por Claudio Lovato
Você já ouviu a expressão “a vida inteira de repente passou como um filme…” Claro que já.
Só que com ele não foi bem assim. Não foi como um filme. Acho que nunca é.
Foram fragmentos.
O sorriso do pai cada vez que ele contava o que fez no jogo, e os conselhos do pai, e depois a morte do pai, para nunca mais, a devastadora e insolúvel morte do pai.
E a saída casa aos 16 anos, e o drama da mãe arrumando a mala dele, e a cama no quarto do alojamento sob a arquibancada do velho estádio. Quanta solidão e quanta expectativa e quanto desamparo e quanta saudade cabem numa cama de alojamento debaixo de uma arquibancada de estádio velho?
E a primeira vez em que ele e ela saíram juntos, e o primeiro filho, que viria exatos dois anos e três meses depois, e as mudanças, e as trocas de cidade, e o primeiro clube grande, e a interminável paciência dela com ele, a força dela, a presença dela, firme e forte, sempre.
E o telefonema do irmão mais velho, uma despedida que ele só foi entender que era uma despedida quando já era tarde demais para dizer a ele tudo o que queria dizer, e nunca conseguiu.
E a filha que veio num momento em que ele achava que a vida não valia mais grande coisa, quanto engano; quanta vida aquela criança lhe trouxe.
Fragmentos.
Em um segundo? Dois? Três? Não dá para dizer, não dá para contar, porque não é como um filme. Não é assim. Pelo menos não para ele, aqui, agora, com a bola colocada na marca do pênalti, com o goleiro batendo palmas diante dele, gritando que ele vai se foder, só vai, que essa bola é dele, do goleiro.
E os dedos amarelos do avô, e o sorriso amarelo do avô, e as palavras de encorajamento do avô, uma forma completa e irretocável que Deus arranjou para lhe explicar, cedo na vida, o que era amor, mas que ele só foi entender mais tarde, bem mais tarde.
E o filho, e a filha, e a mulher, sua família agora, a forma como Deus, ou que nome se queira dar, encontrou para lhe dizer que ele – pai, marido, jogador, ser humano – era importante do jeito mais completo e perfeito que alguém pode ser: dando felicidade a outros.
E então o árbitro apita, e há um silêncio que só ele consegue ouvir no estádio lotado, e é a última chance que aquele time tem de conseguir ganhar o primeiro título nacional que disputa em sua longa existência, e então ele respira fundo e esvazia os pulmões e puxa o ar outra vez e corre para a bola sem soltar o ar e bate nela do jeito que tinha que fazer, exatamente como havia se proposto a fazer, e o resultado daquele chute é exatamente aquele que eu e você queríamos (queremos), porque não se pode admitir outra maneira de este novo fragmento chegar ao fim – e se eternizar.