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Paulo-Roberto Andel

ANAPOLINA, 40 ANOS DEPOIS

por Paulo-Roberto Andel


(Foto: Chandy Teixeira)

(Foto: Chandy Teixeira)

O futebol, essa paixão arrebatadora, possui um tempo próprio. Para qualquer um de nós, dez, vinte ou quarenta anos são uma longa trajetória. No apaixonante jogo de bola, não: parece ter sido outro dia. Os grandes lances, gols e acontecimentos ficam marcados com tinturas de eternidade. 

E como quarenta anos passam rápido, foi outro dia mesmo que uma linda zebra marcou a história do futebol carioca – que na verdade é fluminense mas nós, cariocas, chamamos assim por orgulho da nossa cidade. Tempos de um futebol poderoso no Rio de Janeiro, com craques nas seis grandes agremiações e ótimos jogadores nas equipes de menor investimento, proporcionando partidas disputadas e emocionantes. O Cariocão era tão bom que era a principal competição de futebol do Brasil, muito mais falada do que o Campeonato Brasileiro. Libertadores? Pfffffff. 

Numa quarta-feira chuvosa de 1980, no bravio Estádio Atílio Mariotti, Serrano e Flamengo jogaram pelo segundo turno do Estadual daquele ano. E este é um jogo que nunca mais foi esquecido. A vitória do querido clube petropolitano por 1 a 0 ainda é cantada e decantada por muitos que adoram o futebol daquele tempo. Todo mundo que hoje tem mais de cinquenta anos e gosta de futebol já ouviu falar de “Tetranapolina”, expressão jocosa que mistura o fim do sonho do tetra campeonato carioca do Flamengo com seu algoz, o ponta-esquerda Anapolina. 

Foi uma noite marcante por muitos motivos. Primeiro, porque a derrota do timaço rubro-negro, com nomes como os de Zico, Tita, Adílio, Luis Pereira, Júnior e Leandro, foi completamente inesperada, porém justa. Segundo, porque naquele jogo um grande nome do futebol brasileiro despontou nacionalmente: o do goleiro Acácio, que defendeu o possível e o impossível, abrindo o caminho para se tornar um dos grandes nomes do Vasco. 


E terceiro, pela trajetória chapliniana do herói da partida: Anapolina só voltaria a campo mais uma vez pelo Serrano e encerraria a carreira, não por vontade própria mas pela necessidade de um trabalho mais estável. Deixou o futebol, virou garçom, depois mecânico e, por fim, motorista de caminhão. Teve uma vida simples e batalhadora, mas nunca mais foi esquecido, ainda que tenha trocado seu apelido nacionalmente famoso pelo de Cerqueirinha, diminutivo de seu sobrenome. Elimar Cerqueira, o herói de um jogo só. Ah, e a cereja final do bolo: Anapolina era torcedor do Flamengo. Mas por que Anapolina? Elimar era egresso do time goiano e, nos treinos do Serrano, quem não sabia seu nome dizia “Chama lá o Anapolina”.

Naquele Serrano e Flamengo teve de tudo: chuva, frio, neblina, muita luta, pouco futebol e um gol inesquecível. O resultado eliminou o fortíssimo time da Gávea da disputa do título estadual: o Vasco acabaria sendo campeão do segundo turno, fazendo a final do campeonato com o Fluminense, decidida por um gol de falta de Edinho a favor dos tricolores. E é o recorde de público da história do Estádio Atílio Mariotti, com 14.998 torcedores presentes, em sua maioria avassaladora de flamenguistas. No fim do jogo, uma cena se tornou inesquecível: emocionado, um torcedor do Serrano atravessou o gramado enlameado de joelhos, comemorando como se fosse um título – e, pensando bem, foi. 

Apesar de todo o sucesso que obteve nas últimas quatro décadas, o Flamengo não conquistou um tetracampeonato no Rio, comprovando a força do resultado daquele dia. Já o modesto Serrano luta para voltar aos seus dias de glória na primeira divisão. 

Anapolina morreu em 2013, ainda jovem, mas quem disse que ele não vive na imortalidade? Quarenta anos depois, seu feito é respeitado e lembrado. O destino o escolheu: ele nem era titular e acabou escalado mais para ajudar na marcação. Acabou escrevendo uma linda página do nosso futebol, que permanece muito viva. Tetranapolina! 

@pauloandel 

SUDERJ INFORMA

por Paulo-Roberto Andel


Às vezes algumas pessoas perguntam porque tantas outras gostam muito de futebol. 

Para mim, não é simples explicar porque praticamente já nasci dentro disso. Então faz parte da minha vida. 

Tem muita, mas muita coisa dentro e no entorno de uma partida de futebol. Muito além do esporte. 

Milhões de pessoas no mundo e bilhões no planeta têm no futebol às vezes a sua única distração, o seu único alívio. O jogo que nunca termina. Você perde hoje, recobra as esperanças para o próximo jogo, o próximo jogo. 

Único esporte em que o mais humilde pode derrubar o mais poderoso. 

Jogar bola, botão, ver jogos, games, futebol de preguinho, totó. 

Quando era criança, frequentei um lugar chamado Maracanã. Estive por lá durante 35 anos consecutivos e vivi tardes e noites da pesada. Certamente essa vivência impactou toda a minha vida para sempre. Eu olhava as pessoas rindo ou chorando, as bandeiras, a bola chutada para o alto que se perdia em meio aos refletores, os garotos feito eu, alguns bem ricos, outros bem pobres, todos juntos vendo o jogo. 

Sem o Maracanã eu teria sido outra pessoa, infinitamente pior. Deitei no chão da geral e fiz do desenho da marquise do Maracanã o meu disco voador. Vi partidas no degrau mais alto da arquibancada e me sentia feliz com aquele mar de gente. Ganhei, perdi, aprendi. 

Durante oito anos, ser aluno da UERJ me fez passar pelo Maracanã mais de duas mil vezes, afora os dias de jogos. Até hoje, mesmo com tudo mudado, chegando na Praça da Bandeira eu tenho a mesma sensação de quando meu pai me puxava pela mão, há mais de quarenta anos. Anos depois, eu é que puxei a mão do meu irmão.

Nunca vi o jogo como algo entre inimigos. Pelo contrário: futebol não existe sem o outro. No futebol o adversário é tudo. Já vi muitas partidas com amigos que torcem para outros times. Noutras, não teve jeito: cada um luta pelo seu. 

Quantas vezes não fui triste para o Maracanã e passei duas horas de alívio? Muitas, nem sei dizer, talvez a maioria delas. 

Apesar do futebol brasileiro estar mal dar pernas, ainda gosto muito do jogo. Mesmo com o meu Maracanã assassinado pela ganância corrupta, ainda vou ao novo em busca de vestígios. Às vezes encontro com amigos, noutras fico sozinho do mesmo jeito que fiz muitas vezes quando era garoto. 

O tempo passou muito rápido. Se pudesse escolher no que eu gostaria de voltar no tempo, seria em três vértices: ter minha família de volta, voltar a jogar campeonatos de botão e voltar ao Maracanã, o velho Maracanã de jogos abarrotados e outros muito esvaziados. Às vezes ficar uma ou duas horas em silêncio antes do jogo começar. 

Podia voltar ainda mais no tempo e escutar Jorge Curi com João Saldanha no velho Telefunken de luzes verdes. Eram tempos de Edinho e Pintinho, Moisés e Renê, Junior e Uri Geller. Mendonça e Ademir Lobo, Luisinho e Silvinho. Jorge Demolidor. O treinador Velha. Zé Duarte no Rio por algum tempo. Oto Glória. Othon Valentim. Jorge Vieira. 

Aquelas luzes piscando num placar de lâmpadas que não deve nada a nenhuma tela de computador da última geração, e que os garotos arregalavam os olhos ao ver o desenho do escudo do time do coração, mais a escalação das equipes. 

Hoje, alguns dos meus craques e heróis do gramado estão mortos, outros ainda estão por aí. Os grandes locutores e repórteres. Os cronistas. As rádios. Os líderes de arquibancada. Os árbitros. Mas é como se todos estivessem vivos demais. Penso diariamente em muitos deles, é como se continuassem aqui. 

É como se eu ainda tivesse dez anos de idade e ficasse louco para saltar do ônibus e ver meu pai comprar nossos ingressos no guichê, porque aquilo era a certeza de que logo estaríamos num espetáculo de luzes e gentes para todo lado. O que me move agora é isso: eu ainda tenho dez anos de idade, mesmo que o corpo e a lógica desmintam. E quero ter dez anos para sempre, até quando o fim vier. 

Miranda desarmando Mendonça, Assis e Washington pulando e trocando palmas. 

Cuidado com Luizinho das Arábias. Atenção aos cruzamentos de Perivaldo, do Rodrigues Neto, do Capitão Carlos Alberto Torres também. Tobias agarra demais. 

Dener é um perigo, senhores! 

No placar do Maracanã, uma narração inesquecível: “Suderj informa!”, obra de arte de Victorio Gutemberg. 

@pauloandel

PELÉ 80

por Paulo-Roberto Andel


Meio século depois de comandar o maior time de todos os tempos – a Seleção Brasileira tricampeã mundial em 1970 -, Pelé completa 80 anos. 

Desde a vitória inesquecível no México, jamais foi superado, sequer igualado ou, pelo menos, tendo um concorrente em seu encalço, ainda que a cem ou duzentos metros de distância. 

De lá para cá, vimos Cruiyff, Rivellino, Maradona, Rummenigge, Sócrates, Platini, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, CR7, Zidane, Messi, Neymar e mais um exército de super craques fantásticos, mas nenhum deles sequer ameaçou no o posto do Rei do Futebol, o Atleta do Século XX. 

Ao contrário da praxe de um país que, a cada quinze anos, esquece o que se passou a cada quinze anos, a carreira de Pelé pode ser vista e revista de muitas formas e com franca digitalização: revistas, filmes, documentários, vídeos, livros e muitos, muitos gols e jogadas. Só desconhece sua obra quem quer. 

Não é preciso concordar com as posições políticas nem com as questões familiares de Pelé – ambas dignas de crítica livre – para reconhecê-lo como o maior jogador de futebol de todos os tempos. E sua arte não pode ser diminuída. Não vale apenas para Pelé, mas também para Pablo Picasso, George Gershwin, Tom Jobim, Basquiat, Andy Warhol, Charles Chaplin, Charles Bukowski, Jack Kerouac, Paul McCartney, Madonna, Janis Joplin, Susan Sontag, Indira Gandhi, Glauber Rocha e uma antiga lista telefônica imensa de personalidades geniais que foram – e/ou são – seres imperfeitos, simplesmente porque a perfeição plena de um ser humano não existe. Você mesmo(a) que lê estas linhas, já cometeu erros que considera até graves, mesmo que não tenham resultado na morte de ninguém? Eu cometi, reconheço e alguns deles me doem diariamente, mesmo quando eu não fui diretamente responsável, assim como algumas das pessoas que mais admirei e admiro já cometeram, inclusive contra mim. Todas estão perdoadas. Nenhuma delas foi ou é Pelé. 


Gostaria de compartilhar uma pequena história de um colega, hoje jornalista consagrado, iniciante há duas décadas. Ao saber que Pelé desembarcaria nas Laranjeiras para uma reunião no Palácio Guanabara, se mandou para lá cedinho e abordou o Rei quando não havia um repórter por perto, em pleno gramado tricolor. Foi atendido com toda a gentileza em plena alvorada e, quando os seguranças chegaram perto para intervir, Pelé imediatamente pediu para que se afastassem e continuou atendendo o jovem e desconhecido repórter. 

O maior craque de todos os tempos levou o nome do Brasil por todos os quatro cantos do mundo, num tempo em que o país procurava seu lugar no planeta. Seus números falam por si. Voltando às referências artísticas, muitos dizem que Nelson Rodrigues – outro brasileiro genial e que também não está isento de críticas – era o nosso Shakespeare. Outros dizem que Miles Davis – outro monstro com histórias controversas – foi o Pablo Picasso do jazz. Outros dizem que o maravilhoso Tom Jobim – que hoje seria apedrejado – foi e é o nosso George Gershwin. Pois bem, dentro das quatro linhas Pelé foi a soma de todos esses artistas geniais e mais um pouco. Carregando consigo a tradição de heróis como Friedenreich e Zizinho, ele desenhou uma carreira sem precedentes na história do futebol e hoje, quase quarenta anos depois, todos alimentamos o sonho de ver algo parecido com Pelé em campo. É difícil imaginar que ele possa ser concretizado. Pelo menos o Google e o YouTube aí estão para provar tudo que foi realizado pelo Rei.

“Vê-lo jogar, bem valia uma trégua e muito mais. Quando Pelé ia correndo, passava através dos adversários como um punhal. Quando parava, os adversários se perdiam nos labirintos que suas pernas desenhavam. Quando saltava, subia no ar como se o ar fosse uma escada”, escreveu Eduardo Galeano, um Pelé da literatura, em seu espetacular livro “Futebol ao sol e à sombra”. 

Antes disso, em 1958, escreveu Galeano: “Pelé magricela, quase menino, incha o peito para impressionar e ergue o queixo. Ele joga futebol como Deus jogaria, se Deus decidisse se dedicar seriamente ao assunto. Pelé marca encontro com a bola onde for e quando for e como for, e ele nunca falha. 

Até pouco tempo, engraxava sapatos no cais do porto. Pelé nasceu para subir, e sabe disso.”

O AMERICANO DE SANTO CRISTO

por Paulo-Roberto Andel


Naquele tempo os times só conseguiam dinheiro se jogassem. A arquibancada era a principal fonte de receita financeira. E por isso, em plena Copa do Mundo de 1982, com a Terra inteira olhando para Sócrates, Falcão e companhia, o Maracanã abriu várias vezes para as partidas do Torneio do Campeões de 1982, praticamente uma versão reduzida do Campeonato Brasileiro.

Gostando de futebol e querendo ver outras partidas além das do meu Fluminense, o que me restava? Administrar a mesada e dividir direitinho para poder ver o máximo de jogos na geral, o setor mais popular e barato do Maracanã. Foi o que fiz. 

Além do Flu, vi também o Vasco num 0 a 0 com o São Paulo. Jogo ruim para os vascaínos num raro domingo à noite – antigamente só no Sul é que se tinha partidas neste horário -, vaias e um pênalti perdido pelo poderoso artilheiro Roberto Dinamite, cuja cobrança vi atrás do gol, bem de pertinho como a geral permitia. Se era difícil enxergar os lances, por outro lado a gente tinha a sensação de que fazia parte do jogo, de que estava dentro do campo. Quando o gol saía, lá estava a gente na televisão feito os figurantes mais felizes do mundo. 

Eu gostava do America. Gostava bastante. Talvez fosse meu segundo time, talvez eu tivesse ficado encantado pelo bandeirão vermelho que abriram num empate com o Flu em 1979. E então veio um jogo contra o Atlético Mineiro, decisão de vaga na competição. 

Tinha um garoto que era fanático pelo America. Estava sempre com sua camisa e escudo rubros, bandeira na mão, boné e radinho. Gostava de ficar na geral entre o escanteio invertido à direita da Tribuna de Honra e a primeira trave. Num jogo vazio nos conhecemos e vimos algumas partidas juntos. Eu tinha treze anos, ele já devia ter uns dezesseis por conta do bigodinho que usava. E torcia, torcia, torcia demais. Eu achava bacana que ele torcesse tanto por seu time, que não ganhava títulos há tempos, era bonito aquilo. Com o tempo, entendi que todos querem ser campeões mas torcer não tem a ver com a obrigação de títulos e sim com a paixão. 

Oi. Beleza? Legal você estar aqui. Vamos torcer. Sangueeeeeee!

Jogo duro, pouca gente, frio de domingo. Quando as partidas começavam às cinco da tarde, geralmente o segundo tempo tinha cara de noite. Não foi diferente. 

Meu amigo com caras e bocas de sofrimento atroz, eu torcendo pelo America, por ele, pelas pessoas que ali estavam. O Flu ia jogar noutro dia, podia esperar. Ali era tudo ou nada para o Diabo da Campos Sales. Zero a zero, zero a zero. Zero a zero. 

No último minuto, aconteceu um bate-rebate na área. Alguém furou.  A gente estava no lugar de sempre: escanteio invertido à direita da Tribuna. Elói chutou. Francisco Chagas Eloia, não esqueço o nome. Gol. Gol! Gol de Elói no último minuto, America classificado.

Meu amigo me deu um abraço, outro e começou a chorar. Eu nunca tinha visto um garoto chorar de alegria, nem eu mesmo tinha chorado. Chorou muito e gritou muito quando o árbitro logo encerrou o jogo. Foi uma lição para mim: eu me sentia tão triste porque o meu time mal tinha dois anos sem título e, ali, o meu amigo que nunca tinha visto uma volta olímpica mostrava todo o seu amor pelo seu grande clube. Então aprendi que, no futebol, títulos são importantes mas não são eles que determinam o amor de alguém por aquele jogo fascinante que, há dois séculos – e desde muito antes – mexe com a alma da gente pelo mundo inteiro. 


Havia pouca gente no Maracanã, mas lembro das pessoas gritando muito na saída, tanto no corredor soturno da geral quanto na rua. Trocamos outro abraço. Ele me agradeceu porque via os jogos sozinho e, segundo sua opinião, quando nos conhecemos, eu tinha trazido sorte para o nosso America. Eu devia ter contado a ele que era Fluminense, mas acabei não falando. Então nos despedimos e ele seguiu para a estação de trem, para depois chegar em Santo Cristo. Estava muito feliz. Qual será seu nome? Não sei dizer.

Virei à direita na Avenida Maracanã e, quando passei pela majestosa Estátua do Bellini, quase não havia gente, exceto um vendedor de cachorro quente e umas três pessoas. Então resolvi fazer um lanche antes de atravessar a rua, pegar o 434 e fazer uma viagem até Copacabana. 

O America seguiu em frente e acabou campeão, Campeão dos Campeões. A Seleção, que era o grande assunto daquele Brasil, acabaria eliminada pela Itália. Ainda voltei muitas e muitas vezes à geral, aí praticamente só pelo meu amor tricolor. Um dia, a força da grana e da ganância destruiria o palco dos meus sonhos de garoto. 

Tomara que meu amigo americano de Santo Cristo continue vivendo aquele sonho permanente do futebol, o choro, o gol. As coisas estão difíceis para o America mas o sonho não pode morrer. Estão difíceis para o futebol brasileiro na verdade. O Maracanã era o sonho de dois garotos abraçados, que nem precisavam torcer pelo mesmo time para saber o que é que um jogo significava. 

Lembro dele indo para a estação de Derby Club. Faz muito tempo. 

Nunca mais o vi.

O MARACANÃ DOS SONS INCONFUNDÍVEIS

por Paulo-Roberto Andel


Para quem viveu o que foi o Maracanã entre 1950 e 2010, e mais especialmente entre os anos 1970 e 1980, as emoções não se limitavam ao verdadeiro carnaval de imagens fantásticas, que iam desde o colorido das torcidas até às maravilhosas jogadas que ficaram na memória, mas também passavam por uma experiência sonora fascinante. 

Tudo começava bem antes de um clássico, por exemplo. Se você chegasse mais cedo e ficasse no corredor das arquibancadas, ali por volta das 14h, podia ouvir em intervalos regulares os gritos da multidão que chegava nos trens, desembarcando na estação Derby Club e formando um maravilhoso desenho de gente vindo e cantando, gritando, assobiando, fazendo da chegada ao estádio imortal uma verdadeira catarse. 

Já nas arquibancadas, muitas vezes lotadas a partir das 15h, o espetáculo musical ficava por conta do samba. Muito samba, às vezes com a participação de baterias de escolas consagradas. Era a pulsante trilha sonora do pré-jogo e das preliminares, também acompanhada de gritos de guerra (pacífica) das torcidas. 

Chegando às 16h45, tudo mudava: o Maracanã era tomado por certo silêncio de expectativa enquanto dezenas de bandeiras se alinhavam nas arquibancadas, tudo no aguardo da entrada dos times em campo. De repente, com a subida dos craques ao gramado, precedidos pela garotada correndo e se empilhando na entrada dos túneis, a arquibancada explodia: cantos, percussões, fogos, luzes, papel picado, papel higiênico, pó de arroz, fumaça colorida, balões e o ruído ensurdecedor de festa. 

Durante o jogo, um barulho era inconfundível: “UUUUUUUHHHHHHH”, quando um chute de fora da área passava perto do gol ou era espalmado pelo goleiro para escanteio. A onomatopeia coletiva ia com toda força na cobertura de concreto no Maracanã e voltava, fazendo um eco inesquecível. Se saísse gol, bem, não precisava nem falar: era o orgasmo do futebol, exceto para o time que o levasse. 

Durante muitos anos, o som abafado dos alto-falantes teve uma assinatura infalível, a do locutor oficial do Maracanã Victorio Gutemberg. Era dele o bordão “SU-DERJ IN-FORMA” com as substituições em campo, renda, público e jogos relevantes disputados noutros lugares. No intervalo, ele vinha com “LO-TE-RIA”, passando os resultados de momento das partidas da Loteria Esportiva, até então o jogo mais popular do país. Gutemberg sabia dar o tom exato das partidas: certa vez, num Vasco x Fluminense de 1980 no primeiro turno, ao mesmo tempo o Flamengo jogava contra o Bangu em Moça no Bonita. O Flu vencia o Vasco por 2 a 1, enquanto o jogo do Flamengo interessava a ambos os times. Perto do fim da partida, Victorio Gutemberg entrou com “SU-DERJ IN-FORMA: em Moça Bonita…”, fez alguns segundos em silêncio e anunciou “Mi-ran-di-nha” para depois explodir “BAN-GU 1, Fla-mengo 0”, com tricolores e vascaínos se esquecendo do próprio clássico para comemorar o gol alvirrubro. 

E justamente nos finais dos clássicos é que surgia uma das maiores experiências sonoras do Maracanã: todo mundo ia com seus radinhos de pilha e cada rádio tinha uma vinheta de minutagem, geralmente usada nas transmissões de cinco em cinco minutos, mas executada a cada 60 segundos depois dos 40 minutos do segundo tempo. Imagine mais de cem mil pessoas com a massa sonora das rádios Globo, Tupi e Nacional também batendo na cobertura de concreto e reverberando em toda a arquibancada? Uma mistura de samba potente, Kraftwerk e Azymuth que só o maior estádio do mundo sabia proporcionar. 

Outro ruído sempre presente, mas perceptível apenas nos jogos mais vazios, não vinha das arquibancadas mas da parte de baixo: a velha e saudosa geral, que já gerou estudos, documentários e celebrou o espaço mais popular do Maracanã. Mas isso fica para outra história; afinal, o eco fortíssimo dos sinalzões das rádios, bem descrito no penúltimo parágrafo, ainda está ecoando nestas linhas com força. E os geraldinos merecem uma coluna só para eles.