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Paulo Roberto Melo

GERAL

por Paulo Roberto Melo


A primeira vez em que fui ao novo Maracanã, foi no dia 24 de outubro de 2013 – novo Maracanã, novo normal, acho que eu é que estou ficando velho. O estádio havia ficado pronto para a Copa do Mundo de 2014, de triste lembrança para todos nós, e, os jogos estavam servindo de teste para o evento. Vasco x Goiás se enfrentavam naquela noite no jogo de volta pelas quartas de final da Copa do Brasil. O Vasco havia perdido o jogo de ida no Serra Dourada, por 2×1, portanto precisava ganhar por uma diferença de dois gols.

Meu irmão, Carlos Eduardo e eu, chegamos e nos colocamos nas arquibancadas superiores, e só esse nome já dá uma pista do que aconteceu com o bom e velho Maracanã. Tudo era muito diferente. Um estádio bonito, confortável, padrão FIFA, com o mesmo nome, estádio Mário Filho, mas não, não era mais o nosso Maracanã! 


Não tinha mais a dimensão gigantesca do antigo templo sagrado do futebol, onde, num silêncio mortal, o grande Barbosa buscou aquela bola no fundo da rede na Copa de 1950; onde o Ademir Queixada dava aquelas suas arrancadas que enloqueciam o meu pai; onde o Garrincha corria e driblava e parava e corria e driblava de novo e cruzava e fazia gols que o levaram a ser eleito pela torcida como melhor do que Pelé; onde o Pelé fez fila, driblando meio time do Fluminense e cunhou a expressão gol de placa; onde, no mesmo ano, carimbou o passaporte para a Copa de 1970, com uma bomba, aproveitando uma rebatida do goleiro do Paraguai, fazendo estremecer as arquibancadas apinhadas de gente e ainda fez o milésimo gol, contra o Vasco, numa data que antes era conhecida como Dia da Bandeira (19 de novembro), mas acabou virando Dia do Milésimo Gol do Rei Pelé; onde o PC Caju fez embaixadinha na frente do Moisés e foi premiado com um pontapé, que zagueiro que se preza não recebe Belfort Duarte; onde o Gérson calibrou a canhotinha para depois encantar o mundo no México; onde o Rivelino inventou o elástico; onde o rei Zico nasceu, cresceu e se imortalizou, batendo faltas como se jogasse a bola com as mãos, deslocando os goleiros nas cobranças de pênalti e invadindo a área adversária com a bola dominada para fazer gols lindos e alguns… dolorosos; onde o Roberto Dinamite deu aquele chapéu no zagueiro Osmar e fuzilou o Wendel com um tiro de voleio; onde o Maradona, na Copa América de 1989, quase fez do meio de campo aquele gol que o Pelé não fez, mas a bola, prudente, se lembrou da placa, da rivalidade e de tudo mais e preferiu quicar no travessão e ir para fora; onde também nasceram para o futebol o Romário, o Bebeto, o Edmundo, o Felipe e o Pedrinho; onde tantas vezes eu, meu pai e meus irmãos rimos e choramos as alegrias e as dores de tantas vitórias e derrotas. Não, não era mais o Maracanã.

Sei que muitos vão ler estas linhas e me achar um saudosista chato e certamente vão dizer que – “o estádio precisava se modernizar.”; “os tempos são outros.”; “está tudo mais limpo e mais seguro.” Sou obrigado a concordar. Afinal, confesso que uma impressão que eu tinha quando ia aos jogos no antigo Maracanã, era que o estádio nunca tinha ficado pronto de verdade, tantos eram os entulhos pelos corredores internos, as colunas com ferragens à mostra, sem falar dos banheiros, queinvariavelmente estavam alagados, não extamente de água.

É verdade. Tudo isso fazia parte do antigo Maracanã. Mesmo assim, antes de começar aquele jogo, no novo Maracanã, eu e meu irmão sentíamos uma saudade imensa pulsando dentro do nosso peito. Parecia que faltava alguma coisa, e não era o cimento incômodo dos degraus que antes sujavam os fundilhos das calças, nem o torcedor mais humilde, impedido de frequentar o novo estádio por causa dos novos preços e nem o vendedor de amendoim torrado. Nós olhamos em volta com atenção, como se estivéssemos conferindo um jogo de sete erros. Não demorou para que chegássemos à resposta. Aquele estádio novo não tinha a geral!

Mandatária suprema dos que ganham dinheiro com jogos de futebol, Dona Fifa não queria mais que seus súditos cariocas assistissem aos jogos em pé. Ela queria todo mundo sentado em lugares marcados, com todo o conforto que um bom punhado a mais de reais certamente podia comprar. Talvez ela quisesse também, que, assim como europeus, nós, selvagens pela própria natureza, comemorássemos os gols apenas com aplausos, mas acho que isso ela nunca vai conseguir.

 Dona Fifa nos impôs um estádio novo, e alguns governantes ávidos por obras e comissões rapidamente disseram que sim. Mas a minha memória de torcedor, por enquanto, ainda é livre. É uma memória afetiva que envolve sentimentos, aromas, pessoas e acontecimentos. Hoje, quero falar da saudade que eu sinto da geral do Maracanã.

 Saudade da entrada

O corredor que dava acesso à geral, era escuro, iluminado apenas por lâmpadas fracas que pendiam do teto, que era bem alto. Confesso que percorrer esse trajeto nunca foi muito agradável. Uma das paredes do corredor tinha tijolos vazados, e, por eles, víamos uma outra parte das entranhas do estádio, onde havia carros estacionados no meio do nada. Um ambiente bem sombrio. Uma vez eu estava chegando à geral por esse caminho com meu pai e meus irmãos quando surgiu alguém e se agarrou ao meu pescoço. Meu irmão José Gulherme partiu logo para encaçapar o agressor, mas, antes que ele desferisse o primeiro sopapo eu descobri que o ataque era uma brincadeira sem graça de um colega de escola.

Ao chegar à geral, a imensidão do estádio que se apresentava diante dos olhos, proporcionava uma sensação fantástica. Estar em um nível abaixo da arquibancada, ouvindo o barulho das torcidas, a música tocada pelas charangas e vendo a nossa volta, acima de nossas cabeças, o colorido das bandeiras e faixas, depois de ter deixado para trás aquele corredor sombrio, sempre mexia comigo.


 Saudade dos aromas

Na geral e, só na geral, conseguíamos sentir o aroma fresco do gramado. Era um aroma que me levava à infância, quando descia rolando a ladeira de grama da Quinta da Boa Vista. Ali, na geral do Maracanã, experimentávamos uma ilha de natureza, cercada de concreto por todos os lados.

Havia outros aromas. Mais de uma vez, fui alvejado por saquinhos ou respingos de um certo líquido cuja a cor e a origem eram pra lá de duvidosas. A tarefa de cheirar a roupa ou a parte do corpo atingida, para tentar identificar a procedência do líquido às vezes confirmava terríveis suspeitas. Algumas vezes, senti alívio ao constatar que era apenas água, outras, o melhor era ter a certeza de um bom banho assim que chegasse em casa.

Não posso deixar de falar do aroma delicioso do cachorro quente da Geneal, que invadia minhas narinasassim que o vendedor abria a caixa. Havia o aroma dos leitinhos da CCPL, vendidos em uma embalagem triangular, com vários sabores: chocolate, caramelo, morango. E havia também o cheiro inconfundível de cerveja que pairava no ar, vindo dos copos de papelão, dos hálitos e das roupas das pessoas que estavam em volta. Sim, porque muitas vezes o líquido amarelo e espumante que vinha do céu era apenas… Brahma na jogada.

Pode parecer piegas dizer isso, mas a geral do Maracanã tinha aroma de povo. Nada a ver com o que disse, há muito tempo, um ex-presidente da República em relação a odores humanos e equinos. Era um cheiro de gente, de igualdade social, de transpiração, desodorante barato e sabonete; cheiro de corpos, de pessoas jovens, adultas e idosas, movidas pela paixão pela bola, convivendo a céu aberto em um mesmo espaço e isso só acontecia porque o ingresso era barato, menos da metade do da arquibancada.

 Saudade do contato


Aqui, a saudade se me apresenta de duas formas:

A primeira, no contato com o povo. Em tempos de poucos jogos televisionados, o acesso ao Maracanã era bem mais fácil. Desse modo, os torcedores folclóricos, muitas vezes fantasiados, faziam da geral o seu palco.

Tinha o torcedor do Flamengo que dava instruções, orientando a defesa do seu time, grudado na grade, próxima ao campo. Tinha o torcedor que também era vendedor de amendoim e que, com um fôlego absurdo, dava sequências de assobios tão fortes, durante o jogo todo, que se podia escutar sua série de apitos mesmo que ele estivesse do outro lado da geral e, às vezes, até nas transmissões pela TV. Torcedores dos dois times que estavam em campo, assistiam ao jogo juntos, muitas vezes lado a lado um suportando a alegria do outro. Essa convivência, lógico, nem sempre era tão romântica epacífica. Também era comum quando alguns clarões se abriam no meio da massa, como indício de que estava acontecendo aquilo que cantaram Aldir Blanc e João Bosco: um pega na geral.

A segunda forma de saudade diz respeito, como dizia Jorge Cury, aos “artistas do espetáculo”. Na geral, a proximidade com o campo era tanta, que era como se o geraldino estivesse na beira do gramado. Assim, eu pude testemunhar alguns fatos bem bacanas.

Uma vez, um amigo tricolor, em um jogo do Fluminense, gritou quando o ponta esquerda Tato ia bater um escanteio: “Tato, bota na cabeça do Washington!” O ponta virou para a geral e fez um sinal de positivo com o polegar. O escanteio foi cobrado na cabeça do Washington e… gol!

Teve o dia em que o meu velho pai se esqueceu da discrição que o caracterizava e saiu do sério com o polêmico árbitro José Roberto Wright, Depois de um primeiro tempo com muitas marcações duvidosas contra o Vasco, o juizão vinha saindo do campo e começava a descer as escadas do túnel do vestiário dos árbitros. A gritaria e os xingamentos na sua direção eram a prova clara de que a sua habitual necessidade de querer aparecer mais do que os jogadores tinha sido cumprida. No primeiro degrau, atraído pelos apupos que vinham da geral, o árbitro, todo orgulhoso, olhou para o povo enfurecido. Meu pai e eu estávamos bem em frente ao túnel. Dessa vez o seu Zé não se controlou, esqueceu os bons modos e gritou a plenos pulmões na cara do homem de preto: “Filho da p*#*!” Até o fim de sua vida, meu pai dizia com imensa satisfação que o Wright tinha visto ele o xingar.

Aliás, nada mais gostoso do que, ao final de uma partida, ficar em frente ao túnel que dava acesso aos vestiários dos jogadores, para aplaudir os heróis e xingar os vilões do jogo. Os aplausos eram retribuídos com acenos agradecidos e os xingamentos eram a trilha sonora fúnebre da saída de alguns jogadores.

 Claro, era maravilhoso também quando os jogadores vinham comemorar os seus gols perto dos torcedores da geral. O Luisinho Tombo gostava de subir no murinho, ainda quando jogava pelo América e depois no Flamengo, acompanhado do Zico e do Doval. Todos os artilheiros sempre corriam em direção à torcida, ao marcarem seus gols. Parecia que recarregavam suas forças com a energia que vinha dos geraldinos.

 Saudade da liberdade

Na geral, por estar de pé, o torcedor tinha mais liberdade. Quando alguma bola vinha do campo, alguns até arriscavam umas embaixadinhas, mas tinha que ser rápido, pois a PM chegava logo.

Muitos geraldinos gostavam de ficar no trecho embaixo das cabines de rádio, bem no meio do campo. A localização era triplamente estratégica: permitia uma visão mais ampla do gramado; protegia dos arremessos de saquinhos contendo líquidos suspeitos, e, permitia e ver os craques da informação nas cabines de rádio: Jorge Cury, Waldir Amaral, José Carlos Araújo, Washington Rodrigues, João Saldanha, Luiz Mendes, Sérgio Noronha, Gérson e outros.

Uma outra parte de torcedores, preferia acompanhar o ataque do seu time. Era muito bom também, em cobranças de pênaltis, correr para se colocar atrás das balizas e ver abola entrando. Numa época, o Roberto Dinamite cobrava faltas com uma precisão tão grande, que a torcida fazia a mesma coisa, corria para trás do gol, como se fosse um pênalti. Ah, que saudade do Dinamite. Que saudade de ver da geral um gol do Dinamite..

Saudade… Palavra estranha essa, que, dizem, só existe na língua portuguesa. Sentimento arrebatador, ora de alegria, ora de tristeza.

Sentados em nossos lugares marcados da arquibancada superior, meu irmão e eu olhávamos o novo Maracanã, tentando resgatar o antigo. O velho campo só está vivo agora nas lembranças, de jogos memoráveis vistos da arquibancada ou da geral. Sensações, aromas, vitórias, derrotas, pessoas amadas que se foram, gente desconhecida que já conhecíamos tão bem, povão, família, radialistas, craques…

A propósito, naquela noite o Vasco ganhou do Goiás por 3×2, e acabou eliminado da Copa do Brasil

ME DÁ UM AUTÓGRAFO?

por Paulo Roberto Melo


Minha esposa conta, que quando ela era menina, umas primas do Paraná, sabendo que ela morava no Rio, perguntaram se ela encontrava os artistas da Rede Globo, passeando pela rua. E minha esposa teve que explicar que, apesar de ser moradora da Zona Sul, o Rio de Janeiro era muito grande e os artistas não frequentavam os lugares de forma tão exposta (naquela época) a ponto de serem encontrados facilmente, e essa explicação certamente causou uma certa decepção.

Pois bem, em 1978, com meus doze anos, eu também nunca havia encontrado alguém famoso. Aliás, na verdade, houve uma vez, sim. Foi antes de 78, eu ainda era bemcriança, e estava com meu pai, indo para a praia, no ônibus da linha 413 – Muda/Copacabana, quando vimos o Jorge Ben (que mais tarde viraria Jorge Benjor). Meu pai o reconheceu e disse no meu ouvido: “Olha, aquele cantor da música do Flamengo!” (“Sou Flamengo e tenho uma nega chamada Teresa…”) Alheio a paixão clubística do Benjor, eu o olhava de forma estranha, pensando em como era possível alguém famoso andar de ônibus. Mas, enfim, eram outros tempos…

Voltando a 1978, confesso que o meu desejo não era encontrar artistas de novela. Os que povoavam o meu imaginário eram os artistas da bola, os jogadores! O Rio de Janeiro, onde morava e moro até hoje, era um celeiro de craques, espalhados nos quatro grandes clubes (nessa época, o América já começava a bambear). O Fluminense tinha Wendell, Edinho, Mário, Pintinho, Nunes e Fumanchu. No Botafogo jogavam Rodrigues Neto, Osmar, PC Caju, Mário Sérgio, Mendonça, Gil, Dé e Manfrini. O Flamengo começava a montar o elenco mais vencedor de sua história, com Raul, Rondinelli, Júnior, Andrade, Zico e Tita.

Já o Vasco, manteve a base do time campeão carioca do ano anterior e, contratou reforços. Como bom vascaíno, eu recitava essa escalação como um poema bem decoradopara agradar uma namorada (vascaína): Leão, Orlando, Abel, Geraldo e Marco Antônio; Zé Mário, Zanata e Dirceu; Wilsinho, Roberto e Paulinho. Com tantas estrelas desfilando pelos castigados gramados cariocas de antigamente (imaginem o que esses jogadores fariam, nos bons gramados de hoje em dia…), a idolatria de um menino de 12 anos, gordinho e de óculos, atingia níveis estratosféricos.

Convém lembrar, que ter 12 anos em 1978 não era algo tão simples. É claro que alguns vão dizer que a infância na década de 70 era uma coisa maravilhosa, bola de gude, bola de meia, e que com menos tecnologia, as brincadeiras eram muito mais divertidas e tal. Mas para mim, que morava em um edifício de uma rua movimentada na Tijuca, com irmãos bem mais velhos e pais trabalhando em horário integral, os dias eram de um vazio imenso.

Dessa forma, o que preenchia as minhas horas era mesmo o futebol. Não me queixo. Foi um tempo bom. Os craques jogavam aqui no país, a rivalidade era sadia. Um dos gritos de guerra dos estádios era (pasmem!): Ô, ô, ô, ô, ô! Roberto é craque, o Zico é um cocô!

Eu procurava ler tudo e assistir a tudo que dizia respeito a esportes em geral e ao futebol em particular. Como nessa época eram raros os jogos transmtidos pela TV, eu esperava para ver os gols do Fantástico e depois mudava de canal para assistir a alguma mesa redonda. Na TV Bandeirantes, havia o programa Bola na Mesa, com craques do jornalismo esportivo debatendo a rodada do fim de semana do campeonato carioca: Sandro Moreyra, João Saldanha, Luiz Lobo, Márcio Guedes e, comandando os debates, Paulo Stein. Quando terminava o programa, começava o videoteipe do jogo daquela tarde no Maracanã, muitas vezes narrado muitas vezes, por…Galvão Bueno. Havia mesa redonda também na TVE, com Luiz Orlando, Luiz Mendes, Sérgio Noronha, José Inácio Werneck e Achiles Chirol. O videoteipe nessa emissora tinha narração do José Cunha (“Limpa, tá lááááá!!!”) e algumas vezes, do Januário de Oliveira (“Eeeeeee o gol!”; Cruel, cruel, muito cruel”).

As matérias de todos os clubes que saíam no jornal O Globo eram lidas por mim, diariamente. Às segundas-feiras, a capa cor de rosa do Jornal dos Sports sempre vinha, com uma manchete pitoresca e bem humorada sobre o resultado do clássico do domingo. E como não podia deixar de ser, aguardava ansioso pela terça-feira, dia que saía a Revista Placar, que, lá em casa, começou a ser colecionada pelo meu irmão Carlos Eduardo desde o seu início nos anos 70, e continuada por mim, até meados dos 80. 

Aqui vai um breve parêntese dedicado um à revista Placar. Assim como eu e meus irmãos, ela formou a cultura futebolística de várias gerações. Suas matérias tratavam não apenas dos jogos dos campeonatos mas também contavam a vida pessoal dos jogadores, com uma abordagem humana, focalizando seus sentimentos, sucessos e fracassos. Foi a leitura das páginas da Placar que, construíram em todos os que a liam a certeza de que há algo mais profundo no futebol. Muitas das minhas ideias sobre os esportes foram moldadas pelas palavras de Juca Kfouri, Carlos Maranhão, Marcelo Rezende, Lemyr Martins (que cobria a Fórmula 1 de forma magistral!),entre tantos outros mestres da reportagem.

Nos intervalos disso tudo, claro, eu ia ao colégio, estudar e… discutir futebol com os colegas. Ao menos para mim, em 1978, assim, caminhava a humanidade…

Foi justamente com dois desses colegas, um flamenguista e outro tricolor, que eu caminhava pelos corredores de uma Galeria Comercial na Tijuca, quando um acontecimento mágico marcou minha vida de esportista. Alheio às bobagens que um dos colegas falava, meus olhos avistaram um jogador de futebol. Ele não estava em páginas de jornais ou revistas, nem nas mesas redondas dos programas de futebol da TV. Ele estava ali, em carne e osso! Não era o Roberto Dinamite, nem o Zico, nem o Edinho, nem o o Mendonça. Era o grande Zé Mário, volante do Vasco naquele ano e campeão carioca em 1977! 

Interrompendo a fala do meu colega, eu disse trêmulo de emoção: “Olha, o Zé Mário!” Apesar de ter jogado no Flamengo e no Fluminense, antes de vestir a camisa do Vasco, meus dois colegas demonstraram toda a sua vasta ignorância ao não reconhecerem o Zé Mário, ali, perto da gente, ao vivo e a cores. Deixei de lado o riso abobalhadodos dois, um respondendo ao outro sobre não sei o que que havia acontecido atrás do armário, e, caminhei em direção ao jogador, como que hipnotizado, e me coloquei na sua frente, barrando a caminhada que ele fazia junto com a sua esposa. Eu não sabia o que fazer, nem o que falar, mas estava ali, diante de um jogador de futebol em carne e osso, sem a distância que separa a arquibancada do campo. A esposa dele se afastou discretamente e foi ver uma vitrine, deixando o Zé Mário sozinho na minha frente. Ele sorriu, entendendo o peso da minha timidez:

-Oi! Tudo bem?

 Se fosse hoje, eu sacaria um celular e faria uma selfie, postando-a em todas as redes sociais logo em seguida, porque, apesar da pouca idade, certamente eu já frequentaria as mídias, afinal essa é uma das melhores brincadeiras do nosso tempo. Mas em 1978, com doze anos, eu pedi apenas:

– Me dá um autógrafo?

Era só isso que eu queria. A assinatura dele em um pedaço de papel. Só isso bastava para eternizar aquele momento. Entreguei a ele uma folha de papel, rasgada de um caderno.

– Como é o seu nome?

– Paulo Roberto. – eu respondi.


Ele pediu a minha mochila e apoiando o papel nela, escreveu algo mais do que simplesmente o seu nome. Enquanto escrevia, perguntou:

– O que você quer ser quando crescer?

Eu não precisava pensar muito para responder uma pergunta dessas:

– Jogador de futebol.

O Zé Mário olhou aquele garoto gordinho, de óculos de lentes grossas e dando mais um sorriso, disse:

– Legal! Não se esqueça nunca de que pra ter sucesso é preciso treinar muito.

Ele estendeu o papel de volta para mim, fez um carinho na minha cabeça, na época ainda com fartos cabelos ondulados que nenhuma pista davam de que cedo me abandonariam, e continuou o seu passeio. Depois de acompanhar seus passos, olhei para o papel e nele estava escrito: “Ao Paulo Roberto, com carinho do amigo Zé Mário.”

Não me tornei jogador de futebol. A vida me levou para as salas de aula e para as palestras. Passados 42 anos e algumas mudanças de endereço, eu não tenho mais a folha com o autógrafo do Zé Mário e também nunca tive nenhuma foto com ele. Tenho comigo, no entanto, alem brança que a magia de um autógrafo de um craque pode provocar em um garoto apaixonado por futebol. Aquelas palavras simples que foram escritas naquela tarde ficaram gravadas definitivamente no meu coração.

PS. Este texto é dedicado ao Museu da Pelada, quealia tão bem a paixão de torcedor ao jornalismo. Vida longa ao nosso Museu!

NÃO É SÓ FUTEBOL

por Paulo Roberto Melo


Pode parecer chatice, mas nunca gostei de ver jogos de futebol decisivos, pela TV, na companhia de amigos. Sempre achei que esse negócio de fazer festa antes da hora, de ver jogo, enquanto faz churrasco e toma cerveja, não é a melhor escolha em partidas importantes. Acredito que para se ver jogos decisivos há toda uma liturgia, que inclui uma preparação solitária, regada a uma boa dose de nervosismo, que, vai aumentando à medida que o início do jogo se aproxima.

Creio que é justamente esse clima tenso que sempre fez com que preferisse assistir aos jogos recolhido no aconchego da família ou mesmo sozinho. No caso da família, meu pai, meus irmãos e eu, tínhamos uma cumplicidade na hora dos jogos. Fazíamos comentários e usávamos expressões que só nós entendíamos, tais como: “Deixa de ser displicente!”; “Você não está jogando no quintal da tua casa!”; “Não precisa marcar ele não, porque esse a natureza marca!”; “Sai planta!”; “Tá jogando como um autêntico center-half!”

Claro que havia xingamentos e gritos desesperados. Era legal também os apelidos com que chamávamos os jogadores dos dois times e até alguns árbitros. Apelidos que nós mesmos inventávamos, com base nas feições, no porte físico, nos nomes dos atletas ou em alguma situação do próprio jogo. A maioria desses apelidos eram criados pelo meu pai, que era um mestre na arte de perceber certas peculiaridades, certas características e, a partir daí, inventar os epítetos mais cômicos, como se estivesse desenhando uma caricatura.

Outro motivo pelo qual eu sempre evitava sair da minha conveniente concentração e preferia recusar os convites que vez por outra me faziam eram os convidados para esse tipo de evento, partidas decisivas com churrasco e cerveja. Torcedor pé frio, pessimista, imbecis que não gostam de futebol mas apreciam picanha ao ponto e cerveja gelada, torcida neutra, gente que se fantasia para ver jogo, tudo isso, indiscutivelmente, tem um enorme potencial para atrapalhar o bom andamento de uma partida. (Sim, ou vocês acham mesmo que o que determina uma vitória ou um título é só o futebol jogado dentro das quatro linhas?)

Sabe-se lá por que cargas d’água, em 1986, durante a Copa do Mundo disputada no México, acabei aceitando um convite para ver Brasil x França, pelas quartas de final. Era apenas uma reunião de amigos, pelo menos não haveria churrasco.

Que não me acusem de falta de patriotismo, mas confesso que o meu amor pela seleção brasileira não consegue ser maior do que o que sinto pelo Vasco. A perda da Copa de 1982, com uma seleção recheada de craques que jogavam no Brasil, foi determinante para confirmar esse sentimento. Sem contar o posterior êxodo desses mesmos craques. Como se não bastasse, a preparação para a Copa de 86 foi pra lá de turbulenta.

Depois da Tragédia do Sarriá, a seleção brasileira patinou. Após a saída do técnico Telê Santana, o time teve outros três técnicos (Parreira, Edu e Evaristo de Macedo), diversos jogadores foram convocados, uns bons outros nem tanto. Aí, um ano antes da Copa, entregaram novamente o comando ao mesmo Telê, quer dizer, ao invés de uma renovação, tivemos um revival. Tudo isso, fez com que eu e muita gente tratássemos esse jogo de quartas de final, como apenas mais um (talvez por isso eu tenha aceitado aquele malfadado convite).

Eu havia visto todos os jogos do Brasil naquela Copa em casa e as coisas até que caminhavam bem. As duas vitórias, com um magro 1×0, nos dois primeiros jogos, contra Espanha e Argélia, não empolgaram, mas tudo bem. Depois da derrota de 82, havia se instaurado uma questão: jogar a Copa dando show e não ganhar (como a Hungria de 54, a Holanda de 74 e o próprio Brasil de 82) ou jogar mais ou menos, ir crescendo na competição e ganhar a Copa (como a Itália de 1982)? Isso porque o futebol apresentado pela seleção de 70, que deu show e ganhou a Copa, parecia (e creio que até hoje é) algo inatingível.

Fechando a primeira fase da Copa, o Brasil enfrentou a Irlanda do Norte e os 3×0 deram a esperança de que talvez algo pudesse ser diferente. Principalmente, por causa do segundo gol, na verdade, um golaço marcado pelo Josimar. Lateral direito do Botafogo, reserva na seleção (o titular Edson havia se contundido), simbolizava a capacidade incrível do futebol brasileiro de se renovar.

O jogo contra a Polônia pelas oitavas de final, consolidou a esperança do tetra. O Brasil ganhou de 4×0 e,se não deu show, pelo menos convenceu, com um futebol bem envolvente. Aquele jogo confirmou algumas coisas. A primeira: que, com aquele outro golaço marcado nesse dia, Josimar poderia ser considerado ser o craque do time. A segunda: que o Careca estava jogando demais! Com jogadas rápidas, implacável nas finalizações e extremamente perigoso, nosso centroavante nos fazia lamentar a sua ausência na Copa de 82, contundido às vésperas do mundial. E a última confirmação era sobre ele: Zico. Sem ter condições de disputar uma partida inteira, por conta do joelho recém-operado, que inchava depois dos jogos, o craque se tornou uma arma de segundo tempo. Entrou contra a Polônia, sofreu o pênalti que sacramentou os 4×0 e dessa forma alimentou o imaginário do torcedor brasileiro. 


Assim, dezesseis anos após o nosso último título, uma seleção brasileira, envelhecida e traumatizada pela derrota de 82 (com os remanescentes Carlos, Edinho, Júnior, Sócrates, Falcão, Zico) e, com alguns jogadores contundidos (Edson, Zico, Falcão), iria decidir sua caminhada em gramados mexicanos, enfrentando a temida frança nas quartas de final.

 Cheguei ao apartamento da família do Chico faltando quinze minutos para começar o jogo. O quadro era o seguinte: havia bolas de gás penduradas no lustre, duas TVs de 20 polegadas colocadas lado a lado na sala e três amigos, Felipe, Carlinhos, Marcão sentados no chão; no sofá estavam o dono da casa e o pai dele. Timidamente, eu me acomodei entre os dois, no sofá. Estava pouco à vontade com aquilo que, para mim, parecia uma multidão enlouquecida. Por fim, alguns minutos depois, quase na hora de a bola rolar, ainda chegou o Márcio, que também havia sido convidado trouxe com ele – vocês imaginem o sacrilégio, o perigo, o prenúncio de catástrofe… – a namorada…

Eu sei que, hoje, isso soa como um comentário machista, mas, advogado de mim mesmo, eu digo em minha defesa que em 1986 tudo era diferente. Até o início da década de 80, por exemplo, mulheres nos estádios (sobretudo as vestidas com roupas justas ou curtas) ainda eram brindadas nas arquibancadas com corinhos nada gentis a respeito de uma suposta licenciosidade de suas vidas. Então, o fato é que, ao ver a menina, não tive um bom pressentimento. Meu medo era que algum comentário infeliz pudesse influir no resultado do jogo, tipo o Brasil faz gol em qual lado, ou cadê a bola, coisas assim. Porém, como já estávamos todos lá, naquela corrente pra frente, não havia muito o que fazer.

O jogo começou e, como todo mundo sabe, foi terrível. O Brasil abriu o placar (Careca) e jogava a sua melhor partida naquela Copa. No final do primeiro tempo, a França empatou (Platini). Mesmo com as pessoas em volta, eu tentava me isolar, numa tentativa de não deixar que aquele ambiente prematuramente festivo me contagiasse, mas era difícil. Além disso, a França tinha um timaço! Havia feito uma ótima Copa em 82 e sido campeã da Europa em 84. Chegou na Copa do Mundo como uma das favoritas, com um elenco de craques, como Fernandéz, Tigana, Giresse e, o maior deles (senhores, fiquem de pé), Michel Platini.

O segundo tempo foi igual ao primeiro: tenso, com as duas seleções muito cautelosas, afinal, com tantos craques em campo, qualquer descuido poderia ser fatal. Mas se a França tinha sua legião de craques, o Brasil tinha a sua arma de segundo tempo: ele, Zico! Nosso craque entrou e praticamente na primeira bola que pegou, fez um passe perfeito para o lateral esquerdo Branco, que, dentro da área, tentou driblar o goleiro Bats e foi derrubado. Pênalti! Festa no Estádio Jalisco, festa no pequeno apartamento! Numa decisão controvertida, foi decidido que o Zico, frio, sem ritmo, meia-bomba, bateria o pênalti, e, enquanto o nosso camisa 10 se preparava, a tensão no país alcançou níveis estratosféricos.


A cobrança de um pênalti exige um ritual todo especial para quem está assistindo a um jogo pela TV. Unhas roídas, cabelos arrancados e, principalmente, silêncio. Os poucos segundos entre a corrida do cobrador até o chute na bola precisam ser vividos pela assistência no mais absoluto silêncio. Não foi o que aconteceu. Quando o Zico partiu para a bola, uma voz feminina, arauto do desastre, rompeu o silêncio:

– Ai, gente! Eu acho que ele vai perder…

O chute saiu fraco, e todos nós sabemos o que aconteceu

Após aquele breve segundo da dor do golpe, instalou-se o caos na sala do apartamento. O Felipe, sempre grosso e mal educado, virou-se para a garota aos gritos, culpando-a pelo pênalti perdido. Lógico que tinha sido ela, mas não precisava dizer. O namorado da infeliz, não gostou dos impropérios proferidos contra a menina e partiu pra briga. Resumindo, por muito pouco, em vez de o desenrolar de uma partida de futebol, não acabamos todos assistindo a um espetáculo de luta livre. E eu lá, sentado no sofá, cabisbaixo, em meio a ameaças, gritos e palavrões, morrendo de saudade de casa.

Aquele 21 de junho de 1986 já faz parte da história. O jogo e a prorrogação terminaram empatados e o Brasil foi eliminado na disputa dos pênaltis, com um insólito gol contra do goleiro Carlos. Depois que acabou o jogo, eu e o Carlinhos íamos caminhando pelas ruas, ainda desertas e tristes, quando vimos uma senhora chorando.

– O Brasil perdeu, o Brasil perdeu!

O Carlinhos, gentilmente, tentou consolá-la.

– Senhora, não chora! É só futebol!

Hoje, ao relembrar esse fato, tenho dois sentimentos. Um deles é de saudade. Sinto uma saudade imensa de ver jogos com meu pai e meus irmãos, seja pela TV ou no estádio. Os jogos a que assistíamos juntos marcaram a minha vida de tal forma, que nem as mortes do meu pai e do meu irmão mais velho conseguiram apagar as lembranças.

O outro sentimento é uma certeza. Nunca o futebol é só futebol. Seja torcendo pela seleção, seja pelo nosso time, rituais cabalísticos à parte, é por meio das emoções potencializadas na dor das derrotas e na euforia das vitórias, que construímos a consciência de quem somos como pessoas – estejamos em família, com amigos ou sozinhos.

O MELHOR QUE EU VI

por Paulo Roberto Melo


Eu nasci em março de 1966. Por força dessa data, posso dizer que sou do tempo dos Beatles. Não posso dizer, no entanto, que acompanhei o quarteto de Liverpool, afinal, eu tinha apenas quatro anos quando eles decidiram se separar e só fui apresentado aos seus clássicos pelo meu irmão, alguns anos mais tarde.

Por assim dizer, também sou do tempo em que Pelé desfilava seu reinado pelos gramados do mundo, mas, infelizmente, não o vi jogar. Minha noção real de futebol começou a tomar forma quando eu tinha dez anos e, nessa época, os desfiles do Rei aconteciam nos gramados sintéticos dos Estados Unidos e sem a mídia que temos hoje, o soccer da terra do Tio Sam (porque para esses doidos, football, apesar do nome, é um esporte jogado com as mãos, o que nós aqui chamamos de… futebol americano),bem, eu dizia, o tal de soccer era um quase nada que nem passava na televisão.

Mesmo não tendo visto Pelé jogar, acredito e concordo de que se trata do maior jogador de futebol de todos os tempos. Os relatos, as crônicas e os vídeos me convenceram disso há muito tempo. Mas meus olhos, coitados, não viram Pelé jogar e o título deste texto é “O melhor que eu vi”. Então, é… hum… o que eu quero dizer é que, ainda que seja um vascaíno de boa cepa, o melhor jogador que vi jogar foi o… Zico!

Tanto tempo depois da aposentadoria do Galinho, essa declaração pode ser feita hoje tranquilamente, mas, olha, nem sempre foi assim. Tendo nascido e vivido em uma casa vascaína com certeza,houve época em que tal afeto podia ser comparado ao beijo de Judas em Jesus, ao romance proibido de Romeu e Julieta, ou a delação de Joaquim Silvério dos Reis. Traição em último grau. Mas, se é verdade que quem tem um bom advogado tem tudo, Renato Russo diria em minha defesa:“quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?”

A verdade é que sou um vascaíno convicto, mas sou também um apaixonado pelo futebol bem jogado, o que significa dizer: com talento, habilidade, raça, dribles, lançamentos e gols, muitos gols. Quem em sua sã consciência pode dizer que essa não é uma perfeita definição do jogo do Zico? É claro que sofri vendo-o fazer gols contra o Vasco, mas esse sofrimento foi ficando menor, à medida em que fui entendendo que em um jogo, assim como na vida, se ganha e se perde e depois tudo vira história.

Em 1982, pelo campeonato brasileiro, houve um Flamengo x Guarani, em Campinas, que foi transmitido pela TV. O Guarani tinha um timaço, com Careca e Jorge Mendonça jogando muito! Sobre esse jogo, convém lembrar que o bairrismo, hoje diluído por causa do êxodo dos craques, naquela época era bem mais acentuado. Vários jogadores cariocas sofreram com vaias intensas durante jogos inteiros, em São Paulo, mesmo jogando pela seleção, casos de Paulo César Caju e Roberto Dinamite, por exemplo. Com isso, quase dez anos depois de ter aparecido para o futebol e apesar de contar com uma profusão de gols e de conquistas Brasil e mundo afora, orquestrados pela imprensa de São Paulo, as torcidas de lá diziam que o Zico era jogador só de Maracanã. Ou seja, o Galo ia ter que provar mais uma vez que eles estavam errados. Pois bem, então, naquela noite de quinta feira, o Brinco de Ouro da Princesa virou Estádio Mário Filho. O Flamengo venceu por 3×2, com três gols do Zico, que eu considero a maior atuação de um jogador em uma partida de futebol. Foi incrível!

Mais tarde, vendo o Zico jogar pelo modesto Udinese, da Itália, nas manhãs de domingo, pela TV Bandeirantes, o Brasil inteiro pôde constatar, inclusive as hostes inimigas, o que um craque como ele podia fazer contra adversários do quilate de Maradona, Platini, Falcão e outros, que jogavam em times muito mais fortes que o dele e em condições atmosféricas completamente desfavoráveis para um atleta brasileiro (e carioca).


Com o pessoal lá de casa, aliás, acontecia uma coisa engraçada. Parecia aquele negócio de filho bagunceiro: é verdade, mas ninguém pode falar do garoto, só os da família. Para meu pai e meus irmãos, o Zico só fazia gol de pênalti ou na banheira, mas diante da perseguição da imprensa de fora do Rio ou quando ele sofreu aquela entrada criminosa de um zagueiro do Bangu que quase o inutilizou para o futebol, os protestos foram unânimes e veementes. Nem aquele lance infeliz do pênalti contra a França na Copa de 1986 foi capaz de manchar minimamente a sua reputação de craque. Nada mais justo. Somos vascaínos, mas gostamos de futebol – ou melhor, somos vascaínos, por isso gostamos de futebol.

Claro, não posso deixar de dizer que o ápice da minha admiração aconteceu em 1993, quando ele aceitou jogar com a camisa do Vasco, na despedida do Roberto Dinamite. Sim, eu estava no Maracanã naquele jogo contra o Deportivo La Coruña. A derrota do Vasco para um time que na época era mais forte não significou nada. Grande mesmo foi ver eternos rivais que sempre se respeitaram, jogando juntos como amigos.

Ah, Zico, só você para me fazer sentir saudade e alívio, tudo junto.

Num tempo em que há por aí tantas “estrelas” milionárias supervalorizadas pela mídia, eu me lembro de uma coisa que o meu pai dizia, se não me engano falando do Ademir Queixada e parafraseando o profeta João Batista sobre as sandálias de Jesus: nenhum deles serviria sequer para amarrar as chuteiras do Zico.

Triste Copa: o Zico disputou três e não ganhou nenhuma – mas foi o melhor que eu vi jogar.

Tristes gerações Y e Z que não viram: há trinta anos, o Zico parou de jogar e continua sendo o melhor que eu vi.

Resumindo: o Dinamite foi o maior ídolo; o Zico, o maior craque.

E o seu maior craque, quem foi?

A propósito, mesmo sem ter visto os Beatles, eu declaro: eles são os melhores! Mas isso é papo para uma outra conversa.

GANHAR E PERDER

por Paulo Roberto Melo


Aquele Vasco e Flamengo de abril de 1986 tinha todos os ingredientes para ser diferente. Não pelo jogo em si e o que ele representava, a final da Taça Guanabara daquele ano. Gosto de lembrar que até meados da década de 90, ganhar a Taça Guanabara tinha realmente um sabor de título para as torcidas do Rio de Janeiro. Portanto, era mais um jogo em que os rivais históricos decidiriam umtítulo.

A diferença daquele Vasco e Flamengo estava nos personagens. Dentro de campo, dois jovens despontavam como candidatos a ídolos dos dois times, dividindo a paixão de suas torcidas, acostumadas a venerar Roberto Dinamite e Zico. Esses dois jovens eram Romário e Bebeto. Artilheiros cheios de talento, campeões pelas seleções de base e um futuro brilhante, que seria coroado pelos gritos de Galvão Bueno, na Copa dos Estados Unidos: “É tetra! É tetra!”

Fora de campo, os personagens éramos meu irmão mais velho e eu. Por conta de um casamento terminado, meu irmão havia voltado a morar conosco e tentava se adaptar à rotina de ex-casado vivendo na casa dos pais. Parte dessa rotina era voltar a frequentar o Maracanã. Por isso, ficara acertado que iríamos àquela final da Taça Guanabara de 1986, entre Vasco e Flamengo.

O interessante é que naquela semana que antecedeu o jogo, minhas lembranças recuaram nove anos no passado. Eu, com onze anos, era louco para ver no Maracanãzinho um evento chamado Disney on Parade. Era um desfile dos principais personagens da Disney, que povoavam minha imaginação. Pois bem, naquele ano de 1977, meu irmão prometeu me levar ao tão sonhado desfile.

Então, numa noite de quarta-feira, lá fomos nós rumo ao Maracanãzinho, encontrar Mickey, Pateta e cia. Quando chegamos à bilheteria do ginásio, a decepção: os ingressos haviam se esgotado. Meu desapontamento foi grande. Não ver o Disney on Parade naquele ano, significava ter que torcer para que no ano seguinte eles viessem de novo ao país, o que não era uma certeza. Vendo minha tristeza, meu irmão sacou um plano B:

– Vamos ao Maracanã! Estão jogando hoje Flamengo e Internacional!

Criado em sólidas bases vascaínas, estranhei a solução apresentada e exclamei:

– Vamos ver jogo do Flamengo?!

Foi então que ele explicou, tentando me convencer, que muitas vezes ele, meu outro irmão e um grupo de amigos iam ao Maracanã ver jogos do Fluminense, apenas para ver o Rivelino jogar. E veríamos naquela noite, jogadores como Zico, Carpegiani, Júnior, Falcão, Batista e outros. Como o apelo do Maracanã sempre foi muito forte para mim, aceitei, e trocamos os bonecos da Disney, pelo desfile dos craques que jogavam no Brasil. O jogo foi um amistoso e o placar final de 1×1 refletiu o equilíbrio dos dois elencos. Um detalhe foi marcante para mim: pela primeira vez eu vi um gol do Zico!


Voltando a 1986. Aquele Vasco e Flamengo foi tenso, como, afinal, todos o são. Meu irmão e eu estávamos na arquibancada atrás do gol, no local ocupado pela Força Jovem. E víamos um Vasco excessivamente recuado, confiando nos contra ataques puxados por Mauricinho e Romário. O primeiro tempo acabou 0x0, e meu irmão consumiu um maço de cigarros inteiro, tal o nervosismo em que se encontrava.

Logo no começo do segundo tempo, o lateral Paulo Roberto bateu uma falta, cruzando para a área. Muitos jogadores dos dois times disputaram a bola, mas ela sobrou para Romário, que fazendo jus à alcunha de “gênio da grande área”, chutou de bate-pronto e fez 1×0. Festa de três personagens daquele jogo: Romário, meu irmão e eu.

O outro personagem, Bebeto, passou a tentar de tudo buscando o empate. Deslocava-se por todos os lados do campo, chutava de todas as distâncias, dava passes, mas de nada adiantou. Quase no final do jogo, Mazinho deu um chutão pra afastar o perigo da área do Vasco e encontrou o rápido Mauricinho, que puxou o contra ataque e lançou Romário. O craque tocou na saída do goleiro Zé Carlos e decretou  a vitória do Vasco: 2×0! Explosão de alegria na arquibancada! Meu irmão, que já havia devorado outro maço de cigarro, me abraçou e juntos éramos a expressão da felicidade naquele domingo de abril de 1986.

Nove anos separaram os dois episódios que narrei neste texto. Episódios de vitória e derrota. 


Perdi o Disney on Parade, mas ganhei, ao ver grandes craques de Flamengo e Internacional, naquele Maracanã de 1977. No ano seguinte, vi o desfile no Maracanãzinho, levado por uma prima.

Como vascaíno, ganhei um título sobre o Flamengo, naquele Maracanã de 1986. Ganhei, vendo um Romário jovem, imbatível na corrida e mortal nos arremates.

Meu irmão não namorava; casava. Logo, foi um homem de muitos casamentos desfeitos. A cada término acontecia uma volta pra casa. Dessa forma, tenho a sensação de que ele entrou e saiu da minha vida diversas vezes. Era como se eu o ganhasse e o perdesse constantemente. Como a bola que vai e vem numa partidade futebol.

No jogo da vida, eu o perdi em 2014, quando um câncer o levou. Por outro lado, desde então o ganhei para sempre junto a mim, pois ficou comigo seu carinho, sua amizade e uma saudade que às vezes teima em doer.