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Mauro Ferreira

POSIÇÃO INGRATA

por Mauro Ferreira


Que posiçãozinha da peste essa de goleiro. Convivi com muitos, fui um deles, mesmo que em peladas pouco concorridas. E, mesmo em peladinhas de rua, sei o que acontece quando você é o responsável pela derrota de seu time. O mundo em volta cai; todos os olhos, até aquele único do pirata caolho, viram-se em silenciosa acusação. Enquanto isso, a memória, essa senhora de personalidade ambígua, esquece todas aquelas outras vezes em que distribuiu adjetivos elogiosos para santas defesas impossíveis. Aliás, a igreja católica jamais irá canonizar goleiros. Fosse assim, Gordon Banks, Iachin, Marcos, Grohe, Mazurckiewisck, Fillol e outros tantos teriam sido santificados.

Goleiros não curam doenças, não apaziguam dores, não diminuem sofrimentos, não salvam vidas. Enfim, não fazem milagres. Jamais serão santos. E muito menos serão paredes, ou qualquer anteparo capaz de evitar que os gols aconteçam. Goleiros não serão muralhas. Mas o Muralha é goleiro, é atleta de futebol, é gente. Só não deveria permitir a transformação do apelido em nome de referência. Muralha – e nenhum outro goleiro – será uma muralha.


Alex Roberto, o Muralha, poderia ser só Alex. Não levaria nas costas a responsabilidade imensa do apelido. É um grande goleiro, foi convocado, por muitas vezes eleito o melhor em campo. Hoje, o peso do apelido, aliado ao peso das críticas, dos xingamentos da torcida e da pecha de frangueiro, diminuiu sua velocidade, seus reflexos, sua autoestima e extinguiu sua liderança entre os jogadores.

Mas há conserto. Basta treinar, jogar e conviver com um divã durante um tempo. Precisa deixar de se achar uma muralha, precisa abandonar o apelido e ser o Alex. Assim. Só Alex. Sem penteados moicanos, sóbrio, atento, rápido e, principalmente, ciente de que irá sofrer gols e irá falhar. E, para esse conserto dar certo, é necessário que jogue. Jogue o próximo jogo, o próximo, o próximo e o próximo. Sua cidadela, saiba ele, será transposta. Afinal, o Alex não é muralha. Jamais será. Mas é, sim, um ótimo goleiro.

O ELÁSTICO DE OLHO

por Mauro Ferreira


(Foto: Reprodução)

Eu não estava no banco tricolor. Não tinha idade – e nem futebol – para tanta pretensão. Mas estava no Maracanã naquela tarde. Eu e meu Velho, “seu Ayrton”, que escolheu ficar no meio de campo, a zona da arquibancada onde você podia torcer por qualquer time sem ser incomodado ou incomodar qualquer torcedor adversário. De lá de longe eu vi a obra ser desenhada, linha a linha.

Rivellino era o frisson de todo tricolor. A estreia contra o Corinthians já servira de aperitivo. Na verdade, um banquete de aperitivo. Três gols. “A Máquina” se consolidava como o apelido daquele time. Não era o apelido correto. Máquinas têm comportamento óbvio, repetitivo. E nada havia de óbvio e repetitivo. Eu não gostava do apelido.

Lá de cima, bem lá em cima da arquibancada, de longe, vi Rivellino parar na frente de Alcir. Um mortal escolheria o passe lateral, manter a posse de bola. Não ele. Não o imortal Rivellino. Em princípio não entendi o que havia acontecido, tamanha a velocidade da ação. Só vi quando, diante do lendário argentino Andrada, Rivellino estufou o barbante. Meu cérebro só interpretou o lance todo depois de comemorar muito, abraçado ao meu pai.

Se eu não sendo boleiro, estava estupefato, imagino aqueles ocupantes do camarote privilegiado que era o banco de reservas. Imagino a cabeça do Zé Roberto tentando entender o inesperado. O não óbvio, o lance além da repetição. Não era uma máquina. Era o improviso além da partitura. A surpresa, o imponderável, o talento que diferencia os gênios dos normais.


Foto: Acervo O Globo

Anos mais tarde, já jornalista, vi outra obra do mesmo gênio. Dessa vez, no Estádio Nacional de Santiago do Chile. Jogo de despedida do zagueiro Elias Figueroa. Daqui da terrinha, partiu uma seleção de veteranos. Félix, Marco António, Búfalo Gil, Luiz Pereira e outros que não lembro. Dessa vez, eu não estava longe. Atrás do gol defendido por Felix, sentado no gramado, vi mais uma obra prima.


Foto: Agência Estado

Ainda no campo de defesa, uns dez metros antes da linha do meio campo, mais próximo da lateral esquerda, Rivellino levantou a bola, olhou para a defesa como se procurasse alguém dela e fez o lançamento para Gil, que corria pela direita e já no campo do adversário. Drible de olho. Elástico com o olhar. Não foi gol, mas o “ó” que saiu da boca de todos naquele estádio lotado foi uníssono e muito alto. Um passe de mais de 50 metros olhando pro lado contrário ao da direção do passe que dera.

De volta ao Brasil, fui o mais rápido possível encontrar com meu pai. Quis dividir com ele o que havia visto. Era uma forma de retribuir o presente dado anos antes. O Velho Ayrton ouviu em silêncio cada detalhe do lance. O olho brilhou e o sorriso de canto de boca denunciou que bebia ávido tudo o que eu relatava.

Só os gênios são capazes de surpreender quando se consegue transferir em palavras, toda a emoção e criatividade de um lance de segundos.


Eu juro: gostaria de saber o que sentiu o pai do Zé Roberto Padilha, ao ouvir o filho contar sobre o tal “elástico” daquela tarde/noite do Velho Maraca. Juro. Conta aí, Zé…

O GOLEIRO DO CAPITA

por Mauro Ferreira


Em pé: Paulo Wrencher, Mauro Ferreira, Carlos Alberto Torres, Washington Rodrigues, Apolinho, Doval, Djalma Dias
Agachados: Newton Zarani, Emygdio Felizardo Filho, Tijolinho, Sérgio Du Bocage, ——–, José Medeiros.
 

“A bola quicou um pouco antes do chute. Foi o suficiente para ela encaixar direitinho no peito do pé. Se não tivesse quicado, não ia sair aquele balaço”. Era assim que o Capita contava o último gol da Copa do Mundo de 1970, no México. E assim, dessa forma simples ele levava a vida. Estar ou não sob holofotes, pouco importava, mesmo vivendo a vida toda sob eles. Como jogador, treinador, comentarista, vereador, marido de atriz global. Não escondia o que pensava, muito menos sua paixão pelo Fluminense – Marcio Guedes insiste que era botafoguense. Falava o que desse na telha, fosse numa entrevista séria ou na resenha da pelada.

Carlos Alberto Torres, o Capita, se foi de supetão. Como quando falava o que lhe vinha à cabeça. Não perdeu tempo nem deu tempo ao sofrimento, como quando disparou aquele petardo que encerrou a goleada brasileira sobre a Itália. Um chute. Um chute e rede. Nenhum toque a mais na bola. Nada. Um chute. Hoje, um infarto. Rápido, certeiro, poderoso. Como aquele gol. O gol que vai durar a eternidade do futebol.

Se em 70 o choro vinha para lavar a alma de felicidade, hoje a lágrima corre de profunda tristeza. Ele certamente mantém o sorriso franco, o mesmo que alegrava qualquer um em suas resenhas. O mesmo que exibia nas peladas que jogava com qualquer um, em qualquer tempo, a qualquer hora. O mesmo dessa foto aí, no time do Jornal dos Sports. Eu era o goleiro e ele jogava essa pelada com a gente toda segunda-feira no Montanha Clube, no Alto da Boavista. A zaga facilitava o meu trabalho! O capitão da melhor seleção de futebol de todos os tempos estava ali, ao meu lado! Não vai estar mais. Não vai ter mais resenha divertida. Mas sempre, sempre, aquela bola vai quicar e encaixar direitinho no peito do pé do Capita.

Triste…

VAI’NBORA, NÃO. PLEASE!

por Mauro Ferreira


Vai passar. 

O tempo apaga tudo, é senhor da razão, é isso e também aquilo. Diz-se. No entanto, você se foi e não prometeu voltar. E a dor é profunda, daquelas que jamais vai parar de doer. Por oito anos esperei sua chegada. Supus, inclusive, que não viria. Ou, se viesse, traria problemas, uma certa ciumeira poderia atrapalhar bastante o relacionamento. Sua única promessa era ficar por 17 dias. Ficou os 17. Nem um a mais, nem um a menos. Mas ô 17 dias! 


Começou reclamando das acomodações, e com razão. Na pressa misturada com ansiedade, dei uma vacilada. Depois… Depois foi ficando intenso, a paixão aumentando o desejo, o desejo revirando os olhos, e, de tanta intensidade, a paixão virou amor. Um amor cúmplice. Amor tão grande como se fosse um planeta enclausurado numa pequena cidade.

Sério, você viu a festa que fiz na sua chegada? Preparei cuidadosamente para que fosse grandiosa, diversa, eloquente, alegre, chique e mínima. A grandiosidade de uma pétala. Confessa, você achou o máximo. Pode confessar. Depois dali, daquela festança que teve até fogos de artifício, fui mostrando todos os meus cantos e até – perdão pela marra – os encantos. Perdão de novo, mas sou assim porque não consigo esconder as belezas e a simpatia. É meu. Está no meu DNA.

Mas você também é um encanto. Daqueles arrebatadores. Enquanto eu reino no microcosmos, você se utiliza de todas as cores e bandeiras, da força e da delicadeza, da lágrima e do sorriso. E mistura tudo isso pra dirigir todos os olhares em sua direção. E faz o mundo se derreter. Alguns já desfrutaram da sua beleza, mas nenhum, nenhum foi como eu. Por acaso alguém levou você para mergulhar numa piscina verde? Alguém já disse pro mar dar uma forcinha e alimentar uma baia poluída com águas fresquinhas, só pra você velejar? E remar naquela lagoa de visual exuberante e ainda com um Cristo empoleirado em cima daquele pico, de braços abertos como se águia fosse? Foi uma benção, fala sério.

Como os outros, ofereci medalhas aos que mais se destacaram da trupe trazida para cá. Mas, pra ser diferente, em vez de raminho de flores, estilizei uma sandália havaiana, a enchi de cores e distribui. Fiz um boneco serelepe, meio tudo, meio nada, com o meu sorriso estampado na cara. Dei vida a ele, como se Gepeto fosse. Traquina, uma hora fez o raio, noutra deu cambalhotas e até se meteu no meio de umas brigas estranhas. Além da vida, também dei um nome. Nome de poeta. E você levou Vinicius para compor sua coleção. 


Os dias foram passando, seus olhos com um brilho mais intenso a cada um deles. Lá, naquela chamada de Princesinha do Mar, vivemos dias muito intensos, energéticos, Red Bull. Nos jogamos na areia e depois nadamos por horas. Passeamos do Leme ao pontal. Andamos de bike pela floresta, num parque único no mundo. E ainda mostrei algumas de nossas mazelas, quando um puliça foi morto a dois passos de uma boca de fumo, dentro de uma das mais famosas de nossas favelas. Ou quando mostrei um presidente não tão presidente assim, logo na festa de abertura, dando a ele o direito de falar uns segundinhos e demonstrar logo no início que a gente também vaia gente que não é simpática. Tudo isso para você ver exatamente como eu sou, meus defeitos e minhas muitas enormes virtudes. Já falei, sou marrento como qualquer carioca, perdão.


E você, moça bonita, também foi me derretendo. Brincando com meus sentimentos. Chegou a me fazer torcer até por juiz, tamanha a loucura e o amor que tomou conta da gente. Um amor daqueles de não se largar mais. Pois é, mas foi chegando o fim dos tais 17 dias. Muitos da sua trupe já não queriam mais sair daqui. E nem você. Nem você. Mas, mesmo apaixonada por mim – e eu por você, confesso – você se foi. No último dia, esperneei, bufei forte, sopros de mais de 100 quilômetros, misturados a um choro que durou o dia todo. Mesmo assim, com muita tristeza, fiz outra festa para sua despedida. Com direito a desfile de escola de samba, mesmo não sendo época de carnaval.

De todos com os quais você se relacionou, nenhum tem sobrenome. Nenhum. Portanto, ninguém pode lhe prometer sobrenome num pedido de casamento. Eu posso. E por todo esse amor construído em 17 dias eu lhe peço em casamento. Casamento sem direito à dissolução. Eterno, mesmo se não durar. 

Ah, Olimpíada, vai’inbora não, please!

Do seu,

Rio de Janeiro.

ESPECTADOR PRIVILEGIADO

por Mauro Ferreira


Fominha, Mauro Ferreira não desgruda da bola (Foto: Claudio Duarte

Lá na serra carioca de Santa Teresa, os campinhos de pelada eram muitos. Curvelo, Frei Orlando, Paula Mattos, Rua Áurea. Apesar deles, a bola também rolava nas ladeiras, como a da Eduardo Santos, mesma rua da Escola Santa Catarina. Lá, a baliza ficava na calçada. Delimitavam o gol, de um lado as paredes e muros das casas e vilas; do outro, os postes de iluminação. O “gramado” tinha três tipos de textura: cimento rala-coco, asfalto e paralelepípedo.

Rua bem inclinada, dominar o “courinho” era tarefa difícil. Menos para quem jogava morro acima, é verdade. A gravidade corrigia os lançamentos, os passes mais longos e os caneleiros com pouca intimidade. O time morro abaixo suava para controlar a pelota e frear a desabalada carreira. Kichutes e Bambas sofriam. Invariavelmente rasgavam e expunham os dedões – sempre eles – a contatos doloridos com o piso “irregular”.

Assim eram os fins de dia. A turma da escola da manhã se juntava com a da tarde. A bola esfolada, gomos descascando, esperava os dois par-ou-ímpar. O primeiro, para escolher os times; o segundo, para determinar quem jogava sentido arriba, quem sofria morro abaixo. As lamparinas dos postes de luz da Eduardo Santos eram os refletores do “estádio”.

Alguns dos moleques, cujos tênis eram calçados de dia inteiro, jogavam descalços. Sim, descalços. Sabe-se lá por que cargas, eram os melhores. Colô era um deles. Mário, o outro. Um, louro de olho azul, cabelo liso e comprido, sorriso farto, cuja principal característica era coçar a ponta do nariz com a ponta da língua. Morreu cedo, o Colô. Acidente mal contado, história incerta. Mário, mulato de cara emburrada, cabeça maior que o corpo, sempre disposto a sair na porrada. Mário, mais tarde, virou bandido. Apareceu de óculos rayban mequetrefe, muito tempo depois, exibindo um “trezoitão”. Não demorou muito, foi em cana e sumiu de vez.


Cria de Santa Teresa, Sergio Pugliese bateu um papo com Claudio Duarte e Mauro Ferreira

Os outros moleques eram os outros moleques. Coadjuvantes dos dois craques. Eles, que jamais jogavam no mesmo time, discutiam a valer, mas inseparáveis quando o jogo encerrava com os assobios e gritos de pais e mães, chamando os filhos para o banho e a janta. Mesmo descalços, quase nunca esfolavam os dedos, tamanha habilidade. Jogar contra ou a favor da gravidade, pouco influenciava no trato carinhoso da maltratada gorducha. E ela agradecia. De tão gasta e tantas vezes recosturada, já quase expunha a câmara de ar, mas reinava doce nos pés dos dois.

Até que surgiu o Campinho. Dos escombros de um cortiço ergueu-se um monumental terreno baldio, espaço adequado para que se cravasse duas traves com redes de barbante e um piso sem efeitos gravitacionais (nem tanto, mas bem menos) e de textura única: o bom e macio barro amarelo. É justo contar que havia algumas pedrinhas para uma adaptação mais rápida. O barranco da travessa Fluminense servia de arquibancada para os grandes eventos. E lá, nesse campo, Mário e Colô passaram a jogar juntos, no time da Eduardo Santos, vice-campeão do famoso torneio da Frei Orlando. Era um time quase imbatível com os dois. Quase. O goleiro era uma porcaria e dias antes da decisão, caiu da bicicleta, ralou joelhos e cotovelos e, mesmo assim, foi jogar a final. Se já era ruim, sem mobilidade foi um desastre total. Derrota anunciada.

O Campinho fez morrer as peladas da ladeira, das bicudas nos paralelepípedos e até ele próprio morreu, quando o Jornal O Dia comprou o terreno baldio e transformou o local em garagem e oficina da frota de fusquinhas. Até a garagem acabou morrendo. Hoje, nada lá funciona. Poderia voltar a ser o Campinho. Poderia. Morreria adiante também. O tempo apaga tudo. Mário e Colô, craques que eram, estão vivinhos da Silva na memória de um espectador privilegiado do futebol peladeiro de ambos: eu, o goleiro do time da Eduardo Santos.