O grande Bria, pai do querido Antonio Henrique Bria Bria, faria anos nesta quinta-feira (8). Foi um dos maiores jogadores da história do Flamengo e até hoje é lembrado pelos torcedores, sobretudo os mais antigos. A seguir, uma breve biografia do grande craque do passado
por André Felipe de Lima
O repórter perguntou: “Que conseguiu você do futebol, Bria?”. Modesto Bria, centromédio extraordinário e ídolo do Flamengo nos anos de 1940, onde formou uma das mais famosas linhas médias da história ao lado de Biguá e Jayme de Almeida, respondeu com a humildade digna de um sábio tibetano e do próprio nome que assina: “Materialmente, quase nada. Apenas um terreninho em Teresópolis. Mas no Brasil obtive muita coisa: amigos que dinheiro algum no mundo pode comprar, um bom clube para trabalhar e um ótimo filho, Antônio Henrique, de 11 anos, que é brasileiro”.
Se os almanaques e pesquisas sobre a história do Flamengo estiverem corretos, Modesto Bria foi o primeiro craque paraguaio a vestir o manto rubro-negro.
Embora dissesse em entrevistas ser apenas “regular”, era um volante clássico, de toque refinado, que ligava a defesa ao ataque com passes precisos, a maioria deles nos pés de Zizinho, meia mais avançado daquele sensacional time tricampeão do Flamengo de 1942 a 44. Bria era peça-chave naquela engrenagem campeã. “Sempre fui centromédio. Não sabia jogar em outra posição”. Foi o jogo da final do campeonato de 1944, o que garantiu o “tri” sobre o Vasco, que mais emocionou Bria. “Vencemos o Vasco por 1 a 0, gol de Valido. Fiz a maior partida da minha vida”.
Aquele Flamengo era ofensivo à beça. Derrubara até mitos de que zagueiro não passava da linha do meio de campo para atacar o adversário. Balela, diria Bria. Domingos da Guia — talvez o maior de todos os beques que já produzimos no Brasil — subia bastante ao ataque. Era o Bria quem dava a cobertura, permanecendo na zaga. Deu tão certo a jogada que o Flamengo foi tricampeão do Rio, sem rivais à altura.
Nascido na paraguaia Encarnación, no dia 8 de março de 1922, Modesto Bria começou a jogar futebol em 1938, com 16 anos, no time amador do Nacional, na capital paraguaia, seu time do coração na infância. No ano seguinte, tornou-se profissional. Órfão de pai e arrimo da mãe, da irmã e do irmão, estudava para trabalhar no comércio. Não tinha muitas pretensões com o futebol. Isso, na adolescência. Mas o rapaz cresceu e mostrou a que veio. Era bom de bola. Defendeu a Seleção do Paraguai duas vezes. Permaneceu no Nacional até 1943, até o compositor e locutor esportivo Ary Barroso o descobrir durante uma viagem ao Paraguai. “Um dia [bendito dia!] Ary Barroso foi a Assunção. Viu-me jogar e ficou tão entusiasmado comigo que não teve dúvidas”.
Quem apresentou Bria ao Ary Barroso foi o tenente-coronel Sylvio Santa Rosa, adido militar no Paraguai e dirigente do Conselho Nacional de Educação Física local. Ary, que fazia um show no Teatro Nacional de Assunção, deu uma escapa durante a folga do palco e foi ver Modesto Bria jogar [e bem à beça!] pelo Paraguai contra a Argentina. O placar terminou 2 a 1 para o escrete de Bria. Ary encantou-se, invadiu o vestiário e o intimou a substituir o argentino Volante, que estava se aposentando no Flamengo. Pegaram um pequeno avião e chegaram ao Rio no dia 27 de agosto de 1943, uma sexta-feira.
Ao descer no Aeroporto Santos Dumont, Bria foi surpreendido por um mar de torcedores. Abraçaram o craque, beijaram e tiraram fotos ao lado dele. Bria já era ídolo mesmo sem entrar em campo. “Cheguei ao Rio e fiquei maravilhado com as belezas da cidade. Estou encantado com o pessoal do Flamengo. Estava cansado sexta-feira e apenas tomei meio litro de leite e dormi. Ontem [sábado], percorri toda a praia do Flamengo e vim à cidade [Centro do Rio] e à redação de A Noite”, disse Bria ao repórter do jornal, no dia seguinte a chegada ao Rio.
Mas o que poucos sabem é que a espetacular chegada de Bria ao Rio não foi mérito do Ary Barroso, como até hoje muitos acreditam. Antes mesmo de o compositor e flamenguista de quatro costados conhecer o craque, o Flamengo já nutria interesse por Bria, como revelou reportagem do jornal A Noite, de 31 de agosto de 1943, na qual um outro Ary [Fogaça], alto funcionário dos Correios e torcedor fanático do Flamengo, recebeu de um amigo de Assunção recortes de jornal que exaltavam o jogador. Ele não pestanejou, falou com o técnico Flávio Costa e enviou os recortes de jornais a Alfredo Curvelo, cartola do Flamengo. Um repórter do jornal A Noite acompanhou o caso e chegou a redigir o texto de um telegrama de Ary Fogaça a Santa Rosa, de quem o funcionário dos Correios era muito amigo. Santa Rosa veio ao Rio e foi apresentado a Curvelo.
Encantado com o que lera e ouvira sobre Bria, Curvelo e o presidente do Flamengo, Dario Melo Pinto, autorizaram Santa Rosa a iniciar as negociações com o Nacional. Ou seja, a vinda de Bria com Ary Barroso foi apenas fruto de uma reportagem sensacionalista do matutino O Jornal, cuja seção de esportes estava sob o comando do compositor e locutor esportivo. O espetáculo marqueteiro promovido por Ary Barroso deu certo. Centenas de torcedores foram ao aeroporto receber o jogador e a versão falaciosa de que Ary Barroso trouxera Bria “no grito” prevalece até hoje. “Foi o que de mais emocionante poderia ter havido. O Flamengo teria que enfrentar o Fluminense, nessa semana. O jogo era no domingo e praticamente estávamos em cima da hora. Viemos de teco-teco, um aviãozinho de apenas três lugares, eu, Ary Barroso e, obviamente, o piloto”.
O craque custou ao rubro-negro noventa mil cruzeiros entre passe e luvas. Dinheiro pra chuchu naquela época, que obrigou ao Flamengo recorrer a um empréstimo do Banco do Brasil, cuja última parcela foi paga somente em janeiro de 1944.
O passe de Bria estava bastante concorrido. Além do Flamengo, o Gimnasia y Esgrima, da Argentina, queria o centromédio. O Nacional recusou a oferta por considerá-la baixa. Mas outro argentino quase atropelou o clube brasileiro. O River Plate oferecera 150 mil cruzeiros. Mas como a remessa do sinal demorava a chegar por conta de entraves burocráticos, o Nacional optou pela oferta do Flamengo.
No dia 12, Bria estreou contra o Fluminense, em jogo que terminou empatado em 2 a 2, Perácio marcou os dois gols do rubro-negro, com Invernizzi e Carreiro descontaram para o tricolor. A crônica esportiva escreveu que Bria jogou bem, com passes precisos, ótimo posicionamento, mas com muito trabalho para marcar o meia Tim. Não era para menos. Tim foi um jogador mágico.
Outra informação pouco conhecida é que o coronel Santa Rosa tinha outro endereço programado para Bria no Rio de Janeiro: as Laranjeiras. A sorte ajudou, emperrando a ambição milionária do River Plate e o ligeiro Ary Barroso tratou logo de embarcar o craque em um teco-teco rumo à Gávea.
Bria pensara jogar apenas dois ou três anos pelo Flamengo. Mudara radicalmente de ideia. Descobria ser a Gávea o seu segundo lar. Construíra em seguida uma linda família. Por dez anos defendeu o Flamengo. O amor pelo clube preto e vermelho o completava na alma. Foram registrados 360 jogos pelo rubro-negro e oito gols contabilizados. Chegou a ter o passe emprestado ao Santa Cruz de Recife, em 1952, mas a paixão pelo Flamengo era mais forte. Voltou à Gávea no mesmo ano para encerrar a carreira, cedendo a posição para outro magnífico volante da história do Flamengo: Dequinha. “Era um tempo bom. A vida era mais tranquila e o jogador vivia mais. Nas vésperas dos jogos recebíamos a visita de amigos cantores que apareciam espontaneamente para nos ajudar a superar a expectativa. Orlando Silva, Ciro Monteiro e muitos outros cantores rubro-negros da época ficavam conosco até tarde. Eu, Biguá, Zizinho e Pirilo praticamente morávamos na concentração”.
Atendendo ao pedido do então presidente do Flamengo Gilberto Cardoso, Bria, que estava distante do futebol após pendurar as chuteiras, tornou-se treinador dos juvenis em 1955 após uma breve passagem pelo Cerro Porteño. Conquistou um tricampeonato carioca da categoria dirigindo a garotada. Em seguida, foi auxiliar do patrício Fleitas Solich e de Flávio Costa no time principal. Treinou o Ipiranga, de Salvador, mas foi uma página decepcionante para ele. “Fizeram-me pedir um ano de licença ao Flamengo e no fim de dois meses puseram-me no olho da rua, sem respeitar nenhum dos compromissos assumidos. Sorte que imediatamente o Botafogo de lá mesmo da Bahia contratou os meus serviços e não precisei voltar correndo e pedir para o Flamengo interromper a licença já concedida. E estou certo de que os dirigentes do Botafogo baiano não se arrependeram do apoio que me deram, em momento tão difícil”.
Tempos depois, foi um dos responsáveis pela formação de Zico, o maior ídolo do Flamengo em todos os tempos. “Fui eu que busquei o Solich no Paraguai. Busquei também o Benítez, Garcia e Reyes, outros paraguaios que se deram bem na Gávea”. Dizia ter sido Zizinho o melhor jogador que viu jogar pelo Flamengo. Abaixo dele Gérson e Zico. “Na minha posição, o que mais me agradou foi Dequinha, exatamente meu substituto quando parei de jogar”.
Após a morte da esposa Ivone, Bria casou-se novamente. Antônio Henrique é o único filho do primeiro casamento. “Meu filho é técnico em computação eletrônica e trabalha para uma das grandes organizações bancárias do Brasil. Ele e minha nora me deram uma segunda Ivone, a minha netinha. E olhe que podem me chamar de vovô babão como quiserem, mas duvido que exista uma menininha tão linda em todo o universo como a minha netinha”, contou Bria, em entrevista concedida em 1971 para a revista especial “Grandes Clubes Brasileiros/ Flamengo”.
Teve mais dois filhos. Morava em Copacabana e mantinha um sítio em Bananal, no interior paulista. Foi um dos funcionários mais antigos do Flamengo. Trabalhou no clube por mais de 50 anos. Seu prazer era passar o dia na Gávea. Quando podia, ia ao consulado do Paraguai saber das notícias da terra natal. Ao repórter Cláudio Arreguy, confessou em 1992: “Sou meio brasileiro e meio paraguaio. Se as duas seleções se enfrentam, fico dividido. Acabo torcendo só um pouco para o Paraguai. Sou primo-irmão do presidente do Paraguai [general Andrés Rodriguez, que se manteve no poder entre 1989 e 1993]. Nossas mães eram irmãs. Foi minha mãe quem o colocou no quartel. Mas não temos mais contato nenhum. Aliás, há seis anos não vou lá”.
Sentia saudade dos tempos de jogador. Confessava isso aos repórteres e aos mais próximos. “Muitas, mas muitas saudades mesmo. Gostaria de poder retornar à idade que tinha para poder jogar futebol”. Assim Bria resumia sua maior paixão: “O Flamengo é uma vida. Ser Flamengo é um nó na garganta, e nada mais”.