Escolha uma Página
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Paulo-Roberto Andel

EU, REDONDA

por Paulo-Roberto Andel


Há trinta e oito anos vivo em berço esplêndido e profunda solidão. Numa breve espiada, posso ver o esplendor da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde vim parar contra a vontade mas cumprindo meu destino. Estou só, absolutamente só.

Tudo começou num dia que prometia ser o mais feliz da história do Brasil, mas não deu certo. As ruas eram cheias de bandeirinhas coloridas, o asfalto era pintado de verde e amarelo, Pachecão para todo lado. Waldir Peres, Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Cerezo, Sócrates e Zico; Falcão, Serginho e Éder. Onde poderia ter alguma falha?

O país parou para ver Brasil e Itália pela Copa de 1982 e não é difícil imaginar que, em 100 jogos, o nosso timaço venceria o timaço deles em 99. Mas como 99 não é 100, perto da hora do almoço a Seleção viveu uma espécie de nova final de 1950, e Paolo Rossi se transformou em dos maiores personagens de todas as Copas do Mundo. Quando o jogo acabou, Copacabana – o bairro mais barulhento da Terra – era um silêncio de dois mil cemitérios. A Itália ganhou o jogo dos jogos por 3 a 2, primeiro passo rumo ao tricampeonato mundial que lhe pertenceria em breve. 

Os garotos, meus amigos, resolveram se reunir e jogar bola numa das quadras da Lagoa. Que remédio seria melhor ali do que uma boa pelada? Não havia telefone, uns foram na casa dos outros e logo éramos sete. Lembro que fizemos uma verdadeira procissão solitária do meio de Copacabana até o Corte do Cantagalo, quando então surgiram alguns carros. Antes disso, parecia que havíamos cruzado um deserto formado por prédios abandonados: não havia uma pessoa às janelas, nem nas calçadas, nada. Os porteiros desapareceram. Bancas de jornais, padarias, supermercados e botequins fechados. Ninguém ligando nos orelhões. O asfalto completamente vazio. Por alguma razão eu preferia não ter ido, mas não tive escolha: o futebol é minha sina. Nem todo mundo só faz o que quer.


Tivemos a exata noção da tragédia nacional quando chegamos aos campos da Lagoa. Normalmente abarrotados e com uma fila de fora, não hospedavam uma alma viva sequer. Não tinha a carrocinha de Kibon por perto, nem sinal do moço que vendia tubos de bolinha de sabão para as crianças. Alguma coisa nos fazia crer que, naquela tarde, éramos todos órfãos. Particularmente, eu me senti uma verdadeira estrela solitária, embora contasse com a simpatia de todos os amigos presentes. 

Entramos na quadra, sortearam os times e me posicionei para o jogo. Começou. A quadra era só nossa. A temperatura era agradável. O Brasil havia perdido a maior partida de sua história, mas estávamos na Lagoa para manter a chama acesa dos nossos dias. 

Um chute, uma dividida, canela contra canela. Fogo contra fogo. Corríamos para animar o jogo e desarmar a tristeza de nossas vidas. Tudo ia bem até perto dos vinte minutos, quando houve uma disputa perto da área. Marco Antônio, meu velho amigo que tinha uma verdadeira patada atômica nos pés, acabou me acertando em cheio, no peito. Uma bomba! E a nossa pelada acabou exatamente ali. 

Poucos segundos depois, ainda sem recobrar os sentidos, o que me lembro é de ver meus amigos desesperados, tentando me acudir enquanto nos afastávamos involuntariamente. Alguém tentou me puxar, o outro chorava, alguém resmungava mas não teve jeito. Sofri um golpe fatal. Não morri, mas perdi meus amigos para sempre e isso me faz sofrer, a minha carreira foi encerrada também. Nunca mais participei de um jogo. Nunca mais voltei a ver meus amigos. Eles bem que tentaram me acudir, mas foram derrotados pela Lagoa Rodrigo de Freitas, e reconheço que mergulhar nela seria arriscado demais. Ainda tenho na memória as imagens deles indo embora de volta ao Corte do Cantagalo, cabisbaixos, chorosos mesmo. 

Desde então, a minha vida tem sido ouvir ao longe outros garotos gritando e brincando, às vezes rindo, às vezes brigando também. Há dias de silêncio e outros de muito barulho, geralmente nos fins de semana. Muitos gols, vitórias e derrotas, ídolos e vilões, para tudo se desfazer e se refazer. Ultimamente a pandemia espantou todos os jogadores. Torço para que voltem logo, me alegra. O que me dói mesmo é não poder mais participar da festa do futebol, de brincar, de ser a estrela do jogo. 


No meio da Lagoa Rodrigo de Freitas, em permanente flutuar, passo meus dias e noites. Ninguém me percebe, vivo entre braçadas imaginárias e o vaivém das pequeninas ondas. Tal como disse lá em cima, vivo em berço esplêndido mas também numa desilusão. Tudo o que eu queria era voltar ao jogo. Onde foram parar meus amigos? Será que estão todos vivos, com saúde? Espero que sim. 

Não sou de ferro, mas de borracha e por isso continuo aqui. E penso naquele dia, penso nos meus amigos. Penso no dia em que o Brasil era todo nosso, até que Paolo Rossi foi nosso vilão. Nos dias de sol e de chuva eu penso naquele jogo, naquela tragédia inesquecível. Eu sei o que é o futebol e o que é a solidão, mas ainda sonho: imagine se alguém passa de barco e me resgata? Voltar à quadra seria renascer. Mas, pensando bem, parafraseando Frank Sinatra, para quem teve uma vida como a minha, basta uma única vez. 

@pauloandel

(Baseado em fatos reais e livremente inspirado em “Das memórias de uma trave de futebol em 1955”, de Sergio Sant’anna)

OPERAÇÃO BOTÃO 1980

por Paulo-Roberto Andel


Comecei a colecionar botões. Alguns deles, os panelinhas, a gente encontra nas Lojas Americanas ou Brasileiras. Já os botões de galalite são mais valorizados e, claro, mais caros. 

Tem uma loja aqui pertinho de casa, aos pés da escada rolante que leva ao Teatro Teresa Raquel. Uma papelaria. Os botões são lindos, brilhantes, têm o escudo dourado de cada dia. Assim que conseguir juntar o troco do lanche, vou comprar um botão do Bahia, que é muito bonito. Será o Osni, que é atacante e bem pequenininho. Assim que sair a escalação do time do Bahia na revista Placar, é só recortar o nome dele, pegar um pedacinho de durex e colá-lo, de modo a não atrapalhar as palhetadas. O número 7 dá para recortar também, ou comprar decalques na papelaria – o problema é que a palheta costuma rasgá-los. 

Tem uns botões bem legais do São Paulo também. Quero comprar o Serginho, mas tem que ser um botão grande que nem ele e isso vai exigir maior economia.

Geralmente a gente joga debaixo da outra escada rolante do shopping, porque ela não funciona e ali fica vazio, sem atrapalhar ninguém. Normalmente no domingo de manhã. Eu, Luis, Augusto, Marcelinho. Às vezes o Chapecó aparece. Floriano também. Na saída do shopping, do outro lado da rua mora o Gordinho, que também joga muito. Sempre tem algum adulto olhando, devem achar legal. 

A bola não é bola, mas dadinho. Tem uma briga danada por isso: gente que só quer jogar com pastilha de War, ou que só aceita bolinha de feltro. Tem quem faça bolinha com miolo de pão. Nós gostamos do dadinho: o jogo fica mais rápido, mais real, os dribles também. 

Gramado oficial: Estrelão ou Xalingão, dependendo do mando de campo. Comecei jogando numa cartolina, eu mesmo desenhei as linhas, o meio de campo e a grande área. Depois minha mãe me deu um Estrelão. 

O goleiro é sempre feito com caixa de fósforos Olhão. Para muita gente, o melhor é colocar chumbo derretido dentro para dar peso e o goleiro não cair nunca, mas dá para fazer com moedas e arroz por exemplo, ou qualquer coisa que garanta a estabilidade do arqueiro. Os escudos a gente recorta na Placar também. Agora, a camisa do goleiro cada um faz de um jeito: todo preto, com fita isolante; colorido, com papel pintado à caneta, ou de uma cor só, com outra fita. São várias opções de nome: Leão, Wendell, Raul, País, Renato, Waldir Peres, Manga. 

O botão mais valorizado depois de um artilheiro é o becão, bem grandão e sempre em dupla. Eles evitam os gols, muitas vezes empilhados ao lado do goleiro. E como são grandões, dificilmente são driblados. Impõem respeito. E são caros, quase um lanche inteiro no Gordon da Avenida Copacabana ou no Sumol da Figueiredo Magalhães. Becão não pode ser qualquer um, tem que ter moral: Abel, Rondinelli, Edinho, Moisés. Tem o Renê também. Ah, o Alex do America, que é bem grandão. Geraldo, Gaúcho. Luís Pereira. Tem gente que recua o Chicão do São Paulo para ser becão, ou o Teodoro. Beto Fuscão, não dá para esquecer! 


É difícil conseguir botões de Pernambuco. Se tivesse do Sport, eu poderia batizar de Denô ou Roberto. Do Santa Cruz, Fumanchu e Nunes. Do Náutico, Chico Fraga. 

Importante dizer que o batismo do botão não necessariamente é atual: você pode escolher um nome do passado que não está mais no time, ou até algum que você queria que tivesse jogado na sua equipe, mas não aconteceu. Tudo é imaginação. Mas por aqui não tem jeito: todo mundo tem um Roberto Dinamite, um Zico, um Rivellino. Tita está muito badalado, Guina e Paulinho também. E quando surge um atacante do America, é sempre Luisinho Tombo. Do Corinthians, Sócrates e Palhinha. Do Santos, Juari e Pita. Da Portuguesa, Enéas e Tata. 

Na banca de jornal tem os botões da marca “É gol!”. É um pacotinho igual ao de figurinhas, que vem com três botões de plástico e os adesivos para serem colados, com a cara dos jogadores. Volta e meia têm os do Cruzeiro, Revetria e Joãozinho. Já consegui um Carlinhos do Fluminense. 

Na rua Santa Clara, há uma loja de brinquedos chamada Dom Pixote. Ela vende uns botões lindos, numa caixa plástica. São chamados de vidrilha. Eles são leves, ocos, com escudinho, número e faixas coloridas. A palheta é multicolorida, psicodélica. Vêm com duas bolinhas de feltro, mas a gente usa com dadinho do mesmo jeito. São feitos em São Paulo, da marca Brianezi. Aqui no Rio, os de galalite são feitos pela marca Bertiza, mas há outras. 

Se for verdade o que o Jornal dos Sports publicou hoje, vou economizar o lanche de hoje e amanhã. Parece que o Cláudio Adão vai jogar no Fluminense, então preciso reforçar o meu time. Tomara que sim. Já pensou como vai ser quando ele estrear no Maracanã pelo Flu? 

O DIA DO REI ARTUR EM 1983

por Paulo-Roberto Andel


Há exatos trinta e sete anos, num feriado de muita chuva no Rio de Janeiro, o Bangu cumpriu uma de suas atuações históricas contra o Flamengo, aplicando uma sonora goleada pelo placar de 6 a 2. 

Foi uma tarde-noite de Arturzinho, o maestro banguense da camisa 10. Marcou quatro gols na partida e se tornou um dos seis jogadores na história a conseguir tal feito em cima do Flamengo. Um deles foi antológico, da intermediária, encobrindo o pobre – e jovem – goleiro rubro-negro Abelha, à época substituindo Raul Plassmann. Aliás, é bom que se diga: imediatamente após o jogo, houve uma tentativa injusta de transformar Abelha no vilão máximo daquela partida, no único culpado, por ter cometido falhas clamorosas no clássico, o que na verdade não aconteceu exatamente com a tônica da ocasião. No terceiro gol, socou uma bola fraca e, na consecução do lance, escorregou na verdadeira lama da pequena área. E no sexto gol, rebateu um chute forte de Ado que Arturzinho, sempre ele, aproveitou. É certo que Abelha falhou, mas nem de longe foi o único culpado pelo massacre banguense: a imprensa esportiva foi unânime em afirmar que o Alvirrubro de Moça Bonita poderia ter feito tranquilamente mais três ou quatro gols, enquanto o time flamenguista jogava absolutamente atônito. Por sinal, a grande falha na partida, sem comprometer o resultado, foi justamente do goleiro banguense Toinho, soltando uma bola fácil para o ponta Robertinho descontar a goleada. E é bom que se diga: o Bangu tinha um timaço comandado pelo treinador – e eterno xerife – Moisés, além dos gordos “bichos” pagos pelo mecenas Castor de Andrade. Basta falar de feras como Mário, Marinho, Fernando Macaé e o jovem ponta-esquerda Ado. 

Mas, afinal, o que dera no Flamengo daquele momento? Depois de ganhar o tricampeonato brasileiro, veio um golpe fatal: a venda de Zico para a italiana Udinese, que abalou todos os flamenguistas do mundo. E a campanha rubro-negra na Taça Guanabara sofreu um forte abalo depois dos 3 a 0 sofridos do Botafogo, num clássico que derrubou o treinador Carlos Alberto Torres, toda a comissão técnica e até a diretoria do clube da Gávea. Apesar de ainda ter um timaço, o Flamengo acusou o golpe da perda do Galinho de Quintino. Mas se recuperaria em breve, conquistando a Taça Rio e disputando o triangular final do Campeonato Carioca de 1983. 

Curiosamente, na mesma competição o Flamengo viria a vencer o Bangu em outras três partidas, marcando seis gols e sofrendo um, mas mostrando que no futebol não se compensa uma goleada apenas com rigor matemático. Depois daquele massacre de 7 de setembro, o Fla fez 3 a 1 pela Taça Rio (já com um time remodelado pelas voltas de Tita, Cláudio Adão, mais as contratações de Lúcio e Edmar), 1 a 0 na final da própria Taça em jogo extra e, por fim, na última partida de toda a competição: 2 a 0 no triangular final de 1983, com os jogadores do Fluminense comemorando o título na Tribuna de Honra – o Tricolor havia empatado com o Bangu em 1 a 1 na primeira partida da decisão, para depois vencer o Flamengo por 1 a 0 com o famoso gol de Assis no último minuto. Ressalte-se que, naquele tempo, a vitória ainda valia dois pontos em uma competição profissional no Brasil. 

A antológica goleada do Bangu em cima do Flamengo foi vista por muito pouca gente no Maracanã: apenas 5.009 pagantes encararam a tempestade carioca no feriado da Independência para ver o jogo no estádio. Os flamenguistas saíram de cabeça quente, já os banguenses celebraram uma vitória eterna. Júnior, craque rubro-negro e substituto de Zico como armador do Flamengo naquele momento, já disse que, se pudesse apagar de vez uma partida em sua carreira, seria esta. E a ironia do destino escreveu suas linhas de forma magistral: muitos anos depois, o execrado Abelha faria sucesso como treinador de goleiros do japonês Kashima Antlers, ao lado do treinador… Zico. 

Uma coisa é certa: digam o que disserem, em 7 de setembro de 1983, o baixinho Arturzinho fez chover com seu futebol gigantesco. Era feriado da Independência do Brasil, mas o dia foi do Rei Artur.