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Paulo Roberto Melo

CARIOCÃO?

por Paulo Roberto Melo


Li hoje no jornal, em uma matéria sobre o Campeonato Estadual do Rio de Janeiro de 2021, que a Federação de Futebol do Rio, estava satisfeita com a realização da competição. Confesso que não entendi e não entendo o motivo da satisfação. Nem mesmo o fato do futebol, em tempos de pandemia, ser encarado como uma válvula de escape serve de explicação. Afinal, o campeonato foi pouco televisionado e assim, não teve o alcance necessário para tal.

Cresci, escutando meu pai, um português da Ilha dos Açores e apaixonado pelo Vasco, contar a façanha do Super-supercampeonato carioca de 1958, conquistado pelo clube da Colina. Depois de dois triangulares, envolvendo o próprio Vasco, o Flamengo e o Botafogo, o título veio de forma heroica para São Januário. Como nasci em 1966, minha noção de futebol só aconteceu aos 10 anos, quando comecei a ser levado ao Maracanã e minhas lembranças começaram.


Lembro-me da Máquina Tricolor e seus craques: Rivelino, Paulo César, Félix, Edinho, Gil. Um time tão bom, que foi bicampeão carioca em 75 e 76. No ano seguinte, 1977, Roberto Dinamite converteu a última cobrança de pênalti e deu o título ao Vasco, cuja escalação está na memória de todo vascaíno: Mazaropi, Orlando, Abel, Geraldo e Marco Antônio. Zé Mário, Zanata e Dirceu. Wilsinho, Roberto e Ramon. Não me esqueço da cabeçada magistral do Rondinelli, em 1978, aos 44 minutos do segundo tempo, dando o título daquele ano ao Flamengo. Junto a esse título vieram mais dois, em um mesmo ano, 1979, dando ao clube da Gávea seu terceiro tricampeonato.

As lembranças da década de 80 povoam a minha mente. Em 1981, o Flamengo, campeão da Libertadores e Mundial, contou com um reforço para ser campeão carioca: além de Zico, Andrade, Adílio e Júnior, um ladrilheiro foi colocado em campo para esfriar um aguerrido Vasco, que insistia em ser mais eficiente do que um certo Liverpool. Mas em 1982, com um gol olímpico ou de cabeça, o campeão foi o Vasco. “Laranjeiras, satisfeita sorriu”, quando viu seu tricolor ser tricampeão em 83, 84 e 85, com uma geração que aliava técnica, marcação e um craque paraguaio, chamado Romerito. 


O ano de 1986 ficou marcado como o primeiro em que Romário, com 20 anos, foi artilheiro do Campeonato do Rio, embora o campeão tivesse sido o Flamengo. O Baixinho seria artilheiro da competição, outras seis vezes. Lembro-me da corrida desabalada do Tita, com a camisa do Vasco na cabeça, depois de estufar as redes do Flamengo, dando o título de 87 ao cruzmaltino. Inesquecível, foi o que protagonizou o jogador Cocada, na decisão de 1988, entre Vasco e Flamengo. Ele entrou aos 41 minutos do segundo tempo, fez o gol do bicampeonato do Vasco e foi expulso aos 45, depois de jogar sua camisa no banco rubro-negro. E todos se lembram de ver uma estrela solitária brilhar em 1989, quando o técnico Valdir Espinosa conduziu o Botafogo a um título, depois de 21 anos.

A década de 90 começa com o Maracanã caindo, literalmente, aos pedaços. Na final do Brasileirão de 92, ganho pelo Flamengo, parte do alambrado das arquibancadas caiu, matando três pessoas e determinando o fechamento do estádio por sete meses. Assim, o Campeonato Carioca daquele ano, teve seus jogos mais importantes disputados em São Januário. Esse campeonato, ganho pelo Vasco, é marcado por ser o primeiro título de um endiabrado Edmundo e o último do eterno Roberto Dinamite. Nos dois próximos anos, 93 e 94, só a torcida do Vasco comemorou, cantando no reformado Maracanã: “tri, tri, o Vasco é tri!” Memorável foi o ano de 95! Capitaneado por Romário e com um timecheio de craques, em busca de um título no ano do seu centenário, o Flamengo viu a taça ir para as Laranjeiras, graças à barriga de um certo Renato, o mais carioca dos gaúchos. Vibrei em 1998, com o Vasco sendo campeão carioca no ano do seu centenário. 

Os anos 2000 são de flashs para mim. O chocolate que o Vasco deu no Flamengo, na decisão da Taça Guanabara, ganhando de 5×1, em pleno domingo de Páscoa, apesar do campeão carioca daquele ano ter sido o Flamengo.  A sensacional e (in)defensável cobrança de falta de Petkovic, aos 43 minutos do segundo tempo, sacramentando o quarto tricampeonato do Flamengo em 2001. O passe de letra de Léo Lima, no gol que deu o campeonato de 2003 ao Vasco. O quinto tri do Flamengo, em 2007, 2008 e 2009. Um bicampeonato do Vasco em 2015 e 2016.

Enfim, o que se lembrar do “Cariocão” de 2021? A estranha fórmula, em que o campeão da Taça Rio é o quinto colocado? Uma final de campeonato em uma noite de sábado? Um artilheiro da competição com apenas nove gols marcados? Com certeza, o sexto tricampeonato do Flamengo é a única coisa que ficará para a história e mesmo assim, por apenas uma parte do Rio de Janeiro.

Sabe, não sou e não gosto de ser chamado de saudosista. Mas aqui entre nós, tem sido difícil não ser.

IN MEMORIAM

por Paulo Roberto Melo


Ainda estou sob o efeito do inacreditável, causado pela morte do Paulo Gustavo. O que é preciso fazer para entender como uma pessoa, no auge da sua carreira, vai embora, morre, seja por doença ou algum acidente? Precisamos de uma explicação rápida que nos console, que nos conforte e que seja suficientemente forte para nos fazer continuar a ter esperança. Uns recorrem à religião, outros ao acaso e ainda outros, simplesmente sofrem. Apesar de ser a única certeza que carregamos na vida desde o momento do nascimento, não estamos preparados para o adeus definitivo.

Ainda criança, me lembro da minha mãe falando, sobre um poema chamado “O Corvo”, do escritor americano, Edgar Alan Poe. Nele, um corvo responde sempre a mesma coisa, quando questionado sobre a morte: Never more, ou, nunca mais. Creio que essa é a principal dor da morte: a certeza irremediável do nunca mais.

No futebol, nunca havia passado pela minha cabeça a ideia da morte. A imagem do atleta sempre correndo e forte, me parecia a própria imagem do indestrutível. Por isso, não entendia, em 1974, com oito anos, meu pai falando que o lateral esquerdo Everaldo, tricampeão com a seleção brasileira no México, havia morrido. Aquele jogador era campeão do mundo! Ídolo do Grêmio! Como assim?! Never more

Quando eu tinha dez anos, em 20 de maio de 1976, o time do Cruzeiro entrou no Mineirão para enfrentar o Alianza Lima, do Peru. O esquadrão azul, formado por Raul, Nelinho, Piazza, Eduardo, Jairzinho, Palhinha e Joãozinho, em pouco mais de dois meses depois, conquistaria a Taça Libertadores da América pela primeira vez. A estrela daquela noite, porém, não era nenhum deles. Roberto Batata, um atacante de mais de 100 gols com a camisa azul, era a pessoa mais importante daquela partida. E ele não estava lá.

Roberto Batata tinha morrido sete dias antes em um acidente na rodovia Fernão Dias. Eu via meu pai e meus irmãos conversando sobre o ocorrido e minha cabeça dava um nó. Um atacante tão rápido, tão bom, como poderia morrer dessa forma? Por que não driblou também a morte? Never more…

Ainda em 1976, apesar de vascaíno, eu já admirava uma dupla que fazia sucesso no Flamengo: Zico e Geraldo. Um dia eu escutei meus pais conversando que o Geraldo foi fazer uma cirurgia para retirar as amígdalas e morreu de choque anafilático causado pela anestesia, em uma cadeira de dentista. Ele tinha apenas 22 anos! Lembro, que achava engraçado o fato dele jogar assobiando, gerando o apelido “Assobiador”. E estranhava o Flamengo jogando de calções pretos e, me perguntava: “Como vai ser agora, com o Zico? Vai voltar a jogar bem sem o amigo? Como uma das maiores revelações do futebol dos anos 70 podia morrer dessa forma, tão banal?”Never more…

Passaram 18 anos e em abril de 1994, quando cheguei para dar aula no colégio em que trabalhava, estranhei o comentário de que o Dener, jogador maravilhoso, que brilhava no Vasco e me enchia de alegrias, havia morrido em um acidente de carro na Lagoa Rodrigo de Freitas. Diziam as notícias, que o jogador havia morrido estrangulado no cinto de segurança. Antes de entrar em sala de aula, minha cabeça fervia com interrogações e exclamações: “O Dener tinha só 23 anos! Como uma carreira tão promissora podia acabar desse jeito?” Nevermore…

Ao longo dos anos, vimos imagens das atuações corretas do Everaldo, mas nunca mais vimos novas atuações dele. Vimos dribles e gols do Roberto Batata, mas nunca mais vimos novos gols e dribles dele. Vimos aquele gol do Geraldo na decisão da Taça Guanabara de 1976, entre Vasco e Flamengo, mas nunca mais vimos um gol do Geraldo. Vimos dribles endiabrados e gols sensacionais do Dener, passando por meio time, mas nunca mais vimos novos gols e novos dribles dele.

Veremos ao longo deste ano, reprises dos filmes e programas do Paulo Gustavo, mas nunca mais veremos novos filmes e programas dele. Nunca mais…

Quando a morte alcança alguém no auge de uma carreira, precisamos convencer nossas mentes, diante do inesperado, do inexplicável, do irremediável que é o “nunca mais”. Experimentei isso da forma mais dura possível, quando, no dia seguinte da morte da minha mãe, esperei um telefonema dela e ele não veio.

No especial de fim de ano da Rede Globo, em 2020, Paulo Gustavo se despediu dizendo, entre outras coisas, que “a gente não vai deixar de sorrir, não vai deixar de ter esperança.” Com certeza, vamos voltar a sorrir e vamos voltar a ter esperança. Hoje, ainda não dá…

PARABÉNS

por Paulo Roberto Melo


Sou um torcedor comum do Clube de Regats Vasco da Gama. Na adolescência e na juventude, fui torcedor da arquibancada e da geral do Maracanã. Fui pouco ver o Vasco em São Januário. Morador da Tijuca e sem carro, sempre foi difícil ir até São Cristovão, principalmente quando os jogos aconteciam de noite.

Sempre acompanhei o Vasco através dos jornais, dos programas de rádio e TV e quando o videocassete se tornou uma realidade viável nas casas, cheguei a colecionar gols do Vasco. Isso mesmo! Do final da década de 90 até o início dos anos 2000, eu gravava os gols e os anotava em uma folha. Comprei diversas camisas de jogo, algumas de treino, agasalhos e livros sobre o Vasco.

Considero que torcer para o Vasco sempre ultrapassou os limites de um simples gostar de um clube. Torcer para o Vasco significa mesclar sentimentos e memórias, envolvendo meus pais que já partiram, um dos meus irmãos, também já falecido e o irmão que ainda está comigo, parceiro de longas resenhas pós jogos.

Diante do quarto rebaixamento em 12 anos, eu preciso dar os parabéns a todos que classifico como responsáveis por mais essa humilhação. E vou fazê-lo de forma didática e hierárquica, listando dos menos ao mais culpado.

Parabéns aos jogadores. É certo que trabalhar sem receber salário é algo impensável para qualquer profissional, ainda mais em um ambiente de muito dinheiro. Dou os parabéns, porque determinados jogadores desse elenco não tem a menor condição de vestir a camisa do Vasco. São jogadores que não sabem chutar, cruzar, cabecear e dar um passe de dois metros.

Parabéns a todos os envolvidos com a política do Vasco. Parabéns ao grupo que colocou o Roberto Dinamite para ser o cabeça de uma chapa que prometia ter uma fila de empresas para patrocinar o clube, se fosse eleita e, que no fim, deixou o Dinamite sozinho. Parabéns ao Campelo, presidente desse último rebaixamento (não posso colocar essa cruz nas costas do Salgado). Parabéns por ter aceitado participar de um golpe para se tornar presidente e passar os três anos do seu mandato montando times medíocres, lutando para não cair nos dois primeiros anos, para cair no terceiro.


Ainda no campo da política, parabéns a todos os nomes que passei a escutar e ler nos jornais nos últimos tempos. Roberto Monteiro, Mussa, Leven, Brant, Euriquinho e muitos mais que não conseguem realizar uma eleição no clube, sem que ela seja resolvida na justiça. É impressionante como um clube com uma dívida de 720 milhões de reais ainda é disputado. Cada um, ávido por tirar um pouco mais.

E por fim, preciso dar os parabéns ao maior culpado de todos: Eurico Miranda.

É certo que muitos, ao ler estas linhas vão dizer que estou louco em culpar um homem que não dirige o clube há muito tempo. Outros talvez digam, que é um absurdo culpar um homem que já morreu.

Pois bem, engana-se quem pensa que o Eurico está morto. Ele está vivo no projeto megalomaníaco das Olimpíadas de 2000, quando contratou, sem dinheiro, atletas das mais diversas modalidades. Muitos desses atletas ainda estão na lista de credores, com cifras milionárias a receber. Foi o Eurico que não pagou FGTS e salários de diversos jogadores, condição básica de uma relação patrão e empregado. Esse fato fez com que o clube perdesse, de graça, grandes jogadores.

 Muitos vão lembrar dos times maravilhosos que ganharam dois títulos brasileiros, uma Mercosul, uma Libertadores e um Carioca, brilhando no ano do centenário. Gosto de lembrar que o presidente desses títulos se chamava Antonio Soares Calçada. O Eurico era o vice, brigava pelo Vasco, era a voz ativa nos tribunais e era idolatrado pela torcida. Mas tinha o Calçada.

O Eurico se tornou presidente e no raiar do ano 2001, quando o Vasco entrou em campo para enfrentar o São Caetano, no Maracanã, na final de um evento patrocinado pela Rede Globo, estampando SBT nas camisas, ficou clara a mensagem: o Vasco não era mais da sua torcida, dos seus jogadores antigos e atuais, da imensa colônia portuguesa. O Vasco era de Eurico Miranda.


Vinte anos de Eurico Miranda foram e ainda estão sendo mortais para o Vasco. Durante esse tempo, ídolos foram perseguidos e o maior deles foi expulso das sociais de São Januário. Eleições foram fraudadas, urnas sumiram e a imprensa foi diversas vezes impedida de realizar o seu trabalho. 

O legado dele permanece vivo. Luzes foram apagadas na última eleição, a Light foi cortar a luz de São Januário, a Cedae cortou a água. Os jogadores continuam com três salários atrasados. Atletas e técnicos continuam entrando na justiça por valores milionários. O Vasco não tem basquete, não tem voley, não tem atletismo e nem natação. O Vasco ainda tem futebol, mas ele agora é de série B e não sei por quantos anos. O Vasco tem a sua torcida apaixonada, sofrida, ávida por títulos e ídolos.

Eu caí muitas vezes na minha vida. E assim como o Vasco, não caí de surpresa, afinal, vinha caindo há tempos. Consegui me levantar das vezes que caí, graças a minha família e ao amor, principalmente da minha esposa e da minha filha.

Hoje, eu escutei um flamenguista cantar de sacanagem: “o Vasco é o time da virada! O Vasco é o time do amor!” Que seja profético! O Vasco precisa de uma virada e precisa de quem o ame, sem sugar dele aquilo que ele já não tem mais.

Por enquanto, nesses parabéns, eu relembro o poeta: “Vamos celebrar o horror de tudo isso, com festa, velório e caixão.”

FOGO!

por Paulo Roberto Melo


Em 1979, com 13 anos, eu enfrentava alguns desafios. Pelo menos um deles de ordem pessoal: lutava para me aceitar como pessoa. Fisicamente as coisas não iam muito bem. A balança se tornara minha inimiga número 1, teimando em mostrar, através da subida impiedosa dos seus ponteiros, que eu não era mais aquele menino “fofinho” ou o garoto “forte” que alguns familiares e conhecidos carinhosamente ainda me chamavam. A dura realidade se evidenciava sobretudo na minha barriga e nas minhas bochechas. Sim, eu era…gordo! 

Era assim que me chamavam no colégio. Depois de estudar minha infância toda em colégios públicos, fui matriculado em uma escola particular, Essa mudança foi particularmente dura comigo. Vim de um colégio pequeno, em que todos me conheciam pelo nome, para um onde eu não era ninguém, ou pior do que isso.  Em dois anos, na nova escola, eu só escutei o meu nome ser pronunciado no momento da chamada. Fora isso, eu era o “gordão” ou o “gordinho”, dependendo da afinidade de quem se referia a mim. Mas, no geral, eu era mesmo o “gordo”.

Há algo interessante sobre esses apelidos jocosos. Os que se dizem entendidos no assunto costumam, falar que não se deve ligar para o apelido que quando a pessoa se importa, aí sim o apelido pega. Ok, mas isso é muito cruel. Os catedráticos em apelido certamente não sofreram esse tipo de perseguição, possivelmente estavam do outro lado, se não colocando apelidos, pelo menos incentivando o seu uso, ou não dariam uma recomendação tão simplista. Afinal, em qual página desse manual sobre apelidos, está escrito a forma de não ligar para um chamamento que ignora o seu nome e exalta uma característica no seu corpo, da qual você não gosta – especialmente quando se tem apenas 13 anos?

Agora, como afirmam os mais sábios, não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar. Pois bem, em paralelo com meu peso, eu ainda sofria de uma miopia galopante, que me obrigava a usar óculos com lentes muito grossas, que, precisavam, para serem sustentadas, de uma armação igualmente grossa e pesada. Não, não era fácil ter 13 anos em 1979, tendo um apetite voraz, sendo míope e estudando num colégio de burgueses onde ninguém sequer sabia o meu nome. 

Outro desafio, este de ordem familiar, era lutar para ficar acordado depois das 22h, a fim de poder ver a programação noturna da TV. Com poucas opções de canais, a TV Globo, com suas novelas (Saramandaia, Nina, etc) séries americanas (Kojak, As Panteras, etc) era a emissora preferida para uma programação, digamos, mais adulta. Mas é claro, isso não me era permitido. Definitivamente, ser o temporão, caçula de dois irmãos, com pais não tão jovens, era um desafio difícil de ser vencido.

No futebol, como torcedor, eu também tinha meus desafios. O principal deles, era ver o Flamengo perder! Sim, desde que o Rondinelli, na final de 1978, subiu para cabecear e dar o título de campeão carioca ao Flamengo, o clube da Gávea ganhava de todos. As péssimas administrações de Vasco, Fluminense e Botafogo haviam enfraquecido os times, enquanto o time rubro-negro se fortalecia para ficar marcado na história com sua melhor geração. Assim, em 1979 ( como seria pelos próximos três anos) o time a ser batido era o Flamengo.

Todas as conversas no colégio, principalmente na segunda-feira, giravam em torno desse assunto. Fiz amizade com alguns pobres coitados, tão rejeitados quanto eu e, juntos, representávamos os quatro grandes clubes do Rio de Janeiro. O Marcelo tinha orelhas de abano e era Flamengo, o Mauro, era incrivelmente feio e torcia pelo Botafogo, o Ricardo, ruivo e sardento era Fluminense e eu… – gordo e quatro olho… vascaíno, claro. As nossas conversas invariavelmente giravam em torno de meninas que nunca conquistaríamos e do bom e velho futebol, abrigo confortável dos mais desafortunados.

Quando falei acima que o Flamengo ganhava de todos, eu não usei de sentido figurado para me expressar. Desde outubro de 1978, o Flamengo não perdia, somando 52 partidas de invencibilidade! Assim, ganhar do Flamengo, nessa época, podia ser comparado a conquistar um título.

Na primeira semana de junho de 1979, em plena disputa da Taça Guanabara, o assunto era o clássico entre Flamengo e Botafogo, que se realizaria no domingo. O jogo tinha um ingrediente a mais: de setembro de 1977 a julho de 1978, o Botafogo também teve uma série de 52 partidas invictas, sendo derrotado pelo Grêmio.

Dessa forma, o jogo do dia 3 de junho de 1979 era uma decisão. Se o Flamengo ganhasse ou empatasse, passava o Botafogo em número de partidas invictas. Por isso, a vitória do Glorioso era importantíssima, para quebrar a invencibilidade rubro-negra e dar a todos nós assunto para algumas semanas.

Mas a semana havia começado mal para o Botafogo. O goleiro titular, Zé Carlos, havia sofrido um acidente e quem vinha jogando era o reserva, Ubirajara. Acontece que o Ubirajara se machucou e quem iria para o jogo era o terceiro goleiro, um certo Borrachinha. Certamente, essa notícia deu à torcida do Flamengo a certeza de que um terceiro goleiro não conseguiria parar o poderoso esquadrão rubro negro, formado por Tita, Claudio Adão, Júlio César, Zico e cia. 

No domingo, mais de 100 mil pessoas lotavam o maior do mundo para ver o clássico da invencibilidade. Como todo jogo cercado de expectativa, esse começou tenso e estudado. Mas logo aos 9 minutos, o jogador do Botafogo, Renato Sá, aproveitou uma bola rebatida da defesa e tocou no cantinho do goleiro Raul. Botafogo 1×0! Refeito do susto de um gol sofrido no início da partida, o Flamengo se lançou todo ao ataque.

Pelo velho Spica, o radinho de pilha do meu pai, eu escutava Jorge Curi e Waldir Amaral narrarem o bombardeio à meta botafoguense. O gol de empate parecia uma questão de tempo –  mas aquela tarde estava reservada para consagrar outro atleta, não o rei Zico nem algum dos seus companheiros. Com o nome de um improvável filho de super-herói, o goleiro Borrachinha pegou tudo nesse jogo e, garantiu a vitória do time de General Severiano, interrompendo a sequência de partidas invictas do Flamengo.

Um detalhe curioso desse jogo, é que o Renato Sá, autor do gol da vitória, também ajudara a quebrar a longa invencibilidade do Botafogo, dois anos antes, jogando pelo Grêmio, quando marcou dois gols.

Como complemento do grande domingo de derrota do rival, consegui junto ao conselho familiar a graça de poder ficar acordado até mais tarde, para ver o videoteipe do jogo, que começaria perto da meia – noite, na TV Bandeirantes.

Com todos dormindo, sozinho na sala e no mundo, longe dos meus problemas, eu experimentei naquela hora uma sensação diferente. Foi assim, feliz, relaxado, me sentindo adulto, que com todos dormindo, eu escutei a voz do Paulo Stein, começar a narrar o jogo, já pensando nas gozações que faria pela manhã no colégio, com meu único colega rubro-negro.

Mal o jogo havia começado, ouvi, um grito forte, vindo da rua: “Fogo!” Sorri, compreendendo a alegria do torcedor alvinegro. Novo grito: “Fogo!” Dessa vez, eu achei um pouco de exagero, principalmente pelo adiantado da hora. O terceiro grito de, “Fogo!”, me fez levantar do sofá, desconfiado e ir até a janela para conferir aquela súbita alegria botafoguense.

Quando cheguei à janela, ao mesmo tempo vi uma grande labareda tremeluzindo à minha frente e senti um forte calor nas paredes do apartamento. Algumas pessoas, do outro lado da calçada, sinalizavam, nervosamente, apontando na direção do nosso edifício.

Corri para chamar meus pais e meus irmãos, e saímos todos do prédio. O incêndio era em uma loja de tecidos, que ficava ao lado da portaria do prédio, e as chamas rugiam, subindo de forma assustadora. Alguns minutos depois, os bombeiros chegaram, e o fogo enfim foi controlado.

Quando voltamos para casa, meu pai botou suas mãos em meu rosto e me disse:

– Que bom que você estava acordado!

Fui dormir radiante de felicidade naquela noite, com a certeza de que os desafios se apresentam em nossas vidas, para testar o quanto somos fortes e o quanto estamos preparados para enfrentá-los. E tinha no meu peito de adolescente a forte convicção, de que, em algum lugar do Rio de Janeiro, o Borrachinha experimentava o mesmo sentimento.

A MORTE E A MORTE DE MARADONA

por Paulo Roberto Melo


Quantas vezes se morre em uma vida? E quantas vezes, mediante essas mortes, se consegue ressuscitar? Quantas vezes, até o descanso definitivo dos olhos, uma pessoa busca a reinvenção, a volta, o renascimento? 

Diego Armando Maradona morreu aos 24 anos, quando experimentou a primeira carreira de cocaína de sua vida. Estava no Barcelona, um dos maiores clubes do mundo e a cobrança por ter sido a maior transação da história do futebol até então, pressionava o craque. Para piorar, depois de uma entrada criminosa, fraturou o maléolo fibular do tornozelo esquerdo e o ligamento colateral. Três meses e meio longe dos gramados.

Diego Armando Maradona ressuscitou em 1984, quando chegou à cidade de Nápoles, para transformar o modesto Napoli em um clube vencedor de Copa da Itália, Copa da Uefa e campeonato italiano. Fez gols de falta, de cabeça, por cobertura e encantou uma cidade, um país e o mundo.


Diego Armando Maradona morreu, no estádio de Sarriá, durante a Copa da Espanha em 1982. Defendendo uma seleção argentina envelhecida, desencontrada e mal treinada, foi expulso ao dar uma solada em Batista, jogador da seleção brasileira. O placar de 3×1 para a seleção canarinho enterrava de vez uma geração que havia sido campeã mundial quatro anos antes em gramados argentinos.

Diego Armando Maradona ressuscitou, driblando ingleses, belgas, alemães e a arbitragem, durante a Copa do México, em 1986. Foi o melhor da bicampeã Argentina, o melhor da Copa, o melhor do mundo.

Diego Armando Maradona morreu ao ser pego em um exame de dopping, em 1991, quando ainda defendia o Napoli. A pena rendeu 15 meses de suspensão ao craque. Depois, durante a Copa dos Estados Unidos, em 1994, saiu de mãos dadas do campo, com uma enfermeira, direto para outro exame de dopping que daria positivo e o tiraria da Copa.

Diego Armando Maradona ressuscitou em La Bombonera lotada, ao se despedir do povo argentino e da torcida do Boca, seu amor no futebol. Em meio às lágrimas, agradeceu, falou dos seus equívocos e deixou uma mensagem para todas as gerações de futebolistas após ele: “A bola não se mancha”.


Diego Armando Maradona morreu no dia 25 de novembro de 2020, aos 60 anos de idade. Seu coração parou de bater, seu cérebro parou de emitir mensagens para sua genial perna esquerda e suas posições firmes, seja de ordem política ou social se calaram. Seus olhos se cerraram e nunca a expressão “descansou” foi tão bem aplicada a uma pessoa.

Diego Armando Maradona ressuscitou um segundo após ter morrido. Ele está vivo nos documentários, nos jogos, nos textos, nas resenhas, nas homenagens. Diego Armando Maradona não foi o melhor que eu vi. Mas com certeza, o mundo sem ele está mais pobre.

Quantas vezes se morre em uma vida? E quantas vezes, mediante essas mortes, se consegue ressuscitar?