por Marco Antonio Rocha
Alcides Ghiggia vivia em Las Piedras, subúrbio distante da correria de Montevidéu, há 20 anos, quando batemos um papo sobre a histórica final da Copa de 1950. Nas paredes do sobrado simples de pedra, placas alusivas à conquista e apenas uma foto desbotada de quando o algoz do Brasil defendia o Peñarol. Daquele Mundial, nada de fotos ou recortes de jornais. Apenas memórias, guardadas dentro de uma cabeça que ostentava um topete cuidadosamente penteado, além de um bigodinho no melhor estilo milonguero.
– Não tenho mais as fotos, estão com meus filhos. Para que ficar lembrando algo que já passou? – perguntou Ghiggia, usando uma calça preta com frisos amarelos, tipos anos 80:
– Sou Peñarol até hoje!
As fotos podem até estar esquecidas num canto de armário, mas as lembranças da final entre Uruguai e Brasil estão vivas para vencedores e vencidos. Segundo o ex-jogador, aquele foi o dia mais importante de sua carreira.
– Todo jogador sonha defender a seleção e disputar uma Copa do Mundo. E nós tivemos a sorte de sermos campeões! – admitiu, relegando o gol que decidiu o título!
– Parece que aquilo foi o fator principal da partida, mas a conquista foi dos 11. Fui tocado pela sorte e acabei fazendo o gol.
Da arrancada que deu em direção à linha de fundo ao arremate certeiro, Ghiggia demorou pouco tempo, alguns segundos fatais para o futebol brasileiro.
– A jogada foi um pouco parecida com a do primeiro gol uruguaio. No empate, passei por Bigode, que tentou matar o lance com um carrinho, e depois cruzei para Schiaffino marcar. Na virada, aproveitei o espaço entre a trave e Barbosa, que esperava pelo cruzamento, para desempatar! – explicou, inocentando o goleiro:
– Ele fez o lógico. Quem fez o ilógico fui eu!
E só mesmo a ilógica e muita coragem para pôr fim à festa que tomara conta do Brasil do início da Copa ao gol de Ghiggia, a 11 minutos do fim. O carrasco uruguaio garantia que não havia se impressionado quando deixou o vestiário para trás e viu o Maracanã repleto de torcedores que já planejavam como seria a comemoração.
– A multidão nunca me impressionou, nunca dei importância à torcida. O que me preocupava era jogar e ganhar, porque nunca gostei de perder! – disse, fortalecido pela quebra do favoritismo brasileiro:
– Quando o primeiro tempo acabou 0 a 0, já consideramos um triunfo porque o Brasil vinha vencendo todo mundo de goleada. Depois do gol do Friaça, decidimos ir atrás da vitória. Com a virada, as camisas que fizeram com a inscrição “Brasil campeão do mundo” acabaram encalhando…
Ghiggia parecia ter a nítida noção do prejuízo que causara aos brasileiros. Um prejuízo muito maior do que o valor de simples mercadorias que ninguém mais queria. Tanto que ele, até os últimos anos de vida, ainda cobrava para dar entrevistas.
– Eu cobro mesmo. Certa vez, uma emissora de TV peruana esteve aqui em minha casa e recebi sete mil dólares. A imprensa uruguaia parece não saber o que represento! – disparou o eterno camisa 7 celeste, que conversou conosco sem cobrar um centavo sequer.
A certeza que Ghiggia tinha do que representa para a história do futebol uruguaio se fazia presente quando assumia, de fato, o papel de carrasco. Como num ritual macabro, numa tentativa de não deixar que seu feito fosse esquecido, fazia questão de repetir a frase que jamais saiu da cabeça dos brasileiros:
– Só três pessoas calaram o Maracanã: o Papa, Frank Sinatra e eu! – afirmava, incorporando a seu gol toda a dramaticidade do fato:
– Foi o gol mais importante já marcado no Brasil. E talvez o mais triste também. A Copa do Mundo foi feita pelos brasileiros, que levantaram um estádio para o Uruguai ser campeão mundial!