria um dano para toda a sociedade…

Perdido nos pensamentos, vi Silva receber a bola pela esquerda. O marcador, que ainda carregava aceso seu cigarro, não conseguiu acertar o bote e Silva saiu na cara do gol. O goleiro, com aquela certeza própria dos ignorantes, não pensou duas vezes: saiu para quebrar a perna do pobre atacante. A falta de coordenação motora do Silva é tanta que o torna um jogador imprevisível. 

Quando todos tinham como certo que assistiríamos a primeira aposentadoria do futebol dos fumantes, com direito a indenização médica, Silva chuta, marca e ainda foge da tentativa de homicídio do goleiro. Ainda no centro da quadra, afirmei para mim mesmo: “é, o Silva tem um talento nato”.

Saí da quadra, comprei uma cerveja, acendi meu cigarro e parei para admirar o término da partida. Coletes azuis 5, coletes verdes 3.