por André Felipe de Lima
Sempre que alguém citava o Merica, comentava-se — antes de mencionar o futebol que ele jogava — a notória “beleza” do volante. Liminha, que o antecedeu na meia cancha do Flamengo e estava prestes a pendurar as chuteiras, chamou Júnior em um canto, e confidenciou: “O Flamengo encontrou finalmente o jogador para me substituir: é esse Merica. E ele apresenta uma grande vantagem em relação a mim: sabe dar passes longos, que nunca foram o meu forte”.
Viu? Merica era bom de bola, sim. Não era um craque. Fama de ídolo? Sucesso entre as torcedoras? Aí é que não rolava mesmo. Mas era xodó da torcida, sim. Quem torcia pelo Flamengo por voltar de 1976 e 77 teve a mesma impressão do Liminha. O tal Merica, aquele baixinho feio pra burro, que jogava no modesto Atlético de Alagoinhas, na Bahia, era mesmo bom volante. Marcava bem, desarmava e saía para o jogo. Estava longe de ser um Carpegiani ou Andrade, que o sucederam por ali, mas dava (e muito!) para o gasto.
Valdemiro Lima da Silva, o intrépido Merica, nasceu no dia 13 de setembro de 1953, em Acupe, cidadezinha pacata do distrito Santo Amaro da Purificação, do interior baiano. Entre 1975 e 1978, foram 175 jogos com camisa do Flamengo, oito gols marcados, 105 vitórias e somente 24 derrotadas. Com Merica em campo, ficava mais difícil para os atacantes adversários chegarem à defesa rubro-negra. Mas o bom baiano baixinho, e para lá de porreta!, era arretado, e ia para o ataque, quase sempre caindo pela lateral direita. Levava porradas à vera, mas não se intimidava.
Uma vez, em um Fla-Flu de 1976, lá pelos 20 minutos do primeiro tempo, Doval, o gringo, teve a bola “roubada” por Merica, que foi, como de costume, pela direita, avançando sem parar. Deixou Paulinho para trás, porém viu pela frente um menino alto e parrudo. Era o zagueiro Carlinhos. Os dois trombaram. Desabaram. Carlinhos ficou mal. Falta de ar. O médico tricolor Durval Valente ficou sem saber o que fazer, porque o craque Doval também se queixava com ele de dores no tornozelo. Meia completamente rasgada. Foi rescaldo da dividida segundos antes com Merica. O médico do Flamengo Célio Cottechia quis entrar em campo para socorrer Merica, que sob o indefectível sotaque do interior baiano, disse: “Tô bem, dotô, num precisa entrá não”.
No banco de reservas, a rapaziada do Flamengo caiu na gargalhada. O técnico Carlos Froner, todo prosa, vira-se para o massagista, e emenda: “Não disse que ele é dos bons? É de jogador assim que eu gosto”. Hoje em dia, jogador assim, como foi Merica, que recolhia a dor, levantava e jogava, é artigo de luxo. Cai-cai não fazia parte do seu estilo. Aquele Fla-Flu em que jogou à beça foi o vigésimo jogo seguido pelo Flamengo. Liminha ficara mesmo no banco, de onde não sairia mais.
Merica era somente um rapaz. Tinha 22 anos. É o caçula de oito irmãos criados na pequena Acupe, uma comunidade de origens indígena e africana muito famosa na Bahia pelo legado cultural deixado por escravos. Não se constituiu em um quilombo, mas em uma terra para onde iam alguns escravos fugitivos das fazendas e mesmo alforriados, que, enfim, gozavam a justa e necessária liberdade. Eram eles homens e mulheres; crianças e velhos. Todos bravos e aguerridos negros na carne e na identidade. Assim eram os ancestrais do grande Merica, que, acreditem, foi um jovem barbeiro em Acupe, quando começou a jogar bola no time de peladas do Ideal (de Santo Amaro) e, levando mais a sério, no Atlético de Alagoinhas.
Merica sabe que aquele Fla-Flu em que arrebentou em campo jamais saiu de sua mente. Foi a primeira vez que ele se viu cercado de microfones. Se Zico era a estrela, Merica era o reluzente cometa naquela tarde de arquibancada magnificamente colorida de vermelho e preto e de branco, grená e verde.
Mas como o jovem Merica, de uma cidadezinha tão enfronhada no miolo baiano, chegou ao Sul Maravilha, e logo à Gávea? Acerto de contas do Céu com o jovem? Pode ser. Pura sorte? Também. Mas Merica tinha muito mais que apenas estrela. Tinha competência. Jamais se soube o que fez o Flamengo fazer uma excursão pelo interior da Bahia. Mas suspeitava-se que o motivo tinha sido “Merica”. A renda não compensaria o esforço, mas diziam que era vontade de mostrar o time ao povo, que tem direito de ficar bem perto dos seus ídolos. Foi num desses rompantes de alteridade da diretoria do Flamengo que Merica cruzou seu destino com as cores preta e vermelha. O caminho estava aberto para o garoto barbeiro brilhar. Mas quem o viu jogar primeiro e o havia indicado ao Vasco e ao próprio Flamengo foi o comentarista Carlos Marcondes, que trabalhava na Rádio Tupi, do Rio. O Vasco ignorou, mas o Flamengo foi lá conferir se o que Marcondes falava era mesmo verdade.
Dos módicos 300 cruzeiros que recebia do Atlético de Alagoinhas passou a receber 5 mil cruzeiros em agosto de 1975, quando chegou ao Rio de Janeiro. Vieram ele e, de contrapeso, o amigo Dendê. Merica deu certo, Dendê apenas curtiu um pouco as belezas do Rio, mesmo assim, entrou em campo 50 vezes pelo Flamengo.
Junior “Capacete”, um dos melhores amigos do Merica na Gávea, lembra que a chegada do baianinho foi cercada de preconceito: “Merica foi alvo de uma campanha nada simpática, parecia mesmo que tinha mesmo o objetivo de ridicularizar o rapaz. Ora porque é feio, ora porque chegou de um time modesto como o Atlético de Alagoinhas. Na verdade, o problema era outro: o Flamengo não estava bem e a diretoria do clube tinha acenado à torcida com contratações. Os nomes de Merica e Dendê, que vieram juntos, não eram bem aqueles que a torcida e os jornalistas queriam ouvir. Só para dar uma ideia disso, basta dizer que houve um momento em que diziam que o Merica, só porque tinha vindo da Bahia, estava fazendo macumba para o Liminha sair do time”.
Rondinelli foi outro craque que deu muita força ao Merica no começo. O baiano encabulado sentia-se solitário no Rio. Só conversava com Dendê. Os jogadores tentavam enturmá-lo, mas o que único que obteve sucesso foi Geraldo, que morreria prematuramente logo após a chegada de Merica. “Só para você ver como era o Geraldo, foi ele o primeiro de nós a ter a sensibilidade para a situação do Merica, a solidão em que vivia. E Geraldo passou a encarnar nele, gozá-lo com brincadeiras. E assim se quebrou aquele gelo. Aí a intimidade foi aumentando, eu e os outros passamos a compreender Merica, um cara apegado demais à família, à sua terra. Hoje ele é um dos caras mais queridos por todos os companheiros”, contou Rondinelli, em 1977, aos repórteres Maurício Azedo e Aristélio Andrade.
Mas tudo aquilo passou. A fase bacana do Merica no gramado superara qualquer dificuldade inicial. Ele voltou à Santo Amaro e casou-se com a namorada Maria Raimunda. Voltou ao Rio e alugou um apartamento em Copacabana. Que fase! Até aquele Fla-Flu fizera 20 jogos pelo Flamengo. Não perdera nenhum. Zico o adorava: “Na cabeça de área é um leão, destruindo com vigor e dando total cobertura aos zagueiros. E não é só isso: é um cara que sabe avançar, ajudar o meio de campo e, se for preciso, fazer lançamentos para os companheiros”.
Merica não fugia do pau. Era valente como seus ancestrais escravos. Não tolerava mimi. E durante outro Fla-Flu, Rivellino deu-lhe um safanão, sem bola, mas quem caiu no chão foi o “Bigode” e não o Merica. Rivellino rolava no gramado, uivando de uma dor inexistente. Puro teatro. Merica, a verdadeira vítima, acabou expulso pelo juiz. Ficou injuriado e partiu para cima do Rivellino, que se esquivou do baixinho. Em Fla-Flu, Merica não dava sopa. Foi expulso algumas vezes.
Era matuto, sem dúvida. Uma vez — contou Júnior — entrou na sauna de camisa, calça comprida e chinelo. Saiu de lá para lá de encharcado de suor. De sacanagem, os companheiros de time, entre eles o próprio Júnior, ficaram do lado de fora esperando a saída do Merica. Dá para imaginar as sonoras gargalhadas dos caras ao se depararem com Merica naquele estado. Mas a emenda saiu pior que o soneto quando Merica, inocentemente, veio com o seguinte: “Puxa, como é que uma sala dessas, danada de quente, não tem ar condicionado?”.
A história de Merica com o Flamengo começou antes da Gávea. Muito antes do carinho e alegria que os companheiros sempre tiveram com ele no clube carioca. Houve outro Flamengo antes, o da rua do Prédio, em Acupe. Foi ali, nas peladas do Mengo de Acupe, que o vermelho e o preto começaram a tomar conta da alma arretada do querido Merica, que recentemente foi homenageado em um torneio intermunicipal de futebol na Bahia. A Taça Valdemiro Lima da Silva. Ficaria mais charmoso e original chamá-la de Taça Merica. Os rubro-negros concordariam, afinal, que se esquece do Merica na Gávea?