por Paulo-Roberto Andel
Muitos são os fatores que ajudam a explicar por que o Brasil deixou de ter o melhor futebol do mundo. Podemos dizer que perdemos grande parte dos espaços públicos onde os jovens jogadores surgiam. Hoje, um garoto forte com técnica limitada sempre terá preferência em relação a um craque franzino. Os clubes de menor investimento, verdadeiras fábricas de jogadores, estão à míngua – muitos já fecharam as portas ou sobrevivem com ex-jogadores em atividade. A evolução dos métodos de preparação física levou ao conceito de ocupação máxima dos espaços, exigindo que a prioridade fosse a questão atlética. Enquanto outros países apostaram na adaptação a certo tipo de jogo tido como “brasileiro”, o Brasil abriu mão de suas características essenciais para copiar o modelo de força bruta europeu. E muito mais.
Durante décadas, nos campinhos de subúrbio, nas quadras de futebol de salão, nos times de fábrica e de várzea, no futebol de areia, surgiam jogadores em quantidade industrial. Esse resultado aparecia nos clubes, onde cada time possuía diversos jogadores de alto nível, mesmo dentre aqueles que não necessariamente brigassem por títulos. E essa produção em série fazia emergir talentos a granel. Basta olhar o passado e verificar quantos craques consagrados jogaram pouco, quase nada ou simplesmente não defenderam a Seleção Brasileira. São centenas e centenas de nomes.
A inflexão que decretou a morte do chamado “futebol-arte” foi na Copa de 1982. Em vez de aprimorar a produção de jogadores de talento, o Brasil optou pela massificação da força física. Ironicamente, conquistou ainda mais duas Copas do Mundo e chegou a outra decisão, em todas com jogadores fora de série, ainda herdeiros da velha tradição do futebol brasileiro: Romário, Bebeto, Rivaldo, Ronaldo Nazário, Ronaldinho Gaúcho. Quando essa última geração se desfez, sucumbimos e passamos a viver de promessas não cumpridas em campo. O último jogador que, embora não chegasse ao mesmo platô destes citados, sabia utilizar seus recursos técnicos com inteligência absoluta foi Kaká, não por coincidência o último brasileiro a conquistar o prêmio de Melhor do Mundo.
Com filosofias de jogo ultrapassadas e a obsessão da força sobre a técnica que sempre tivemos, ficamos para trás à espera de lampejos. Qualquer jogador surgido de uma campanha de sucesso no futebol brasileiro passou a ser “digno” de jogar nas Seleções que conquistaram nossos cinco títulos mundiais. Ídolos passaram a ser construídos com marketing. Promessas de talento não se cristalizaram em craques definitivos da Seleção Brasileira, numa longa lista que vai de Adriano Imperador, passa por Robinho e Paulo Henrique Ganso, bate em nomes como os de Bernard e Oscar, até chegar aos atuais onde o mais reluzente deles é, sem dúvida, Neymar. Todos fizeram fama e fortuna, todos são conhecidos internacionalmente, mas nenhum deles teve o êxito na Seleção que se esperava.
Especificamente no caso de Neymar, a frieza dos números leva seus fãs mais ardorosos a vê-lo superando Pelé, isso por conta do número de gols marcados pela Seleção Brasileira. É fácil perceber que se trata de uma sentença inconsistente: basta avaliar as circunstâncias da construção das duas artilharias e, claro, a trajetória dos dois jogadores. Mas um fato é inquestionável: aos 30 anos de idade, Pelé já tinha três títulos mundiais, dois deles como ator principal, enquanto Neymar jamais chegou perto disso.
A seu favor, o atual camisa 10 da Seleção Brasileira tem até Rivellino em sua defesa, tendo declarado recentemente que Neymar poderia ter sido um titular de 1970 no lugar de Tostão. Com todo respeito a um dos maiores craques de todos os tempos, considero sua declaração um verdadeiro delírio: em nenhum momento de sua carreira Neymar jogou mais do que Tostão, o que não quer dizer que não possua um enorme talento que hoje lhe coloca entre os maiores jogadores do mundo atual. O problema é que esse mesmo mundo tem a sua principal fábrica de talentos fechada por tempo indeterminado, chamada Brasil.
Quando falamos das Seleções Brasileiras vitoriosas, é impossível não falar de três ou quatro, cinco nomes. A Era Neymar tem esse porém: é a jornada de um homem só, e isso ajuda a refletir sobre o que se tornou o futebol brasileiro atual. Longe de transformar a final da Copa América como uma tragédia, ironicamente neste momento a Seleção faz uma excepcional campanha nas eliminatórias, só que sem o menor brilho. Os resultados têm sido impecáveis, mas é possível disfarçar a mediocridade, e isso é que cada vez mais afasta o torcedor brasileiro de sua paixão de outrora, junto com a total falta de identificação com um grupo praticamente anônimo, embora com relativo sucesso no exterior.
O fato é que nosso talento ficou no século XX, cuja última raspa da colher foi em 2002. Precisamos recuperá-lo, antes que seja tarde demais. Todos os grandes centros de futebol do mundo têm condições de desenvolver seus jogadores até o apogeu físico, mas isso não precisava significar um desprezo ao talento, uma ojeriza ao improviso, ao drible objetivo e fulminante. Onde foi parar o nosso drible? Onde está o fora de série? Sabemos. Está escondido nas comunidades carentes, sem recursos nem empresário para adentrar um clube. Ou desprezado porque faz “palhaçadas” em campo. Ou ignorado por ser magriço, incapaz de mostrar sua força física.
Um dia, tivemos um futebol tão espetacular que o mundo inteiro tentou copiar, sem sucesso. Há quem não acredite, mas é só entrar no YouTube e ver. Está tudo lá. Dez minutos de passes, dribles e lançamentos num vídeo qualquer são suficientes para se entender onde é que a gente se perdeu.
@pauloandel