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Marcos Vinicius Cabral

A BOLA TROCADA PELA BÍBLIA

por Marcos Vinicius Cabral


O automóvel é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores invenções do século XIX.

Isso se dá em 1769, com a criação do motor a vapor em que automóveis são capazes de transportar humanos.

Mas depois de 117 anos, especificamente em 1886, é considerado o ano de nascimento do automóvel moderno – com o Benz Patent-Motorwagen, inventado pelo alemão Karl Benz.

Mas o que seria dos automóveis sem um motor?

E o que seria de cada equipe de futebol, seja ela amadora ou profissional, sem um “motorzinho”?

Aquele jogador que acelera na hora de atacar ou pisa no freio para se defender.

Eis que surge em 26 de setembro de 1988, na Casa de Saúde Vila Paraíso, em São Gonçalo, Thiago Leite Silva, esse jogador.

Filho caçula de seu Luís Carlos Vitalino Silva – um clássico camisa 8 que dava gosto ver jogar – e de dona Rosemeri Leite, o garoto desde cedo conviveu com o futebol.

– Minha paixão pelo futebol se dá por causa do meu pai que me levava para assistí-lo no Águia Negra, no Campeonato Comunitário do Gradim – recorda.


Apesar dos seis anos de idade, Leitinho – assim os mais chegados o chamavam – mostrava desenvoltura com a bola e uma habilidade muito parecida com a de seu Luís em seus tempos áureos nos campos gonçalenses.

Em seu DNA (composto orgânico cujas moléculas contêm as genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos), continha vitalidade, habilidade e um desejo de ser alguém no futebol, distribuídos em 1,68m de altura.

Em 1999, aos onze anos de idade, levado por seu pai, ingressou no pré-mirim do CFZ (Centro de Futebol Zico) e conviveu com Adílio, Jayme, Andrade e Zico, extraindo o melhor de cada um nessa experiência enriquecedora.

– Foi uma pena não poder continuar por causa da situação financeira do meu pai – diz dos dois anos em que foi treinado pelos professores Gaúcho e Lima.

Se dentro de campo era um jogador encapetado, fora dele era um garoto que costumava ir à igreja com dona Isidora, sua avó paterna.

Nessa mesma época, dava seus primeiros passos na fé e aceitava Jesus como seu Único e Verdadeiro Salvador.

– Eu buscava ajuda no Senhor para restaurar o casamento dos meus pais e mesmo com 13 anos subia aos montes para orar pela vida conjugal deles – revela sem nenhum arrependimento.

Um ano depois, em 2002, chegava ao Combinado Cinco de Julho, no Barreto em Niterói, para treinar na escolinha comandada por Jeremias (ex-atacante do América/RJ, Fluminense, Vitória de Guimarães/POR e Espanyol/POR), que se encantou com o moleque.

– Apesar de baixinho era muito bom jogador. Muito pegador no meio, marcava e criava com a mesma eficiência – diz o eterno ídolo do Mecão, aos 70 anos.

Jogador de extrema polivalência, era utilizado sempre na categoria infantil – de 14 a 15 anos – por causa da idade e às vezes na infanto-juvenil – de 15 a 16 anos – por causa da bola que jogava.


Certa vez, enfrentou o América/RJ, no Clube de Campo do Luso-Brasileiro em Campo Grande e só faltou fazer chover.

– Estava voando. O professor Jeremias me colocou nos dois jogos e arrebentei nesse dia. Perdemos por 2 a 1 no infanto e metemos 3 a 1 no infanto-juvenil – relembra.

Convidado para treinar no tradicional clube de Campos Sales, ficou quase um ano.

A distância e a falta de recursos, acabariam desligando o “motorzinho” da camisa 8 de seu sonho.

Em 1994, tentava a sorte no Club de Regatas Vasco da Gama e no campo anexo de terra batida que fica atrás das arquibancadas, treinou tão bem que seria inimaginável não se tornar atleta do clube cruzmaltino.

– Vendo os treinos, os outros pais me diziam que era certo o baixinho ficar – diz seu Luís sobre o filho.

Passar na exigente peneira não seria problema para o jogador que era, porém, nos quatro meses que treinou em São Januário, ele e seu Luís conviveriam com o submundo dos empresários (o famoso apadrinhamento), fora das quatro linhas.

– Foi decepcionante para mim saber disso. Não ser aproveitado por não ter um empresário – lamenta.

Acabaria dispensado.


No entanto, aos dezesseis anos, e mesmo machucado por dentro, ia se acostumando com as feridas causadas pela bola.

E a história se repetiria bem longe de São Gonçalo, desta vez em Xerém, quando treinou no Fluminense Football Club.

Com uma carta de apresentação nas mãos calejadas de seu pai, se apresentou no tricolor.

A carta em si não que garantira aprovação mas estendeu dos três treinos habituais para oito.

Mais uma vez treinaria bem mas faltou o famoso (padrinho) empresário.

Numa última tentativa, com dezessete anos, disputou a Copa Light pelo União Central Futebol Clube, da terceira divisão do Rio de Janeiro.

Depois de muito esforço, conseguiu a federação pelo modesto clube da Penha, Zona Norte da cidade, mas resolveu deixar o sonho de lado em nome da fé.

– Achei melhor ir jogar no Ases de Ouro do Gradim, trabalhar como mecânico e me dedicar à obra de Deus – confidencia.


Atualmente é casado com Vanessa desde 2013, pai da pequena Débora e trabalha com seu Luís na oficina Pai e Filho, no Porto Velho em São Gonçalo.

– Thiago é muito especial na minha vida. Quando mais precisei ele me ajudou com uma palavra edificante – revela o amigo Davison Marques de 21 anos.

E completa:

– Além do coração enorme que tem é um cara que não gosta de perder, seja nos jogos de futebol ou nas adversidades da vida cristã.

Hoje, prestes a completar 31 anos, jogar aos domingos no Grêmio Recreativo e Esportivo Barabá no Porto Velho e ir aos cultos da Igreja Evangélica Semeando no Gradim, são os curativos para sua alma.

DE BRITO À MILAGRE

por Marcos Vinicius Cabral


– Ouvi sempre coisas boas sobre meu avô, que jogou até os 64 anos! – diz Rodrigo Santos Brito, de 34 anos, ao Museu da Pelada.

Mas se o filho de seu Newton e de dona Ivana não se cansa de elogiar o octogenário e craque da família, foi por causa de suas atuações na ponta-direita do Veterano Futebol Clube nas manhãs de sábado no Campo do Bairro Rosane, que ele decidiu que era aquilo que queria fazer na vida: jogar futebol profissional.

Coisa que seu avô não conseguiu em sua época, mesmo tendo jogado com Gérson, o Canhotinha de Ouro, um pouco antes do tricampeão mundial se profissionalizar no Flamengo.

– Era difícil. Jogador era taxado como vagabundo. Ou casava ou jogava – lamenta seu Waldir dos Santos, casado há 58 anos com dona Nicinha.

Mas taxações à parte no mundo cruento da bola, o neto não se arrepende de ter desfrutado da constância de seu Waldir na sua vida.

– Peguei gosto por estar sempre com ele, que me levava para o campo e ficava batendo bola comigo! – diz Brito como passou a ser conhecido no mundo do futebol.


E arremata:

– Foi com meu avô Waldir que aprendi o beabá do futebol, como dominar, tocar, driblar, lançar e chutar uma bola. Deveria ter uns 5 anos de idade – diz.

Aprendeu tanto que em 1995, aos 10 anos de idade, já era destaque jogando no meio campo no time do Bairro Rosane Futebol Clube, e dois anos depois ingressava na escolinha Toque de Bola Futebol de Base, comandada por seu Ruterley ou Telê Ventura como é até hoje chamado.

– Brito era um jogador muito técnico, organizador de jogadas, aplicado, com uma leitura de jogo impressionante, além é claro, de bater faltas como poucos – gaba-se o ex-treinador de 69 anos.

Com tantas qualidades foi levado ao Club de Regatas do Vasco da Gama, onde treinou no campo anexo de terra batida de São Januário que fica atrás das arquibancadas e agradou.

O talentoso garoto que confirmaria o DNA da família Santos Brito viu a alegria no brilho dos olhos de seu Santos Brito, viu a alegria no brilho dos olhos de seu Waldir ao ser aprovado.

Brilho efêmero convenhamos, pois alguns meses depois, viu o mesmo olhar de reprovação do avô para os empresários que administravam as carreiras de vários garotos.

Preterido por ser do mirim e integrar a escolinha do clube vascaíno, Brito foi desligado.

Mas não desligou da vida o sonho de vestir a camisa de um clube de futebol.

Passou na peneira do Nova Iguaçu Futebol Clube, fundado em 1990 por Crizam César de Oliveira Filho, mais conhecido como Zinho, tetracampeão mundial em 1994 :


– Eu não tinha dinheiro de passagem para treinar. Nem almoçar eu conseguia por causa do horário. Abri mão! – queixa-se sobre os quase 57 km de distância entre sua casa em São Gonçalo e a sede do Carossel da Baixada.

No Bonsucesso Futebol Clube, onde Leônidas da Silva, o inventor da bicicleta, se profissionalizou em 1934, a história foi diferente:

– O clube estava sem recursos para disputar o Campeonato Carioca – lamenta sobre o rubro-anil.

Depois dessas experiências, a primeira tristeza: a escolinha onde dera seus primeiros chutes numa bola de futebol observado pelos olhos atentos do avô encerrava suas atividades.

Recomeçou então no rubro-negro mais famoso do bairro: o Flamenguinho da Brasilândia, time que revelou o meio campista Diogo Oliveira, hoje no Brasil de Pelotas.

Nesse período, estudava no primeiro ano do segundo grau no Colégio Estadual Padre Manuel da Nóbrega e jogava os interestaduais pela tradicional escola do bairro, sob a batuta do treinador Mekerra, que lapidou a joia no começo de carreira.

Com um futebol encantador conquistou Carlos Roberto – ex-jogador do Botafogo nos anos 1960 e atualmente treinador do Al Tai Sport Club da Arábia Saudita -, e Silvinho – que jogou no Fluminense -, que o levaram ao Madureira Futebol Clube.

No infantil do Tricolor Suburbano, jogou ao lado de Maicon (atualmente no Grêmio de Porto Alegre), Muriqui (ex-Vasco) e André Lima (hoje no Austin Bold FC dos EUA).


– O treinador me valorizava tanto que eu pedi para ser dispensado e me emprestaram. Queriam que eu fosse dispensado e me emprestaram. Queriam que eu voltasse, mas não quis mais – revela.

Poderia continuar mas os malditos contratos “de gaveta” (que viriam a ser proibidos pela CBF apenas em 2015) o desanimaram.

A vida continuou seu curso e Brito acabou indo parar no Centro Esportivo Arraial do Cabo mas foi no Angra dos Reis Esporte Clube que disputaria sua única Copa São Paulo como profissional em 2005.

Ainda jogaria profissionalmente na Associação Atlética Ranchariense e na Associação Esportiva Araçatuba, um pouco depois de vestir as camisas do América/RJ e o Canto do Rio de Niterói.

Enquanto buscava um lugar ao sol em equipes profissionais, nos campos de várzeas de São Gonçalo assinaria súmulas pelas equipes do Duro na Queda e Aranha (ambos do Coroado), Xeque-Mate de São Gonçalo, Jovem Fla do Boa Vista, Santos do Porto Velho, Renascença de Itaboraí, além de no F7, pelas equipes do Atlantic e Al Ain.

Ganhando títulos e jogando o fino da bola, surgiu a oportunidade de ir para Portugal.

Certo dia, tomando banho, sentiu uma forte dor na nuca e desmaiou.

Levado às pressas para o HEAT (Hospital Estadual Alberto Torres), no Colubandê, ficou em observação numa maca em um corredor lotado.

– Ouvi o médico dizendo ao enfermeiro pra ficar de olho no meu irmão, pois ele não estava bem – recorda o irmão Felipe.

Numa ala de isolamento, seu estado ia agravando e para visitá-lo era preciso colocar uma roupa específica.

A situação era grave, muito grave.

O craque que aprendera futebol com seu Waldir, agora lutava contra um adversário que queria a qualquer custo vencê-lo: a morte!

Brito então entra em coma induzido e o chefe da equipe médica responsável está pessimista.

– Se ele não reagir se preparem para o pior, mas se sobreviver, viverá numa cama para sempre – enfatiza após medicá-lo.

E completa:

– Mas tudo indica sua morte! – sentenciou.

– Nunca! Eu sei em quem tenho crido. O senhor vai ver o agir de Deus na vida do meu filho – diz o padrasto Rogério segurando uma bíblia e com lágrimas nos olhos.

Deus começa a operar na vida daquele rapaz cheio de sonhos e com uma vida inteira pela frente.

Depois de doze dias internado, Brito sai do coma, porém, uma inflamação no cérebro é diagnosticada.

Era necessário uma drenagem e uma cirurgia.

Após ser operado é transferido para o HEPJBC (Hospital Estadual Prefeito Jõao Batista Caffaro), em Manilha.

– Ele foi evoluindo mas um médico queria fazer traqueostomia nele e queriam que eu assinasse para liberar – conta dona Ivana, mãe do craque.

Nesse instante, Deus opera outro milagre.

– Ei, Ro! Lembra de mim? – sopra no seu ouvido a fisioterapeuta.

– Claro que sim, Lu! -, diz lembrando da colega de academia Smartfit, onde malhavam.

Aquela “anja” que atendia pelo nome de Luciana, faz alguns testes ali e diz que o jovem não precisa ser traqueostomizado.

Em seguida uma junta médica o examina e fica comprovado que não é necessário a cirurgia.

Alguns dias depois, a evolução começou a ocorrer com ganho de massa corporal e a tão sonhada alta.

Hoje, quem o vê cantarolar “Deus é Deus” de Delino Marçal, não entende o milagre ocorrido na vida deste jovem de 34 anos que se divide nos treinos em alto rendimento, em palestras motivacionais, trabalhos sociais e na Igreja Evangélica Assembleia de Deus, no Porto da Pedra, onde é Missionário.

Mas confessa:

– Duas das maiores alegrias que a bola me deu foi poder jogar ao lado do meu avô. Eu com 14 anos e ele com seus 64, em 1999 – lembra.

E finaliza:

– A outra foi marcar um gol de falta para ele um ano após ter vencido a meningite no qual fui acometido – diz sorrindo o camisa 30 do Boleiros FC.

UM SENHOR ZAGUEIRO MOVIDO A MINGAU

por Marcos Vinicius Cabral


Os olhos rabiscavam cada metro quadrado do Campo do Cais, situado na rua Tomás Rodrigues, número 581, no bairro Antonina em São Gonçalo.

Construído por funcionários do Cais do Porto no fim da década de 1940 e rebatizado de Arena Dr. Manoel de Lima ano passado – vereador este falecido em 2017 -, jogar naquele chão de terra batida era a consagração de todo peladeiro.

Em pé e à beira do tradicional campo, o pequeno Jorge presenciava impávido o que seu tio Décio, ponta-direita da equipe do Cais do Porto, aprontava dentro das quatro linhas.


– Meu tio foi um dos maiores jogadores de São Gonçalo na sua época -, gaba-se Jorge Fernando Faria, de 58 anos.

De tanto ver o estrago que seu tio fazia nas zagas adversárias, começou a se encantar pela posição, não a de atacante por incrível que pareça, mas a de zagueiro.

Assim como os tantos defensores que sofriam nas mãos, ou melhor, nos pés de seu tio, decidiu que não se tornaria um zagueiro qualquer, mas seria o melhor do bairro.

Em 1971, aos dez anos de idade, deixou São Miguel com a irmã Rejane e com os pais Basílio e Anízia, para irem morar no Boa Vista.

Aquela mudança repentina teria grande significado na sua vida, já que os domingos no Campo do Cais haviam sido substituídos pelas peladas durante a semana no Campinho da Mangueira, na rua Paulo Setúbal, onde reside até hoje.

Certa vez, numa dessas (como outras tantas) peladas, enquanto o seu time puxava um contra-ataque, dona Nair, mãe de seu colega Luís Otávio – lateral-direito muito ofensivo e adversário na ocasião -, chega no portão de casa e grita:

– Giiiiinho, vem comer seu mingau!

O jogo é interrompido e um silêncio fúnebre invade aquele lugar.

Ninguém responde.


– Ei dona Nair, eu quero! – gritou Jorge, estufando o peito na altivez de seus 1,87 de altura, desamarrando as chuteiras jogando-as para um lado, tirando os meiões das pernas compridas e finas e jogando-os para o outro e já sentando à mesa.

Nascia ali, naquele ano de 1973, o apelido que o acompanharia para o resto de sua vida: Jorge Mingau.

E foi com essa alcunha que fez história nos campos de São Gonçalo em seus 128 anos de existência, não sem antes, com dezesseis anos, treinar no Botafogo de Futebol e Regatas, em 1977.

– A gente treinava três vezes por semana na Base de Fuzileiros Navais, na Ilha do Governador. Era bem puxado, já que saíamos às 4h da manhã de casa, voltávamos às 14h para almoçar e entrar às 15h no colégio para sair às 19h – lembra.

E completa:

– Eu desanimei quando ele foi reprovado – conta visivelmente emocionado ao lembrar do falecido amigo Lino.

Mas se não chegou a se profissionalizar no clube da Estrela Solitária vestindo a camisa 3 de seu ídolo rubro-negro Jayme, fez história nos campos da cidade.

No Biquinha Futebol Clube, foi protagonista nas campanhas da equipe no extinto Campo do Arlindo, onde hoje funciona o São Gonçalo Shopping, no Boa Vista.


– Jogar com Mingau é o sonho de todo camisa 1. Se eu fui o goleiro que fui é porque ele foi o zagueiro que foi. Simplesmente incomparável – frisa Renivaldo Sant’ana Cândido, de 60 anos, considerado o melhor goleiro do Boa Vista de todos os tempos.

Mas a elegância e o potente chute lhe credenciariam a conquistar de forma invicta o campeonato do bairro Rosane, um dos mais disputados da localidade pelo Mangueira Futebol Clube.

– Jorge Mingau foi campeão por onde passou. Sempre foi respeitado por todos no futebol, apesar de ser bem mais novo que a maioria dos boleiros. Era forte, com boa estatura e nunca vi um jogador bater tão bem na bola como ele. Me sentia muito bem jogando ao seu lado – diz seu ex-companheiro de zaga Ubirajara Alves de Oliveira, de 62 anos.

Mas o auge foi no Liverpool Futebol Clube, onde conquistou títulos, ficou vários jogos invictos, fez amigos, escreveu seu nome definitivo na história do bairro e fez seu Basílio, seu pai, se tornar fã número um e acompanhar o time nas excursões que fazia.

Todos queriam vencer o Liverpool mas poucos conseguiam tal façanha.

Até hoje, depois de tantas gerações, não houve um beque-central como Jorge.

Portanto, lá do céu, dona Anízia – que detestava o apelido do filho – fazendo tricô em seu sofázinho e seu Basílio – que se divertia com isso – lendo seu jornalzinho em sua cadeira de balanço, hão de concordar: foi um grande zagueiro

TODOS SÃO UM SÓ

por Marcos Vinicius Cabral


Uma chama aqueceu o coração de vários meninos de diferentes lugares do país e os ascendeu para a possibilidade.

Possibilidade esta que é um substantivo feminino que expressa a propriedade ou condição de alguma coisa que é possível ou que pode acontecer.

Segundo o filósofo grego Aristóteles (322 a.C), aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande, o conceito de dynamis (poder, força, energia constante), revela uma nova possibilidade que a matéria tem de se transformar em algo diferente do que é e ser a fonte de realização.

Portanto, a possibilidade é equivalente à racionalidade, e se refere ao que acontece nos processos de pensamento e corresponde ao não contraditório.

E foi crendo nisso que Arthur, Athila, Bernardo, Cauan, Christian, Francisco, Jhonatan, Jorge, Pablo, Samuel e Vitor, deixaram seus lares e foram em busca.

Em busca da possibilidade.

Possibilidade de ser um jogador de futebol, onde todos nós, quando jovens, indubitavelmente, vivemos isso.

Na vida, tudo é regido pela possibilidade e no campo esportivo, futebolisticamente falando, não seria exceção, mas sim regra.

Quem nunca treinou em clubes nas “peneiras” da vida?

Quem nunca deu dois nós nas chuteiras para não ter um passe comprometido com o cadarço desamarrado?

Quem nunca rivalizou com alguém para ser melhor e conquistar a posição de titular?

Quem nunca prometeu aos pais que se tornaria atleta profissional e daria uma vida melhor no futuro?

Quem nunca fez planos com a namorada de um serem três num horizonte rabiscado: ele, ela e o futebol?

Quem nunca chupou laranjas antes, durante e depois dos treinos para ganhar vitamina C e resistir à maneira bruta como são submetidos à cobaias de craques da bola?

Quem nunca se viu entrando em um Maracanã e ter seu nome gritado pela torcida ou xingado pela adversária?

Quem nunca se imaginou tendo um regozijo indescritível ao marcar um gol?

Quem nunca?

E foi essa possibilidade que os motivou a irem além.

Possibilidade que fizeram chegar aos montes e percorrer o mesmo trajeto, como formigas ensaístas que deixam por onde passam o feromônio – química que permite que se reconheçam e se interajam.

Vindo dos quatro cantos do Brasil afora, tais jovens haviam vivido catorze, quinze, dezesseis, dezessete primaveras, talvez inverno, outono e verão também.

Sonhavam com a possibilidade de serem jogadores de futebol, driblando a pobreza, a saudade do família, o convívio dos amigos, das namoradas e de uma infância que foi interrompida e trocada por treinos exaustivos.

Havia entre eles e a bola uma química tão harmônica que nem o cientista inglês Robert Boyle, considerado o pai dessa ciência no século XVII e o francês Antoine Lavoisier, maior estudioso no século seguinte, saberiam mensurar a razão do porquê.

Se deitaram no dia sete e não levantaram no dia oito.

Dormiam no alojamento do Centro de Treinamento George Helal, conhecido como Ninho do Urubu, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro e tiveram – todos eles – seus corpos consumidos pelas chamas de um incêndio ainda não explicado.

A bola que nos dá tantas alegrias, hoje, nos faz chorar tamanha tristeza pelas perdas.

Talvez surgissem dessa garotada outros “Leandros”, “Mozeres”, “Juniores”, “Adílios”, “Andrades”, “Titas”, “Rondinellis”, “Zicos”, “Uri Gelleris”, “Bebetos”, “Zinhos”, “Adrianos” e “Petckovics”… nunca saberemos e nem o tempo nos dirá.

Enquanto há dois anos o futebol brasileiro se solidarizava com o “Somos Chape”, no acidente aéreo que vitimou 71 pessoas, entre jornalistas, jogadores e dirigentes, naquele 29 de novembro, hoje, todos são FLAMENGO!

TODA UNANIMIDADE É BURRA

por Marcos Vinicius Cabral


Se o teatrólogo, jornalista, romancista, folhetinista, frasista e cronista esportivo Nélson Rodrigues soubesse a dimensão que a carreira de Zico tomaria, não teria dito a célebre frase: “TODA UNANIMIDADE É BURRA”.

Ou quem sabe, poderia ter tornado menos incisiva: “NEM TODA UNANIMIDADE É BURRA”.

Falecido numa manhã de domingo em 21 de dezembro de 1980 por complicações cardíacas – afinal de contas, viveu tantas emoções ao longo de seus 68 anos – e respiratórias – abusou do tabagismo e do sedentarismo por inconsequentes décadas – , um do mais influentes dramaturgos do século XX viu pouco do que o maior camisa 10 do Clube de Regatas do Flamengo produziu dentro de campo.

Viu, por exemplo, a imprensa esportiva mundial chamá-lo de “el fenómeno”, quando em sua estreia na seleção brasileira, marcou o gol da vitória nos triunfos sobre o Uruguai em Montevidéu e a Argentina em Buenos Aires, em partidas pela Copa do Atlântico, em fevereiro de 1976.

Um mês depois, viu outra grande atuação da jovem promessa rubro-negra em um amistoso no Maracanã para quase 88 mil pagantes, contra a poderosa “Máquina Tricolor”, que mesmo sem Rivellino, com febre, contava com Carlos Alberto Torres, Edinho, Carlos Alberto Pintinho, Doval e Paulo Cézar Caju.

No dia seguinte, sentou-se numa cadeira, acendeu um cigarro, colocou papel no rolo da sua inseparável máquina de escrever e sem interrupções e correções, datilografou com os indicadores o texto final do ÓBVIO “o melhor jogador do mundo”, artigo semanalmente para O Globo.


Em seguida, com olhos ULULANTES releu – o segredo para escrever bem não era ler, mas reler, segundo diziam seus amigos mais próximos – a brilhante manchete no Jornal dos Sports: “Zicovardia”, numa alusão à atuação do camisa 10 da Gávea, que marcou os quatro gols na goleada de 4 a 1 e tornou-se o primeiro – e até hoje único – jogador a marcar quatro vezes num Fla-Flu na “Era Maracanã”.

Se relia Dostoiévski e Machado de Assis – seus escritores prediletos – algumas vezes, teve a oportunidade de assistir aos dezesseis títulos conquistados de 1971 a 1979; a premiação com a Bola de Ouro da Revista Placar como melhor jogador do Campeonato Brasileiro de 1974; a artilharia do Campeonato Carioca de 1975, com expressivos 30 gols (marca que não era alcançada no Rio desde 1949), além é claro, das conquistas da Taça Guanabara, do Campeonato Brasileiro e do Torneio Ramón de Carranza, estes três últimos, no mesmo ano em que ascendeu da Terra.

Mas se o torcedor mais ilustre do tricolor das Laranjeiras viu pouco do jogador brilhante que foi dentro das quatro linhas, não viu o ser humano em que se transformou fora delas.

Nascido em 1912, o pernambucano de Recife não viu, por exemplo, Zico e a geração de ouro do Flamengo conquistarem a América e o Mundo, em 1981.

Há torcedores rivais que não consideram feitos tão importantes, já que dizem que a conquista da Libertadores foi roubada (referem-se aos cinco jogadores atleticanos expulsos pelo árbitro José Roberto Wright naquele Flamengo e Atlético Mineiro no Serra Dourada em Goiás) e o Mundial sem a participação de algum time argentino não ter o mesmo peso.

Que bom que TODA UNANIMIDADE É BURRA, como se tais considerações tirassem o brilho dessas conquistas, que por vezes, se misturaram ao suor no rosto de cada jogador.


O repórter policial do A Manhã não viu Zico na seleção brasileira de 1982 encantar o mundo em gramados espanhóis e ser sucumbido para a Itália de um Paolo Rossi devastador naquele 05 de julho, conhecido como “Tragédia do Sarriá”.

No entanto, o estádio que todo brasileiro não gosta de lembrar foi palco da última partida onde o argentino Di Stéfano jogou como profissional em 1965, vestindo a camisa do Espanyol, anos antes de ser demolido em 1997 – onde hoje é um belo conjunto residencial e um parque bem arborizado.

Graças a Deus que TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois dizem que União Soviética, Nova Zelândia, Escócia e Argentina de Fillol, Passarela, Kempes e Maradona eram fracas e que quando enfrentou uma seleção de verdade como a Itália comandada pelo estrategista Enzo Bearzot, perdeu.

O autor de “A mulher sem pecado” – sua primeira peça teatral – não viu Zico conquistar seu segundo título Brasileiro em 1982, contra o poderoso Grêmio de Ênio Andrade, que contava ainda com Leão, Paulo Roberto, De León, Batista, Paulo Isidoro, Renato Gaúcho e Baltazar, em pleno estádio Olímpico.

Ainda bem que TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois alguns ‘entendedores’ alegam que a equipe gaúcha foi prejudicada pelo árbitro Oscar Scolfaro aos 10 minutos do segundo tempo, no lance em que o cabeça de área Andrade tirou a bola em cima da linha do gol, defendido por Raul na decisão do título.

Passados 36 anos, volta e meia surge a discussão que aquele pênalti não assinalado mudaria a história do jogo e que a equipe carioca não se tornaria campeã.

O irmão de Mário Filho não viu Zico conquistar o terceiro título Brasileiro de sua história contra o Santos, em um Maracanã repleto de flamenguistas.

Pois TODA UNANIMIDADE É BURRA, como diziam que o Galinho de Quintino era jogador de Maracanã (é sim como méritos, artilheiro do estádio com 333 gols), sem saber que aquela partida seria sua última com a camisa do Flamengo, pois já estava vendido ao Udinese da Itália.


O editor do suplemento O Globo Juvenil não viu Zico marcar 19 gols logo na sua primeira temporada italiana, ficando apenas um atrás de Michel Platini, artilheiro do campeonato e da campeã Juventus, que jogou seis partidas a mais.

Certamente TODA UNANIMIDADE É BURRA, diriam os sensacionalistas de plantão (como manchete de um famoso jornal carioca), fazendo questão de dizer que nos dois anos que jogou na Itália, o máximo que o jogador conseguiu foi uma condenação a oito meses de prisão e a pagar uma multa de 830 mil dólares por ter fraudado o fisco.

O autor de “Meu destino é pecar”, que assinou o pseudônimo “Suzana Flag” para não ser reconhecido em seu primeiro folhetim para O Jornal, veículo de propriedade de Assis Chateaubriand, não viu Zico ser alvo de botinadas e pontapés desleais, como as do lateral esquerdo Márcio Nunes, quando Flamengo e Bangu se enfrentaram pelo Campeonato Carioca em 1985.

Sem dúvidas, TODA UNANIMIDADE É BURRA, já que alguns preferiram que no lance ocorrido em 29 de agosto, entre o camisa 10 rubro-negro e o camisa 6 alvirrubro, o Galinho foi intencionalmente com o pé por cima da bola na dividida.


O contista que começou a escrever no Última Hora “A vida como ela é”, seu maior sucesso jornalístico, não viu Zico fazer um sacrifício enorme para jogar no México, sua terceira Copa do Mundo.

Porém, TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois até hoje em discussões sobre o insucesso da equipe comandada pelo mestre Telê Santana, impropérios são ditos como se o pênalti que Zico perdeu aos 29 minutos do segundo tempo, fosse o causador daquela derrota para a França.

O maior frasista do país não viu a abertura do Campeonato Carioca de 1986, quando Zico pisou o gramado ao lado de Sócrates – inclusive único Fla-Flu que a dupla jogou juntos – no Maracanã e ouviu os grito de “Bichado! Bichado! Bichado!”, vindo da torcida adversária, que se aboletara do lado direito às cabines de rádio.

Mesmo assim, TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois se tem um clube que sofreu horrores com esse “bichado”, ele atende pelo nome de Fluminense Football Club.

O participante do programa Grande Resenha Esportiva, primeira “mesa redonda” da TV brasileira, não viu Zico, aos 34 anos, comandar o Flamengo na conquista do Campeonato Brasileiro de 1987, após dois jogos épicos contra o Atlético Mineiro na semifinal e dois contra o Internacional na final.


Lamentavelmente, TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois até hoje quem é considerado campeão é o Sport, pois o Flamengo, – assim como a equipe gaúcha – se negou a jogar contra o vencedor do outro módulo da competição.

O criador de Vestido de Noiva, peça teatral de estrondoso sucesso no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, não viu dois anos depois, o ex-camisa 10 da Udinese ter seu recurso julgado às instâncias superiores, e ser absolvido, como o jornal italiano “La Repubblica” publicou em 29 de setembro de 1989: “ZICO NON EVASE IL FISCO” (ZICO NÃO FRAUDOU O FISCO).

Enquanto isso, TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois Nélson Rodrigues, se envergonharia da notinha no rodapé de um famoso jornal carioca ao falar da absolvição do craque.

O escritor que publicou suas memórias no Correio da Manhã, onde Mário Rodrigues, seu pai, trabalhou cinquenta anos antes, não viu Zico jogar profissionalmente sua última partida em 02 de dezembro de 1989, no estádio municipal Radialista Mário Helênio em Juiz de Fora (MG) e golear por 5 a 0 o Fluminense.

Todavia, TODA UNANIMIDADE É BURRA, diriam os que sempre acharam o Galinho acabado para o futebol e criticaram o goleiro tricolor Ricardo Pinto, fazendo-o cair em desgraça, por ter declarado feliz em tomar o último gol do “Deus” rubro-negro, em mais uma magistral cobrança de falta.

O autor de “Toda nudez será castigada” não viu O Galinho de Quintino desembarcar nos idos dos anos 1990 na Terra do sol nascente e ser endeusado, desde então, pelos japoneses quando jogou no Kashima Antlers e é, até hoje, carinhosamente chamado de “Jico”.

E não é que TODA UNANIMIDADE É BURRA, enquanto uns dizem que foi um grande jogador e outros o considerem apenas bom, numa discussão que perdura há 24 anos desde sua aposentadoria em 1994.

No entanto, em 21 de dezembro do ano passado, completou-se o 38° ano de morte de Nélson Falcão Rodrigues e no dia 27, o 15° ano do Jogo das Estrelas, evento beneficente promovido por Zico.


Enquanto Nélson foi – e continua sendo – referência para todo (a) estudante que sonha escrever bem, Zico foi – e continua sendo – referência para todo (a) garoto (a) que sonha ser jogador (a) de futebol.

Ah!, Nélson, que prazer é ler o que escreves…ah!, Zico, como é bom ver seus lances e gols quando jogavas!

Se um escreveu o que o outro jogou, a recíproca é verdadeira: o que jogou inspirou para o outro escrever.

Ambos, foram whorkaholics em suas profissões.

Foram gigantes.

E porque não dizer: fazem falta no jornalismo das fake news e nos campos de futebol com excesso de vontade mas carente de arte.

Ainda bem que li Nélson Rodrigues e vi Zico jogar.