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Marcelo Mendez

O EMPATE, O PIANISTA E UM PUNHADO DE EMPANADAS

por Marcelo Mendez

“Só sobraram restos
E eu não esqueci
Toda aquela paz
Que eu tinha…

Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado
À meia-noite, à meia luz
Pensando!”


Seguia a minha vida em 1978. A tal Copa do Mundo, idem.

O empate na primeira partida contra a Suécia meio que desanimou os corações em samba dos meus iguais brasileiros. Minhas observações, acerca dos adultos que me cercavam, me davam a certeza disso.

No enorme quintal da Avenida das Nações, entre as quatro casas que ali estavam, eu vivia rodeado de primos e primas, além dos meus tios e da minha bisavó Benedita a quem chamávamos carinhosamente de “Mãe Dita”.

Meu primo Tine, o mais velho dos primos, trabalhava muito e não me parecia se afetar com as coisas do escrete canarinho. Estava mais preocupado com o seu Santos, assim como seu irmão, meu outro primo Zé Carlos, que já trabalhava em seu ateliê como alfaiate. Zé era craque de bola, gente boa e quem mais me suportava. Adorava ficar enchendo seu saco enquanto ele costurava aquele monte de ternos, calças e bainhas.

Aparentemente, a vida no quintal dos Mendez seguia uma normalidade, minhas primas estudando, trabalhando. Mas foi a prima mais nova, Marlene, quem mais me chamou atenção naqueles dias.

Com 16 anos em 1978, minha prima estudava e ficava no quintal ajudando Tia Leonir com as coisas da casa. Também ajudava minha mãe, cuidando de mim e de minha irmã e escutava um disco cuja musica que mais gostava, tinha esses versos, já citados.

Eu já sabia ler e ao ver na contracapa do bolachão, descobri que a canção se chamava “Meu Mundo e Nada Mais”, cantada por um cara de nome Guilherme Arantes, que aparecia na capa do disco em uma rua deserta, com uma roupa preta, olhando para um piano solitário.

Eu achava a música linda, mas a impressão que eu tinha do moço que cantava era de que ele estava muito triste e precisava de uns primos para ajudá-lo.

“Se eu vir ele um dia, vou dar um abraço nele…” – pensava.

Demorou para vê-lo, mas isso é outra história…

Fato é que, naquele momento, não foi possível eu ajudar o moço triste do piano solitário, colocado no meio da rua.

Uma outra coisa ia acontecer na segunda rodada daquela Copa, que me marcaria fortemente. Era o jogo Brasil x Espanha e o resultado final, não sei se importa muito.

Outras coisas, além de placares, interessam para a vida.

A Descoberta da Espanha

Em 1978 eu já tinha um amigo do peito. Era o Kleber.

Ele morava na casa ao lado da minha, junto com seus pais e seu irmão Marcos, três anos mais novo que ele. Nossas conversas se davam através de um muro, que vencíamos com o auxílio de uma cobertura para o registro da água, que ficava em nossos quintais. Subíamos ali e batíamos altas horas de papos.


Kleber não podia sair muito dali, seus pais trabalhavam e ele e o irmão ficavam aos cuidados da dona da casa que eles moravam de aluguel, uma senhora muito brava, de voz forte e enrolada, de nome, Ângela.

“Venga ticos, ta na hora”

Não sabia na época que aquilo era sotaque. Para mim, ela falava errado e comentei isso com meu pai, certo dia. Ele me corrigiu;

“Ela é espanhola, de um lugar que se chama Espanha.”

“Hummm… tá bom”

Levou uns dias para eu ir la na enciclopédia Barsa que a Tia Leonir havia comprado, para saber o que diabo era Espanha. Quando soube, deduzi que deveria ser um lugar de gente bem brava, visto que a Dona Ângela pouco sorria e o marido dela menos ainda. Me pareceu um lugar o qual eu não queria estar.

Eis que de repente, ao perguntar para o Zé Carlos sobre o próximo jogo do Brasil, vem a minha surpresa:

“Será contra a Espanha, Marcelo. E temos que vencer…”

Réquiem para a Emoção. “Vá chamar…”


Do dia do jogo, me lembro que o céu pouco sorriu para nós.

Uma bruma pesada de junho, em um dia de cor acinzentada, com uma garoa grossa e uma manhã fria, diferente de todo o sol lindo do primeiro jogo, apareceu para saudar o dia do jogo no Parque Novo Oratório.

Não havia tantos programas de esportes na TV, as comunicações eram bem precárias e os boletins todos se davam pelo rádio. Meu tio João ouvia a todos, meu Pai estava bastante apreensivo, mas não pelo jogo.

Outras coisas aconteciam na Argentina, coisas que não cabem nas recordações de um menino de 8 anos, que depois viriam a fazer parte da vida de um moço, de um homem de outro tanto punhado de anos, e que me fizeram ter toda a saudade de voltar a ser menino.

A hora do jogo se aproximava e o nosso quintal enchia de gente. Primos, tios, amigos, viriam para ver o jogo conosco. Nessa hora, minha mãe me chamou e recomendou:

“Vai lá no quintal do Kleber e chama ele e o Marco para ver o jogo aqui, Marcelo”

Feliz da vida, eu fui. Mas eles não estavam lá…

A Descoberta das Empanadas!


Chegando na frente da casa, não havia campainha, nada do tipo. Chamei como sempre fazia:

“Kléééééééberrrrrrrrrrrrrrr!!! Marquiiiiiiiiiiiiiinhuuuuuuuu!!!”

No término do meu berro, Dona Ângela saiu:

“Que queres?! Como grita!!”

Meio encabulado, respondi:

“Minha mãe mandou chamar o Kleber e o Marco pra ver o jogo la em casa…”

“No quero saber de juego! Tampouco me importa. Eles não estão em casa, não tem ninguém, só yo”

Nunca vou entender o que deu em mim naquele momento. Eu era uma criança de 8 anos, na frente da casa de um vizinho, chamando um outro amigo… Era muita coisa para pensar, passados 40 anos não sei se consigo chegar à conclusão alguma. Mas arriscarei-me:

Por puro coração de criança (creio eu…) eu olhei para o fundo dos olhos daquela senhora espanhola e perguntei:

“E a Senhora?”

Ela ficou parada, bastante surpresa:

“Yo o que, Tico?”

“A Senhora num vai ver o jogo? Pode ir la em casa comigo…”

A mulher ficou com a voz embargada, com olho meio que marejado, não conseguiu mais ficar brava, nem nada do tipo. Me disse que seu marido e sua filha estavam trabalhando, que Kleber e Marcos foram com os pais na casa de um outro parente, que não queria ir na casa de ninguém e então eu falei:

“Ah, então posso ver com a Senhora aqui”

Ela não conseguiu me falar não. Segurou o que me pareceu um choro, aceitou minha proposta desde que eu avisasse minha mãe que eu lá estaria. Deixei recado com meu Tio Marinho que estava indo lá para casa. Entrei, então, em sua cozinha.

Um cheiro forte e muito bom vinha dalí. Olhei para a mesa e tinha uma travessa de algumas coisas que eu achava que era um punhado de pastéis. Ela ligou sua Tv e quando me viu olhando para o prato, me ensinou:

“Son empanadas, queres?”

Quis…

O Jogo? Ah, claro… O Jogo:


Foi uma porcaria!

Um 0x0 enfadonho, com o zagueiro Amaral tirando um gol da Espanha de cima da linha, o que não a deixou muito feliz e para falar a verdade, pouco importa. O bom da Copa foi outra coisa.

Por 90 minutos, comendo a melhor empanada da minha vida, eu e aquela senhora espanhola rimos, brincamos, torcemos, nos divertimos, como se o mundo fosse de fato algo muito bom. Aquela tarde me marcou fortemente para tudo que vivi depois em minha vida e eu procurei guardar a lembrança com carinho, por saber que ela não se repetiria.

Acabado o jogo, voltei e minha mãe não entendeu muito, mas ficou tudo ótimo.

Pouco tempo depois, mudamos para nossa casa nova que havia ficado pronta e não falei mais com Dona Ângela. Ela não me chamou mais para comer empanadas, também não a convidei mais para ver jogo na minha casa. Como que por magia, a vida nos reuniu aquela tarde, porque aquilo era o que tínhamos para viver.

“Só sobraram restos
Que eu não esqueci
Toda aquela paz
Que eu tinha

Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado…

(Guilherme Arantes, “Meu Mundo e Nada Mais”)

Vivemos.

E ao escrever essa parte da minha vida com as Copas, concluo definitivamente, que esse troço de futebol é de fato, bom pra caralho…

 

 

O MUNDO COLORIDO DE 1978

por Marcelo Mendez


Era uma manhã ensolarada de junho de 1978.

Por entre alguns orvalhos que molhavam os pés de frutas do velho quintal da Avenida das Nações, em Santo André, no Parque Novo Oratório, o dia amanheceu claro, colorido, com um sol bonito, que começava a iluminar a rua da minha casa, que naqueles tempos, ainda era de terra.

Aliás, esqueçam esse troço aí de São Paulo, a metrópole era muito distante do Parque Novo Oratório.

O bairro em que nasci era parte do grande loteamento do segundo sub-distrito de Santo André, iniciado nos anos 50 e que àquela altura, crescia aos borbotões. Minha família estava ali já desde os anos 40 e nosso quinhão de terra no meio daqueles morros e descampados já estava garantido.

Mas nossa vida ali era longe demais das capitais. E, para encurtar a distância, havia já a televisão…

As novelas da minha mãe, o programa Vila Sésamo, a sessão bang bang, os desenhos da Hanna Barbera, eu começava a ver o mundo através daquele trombolho de cabos, válvulas, seletores, antenas e outras mandingas que se fazia para melhorar a imagem. E foi com ela, a velha TV Philips preta e branca, que comecei a ver e me encantar pelo futebol.

Eram outros tempos. Não existia futebol ao vivo e francamente, ninguém fazia muita questão de ver tudo que era jogo na TV. Naquele tempo as pessoas ainda saíam de casa, se falavam, tinham muito mais coisas para se descobrir na vida pré-celular. Eu mesmo esperava ansioso pelo “Futebol Compacto” da TV Gazeta, às 20h do domingo.

Foi na voz do velho Peirão de Castro, que me apaixonei pelo futebol na TV. E nossa relação estava ótima, eu estava satisfeito. Porém, já há alguns dias que eu sentia que alguma coisa diferente estava para acontecer.


Via meus primos comprando fogos de artifício, minha mãe preparando guloseimas, meu tio João pendurando bandeirinhas verdes e amarelas por todo quintal, as primas eufóricas falando do goleiro Leão e meu pai, que há dias tramava alguma coisa, finalmente revelou o segredo naquela manhã, logo que cheguei para tomar café:

– Filho, bota sua roupa do Brasil, que hoje vamos na casa da Tia Dete ver a Copa do Mundo. Na TV em Cores!

Não sabia o que era Copa do Mundo, assim como não entendi o que eram as benditas “Cores”. Mas a julgar pela alegria do meu Velho, imaginei que devia se tratar de algo muito bom. Sendo assim, coloquei a minha camisa amarela, meu calção azul, meu kichute novo e la fui eu, para casa da Tia. Era o começo da minha aventura por algo que viria a se tornar muito caro à minha vida.

Era a Copa do Mundo…

Mitsubishi e Psicodelia Ludopédica

A vida era dura na periferia de Santo André em 1978.

As linhas de ônibus que abasteciam a região eram todas precárias, os trajetos, muitos deles sendo feitos em ruas sem asfalto, acabavam por arrebentar os ônibus que já num eram lá essas coisas. Mesmo assim, eu me divertia.

Minha Tia Dete morava em São Matheus, na Zona Leste de São Paulo. Para irmos até lá, pegávamos o “Santo André/Guaianazes”, que rasgava pela Rua Oratório afora. Da janelinha, onde eu via o mundo passando, tudo era festa e passear seja lá para onde fosse, era um grande barato. Afinal de contas, tudo fica imenso e épico quando você é criança. Inclusive a saudade de ser menino. Fernando Sabino, falou disso muito bem…

Chegamos!

Na casa da Tia, festa, comida, bebida, música, a vitrola tocava um disco do Agepê, com hits como “Menina de Cabelos Longos”, “Moro Onde Não Mora Ninguém” entre outros. Os primos conversavam, as primas riscavam o chão no samba rock e eu me desvencilhei disso tudo para ver o que tanto empolgava meu pai e meu Tio, que falavam alto na sala da casa:

– Mauro, veja só; É a cores, 28 polegadas e tem controle remoto!!!

O Tio Moreno apresentava o aparelho com a pompa de um Mestre de Cerimônias de gafieiras imortais. Meu pai que olhava pra tudo aquilo extasiado tentava operar a coisa através do controle remoto enorme que meu tio entregou a ele. E depois de algum esforço, conseguiu.

E ao ligar aquela coisa, quem ficou extasiado fui eu…

O Campo é Verde!


Menino, aos 8 anos de idade, pela primeira vez na vida vi o campo de futebol verdinho, bonito, com as riscas brancas. Vi a camisa canarinho, de fato amarela e a Suécia, adversária do Brasil jogando com um azul forte, bonito. Não conseguia, tirar os olhos daquela tela!

Por entre o jogo e as conversas, os adultos comiam pipoca, xingavam um cara de nome, “Coutinho”, alguns diziam que Reinaldo não podia jogar, meu Pai não concordava, dizia que o mesmo era craque. Minha prima Miriam defendia o goleiro Leão após a Suécia abrir o placar e meu primo Edmilson queria Waldir Peres ali no lugar do goleiro coxudo.

Eu não tava nem aí. Enquanto comia meu tacho de pipocas, eu olhava para cada milímetro colorido daquela tela. Que coisa mais linda! A vida então tinha cor na tal TV Mitsubishi, que meu tio comprou justamente por conta da tal de Copa.

O jogo seguia.


Reinaldo empatou o jogo e todo mundo se abraçou. Na hora do gol dele, a transmissão da TV Globo tocava uma batucada e eu gostei muito. No segundo tempo, pouca coisa aconteceu até o final. Apenas no último minuto de jogo, o árbitro resolveu encerrar a partida com a bola vinda da cobrança de escanteio do Nelinho, no alto, antes do Zico cabecear para fazer 2 a 1.

Na casa da Tia Dete, isso gerou as mais espetaculares teorias da conspiração, sem falar que a Suécia, virou o maior dos inimigos de todos ali. Nem liguei.

Ao término do jogo, enquanto todos voltaram para desconjurar o árbitro, xingar a Suécia e o tal Coutinho, eu segui de frente para a TV em cores. E naquele dia, isso me bastou para ser feliz, para me agradar o coração.

Graças a tal da Copa do Mundo, descobri que a vida podia ser colorida.

O MENINO E AS COPAS

por Marcelo Mendez


São boas as lembranças que tenho de 1978.

Eu já morava na Rua Tanger, no Parque novo Oratório, mas a minha vida ainda estava toda atrelada à velha casa da Avenida das Nações, onde nasci e onde moravam meus tios e primos. Era ainda a época do loteamento do 2º sub-distrito de Santo André, quando muita gente chegava para o lado de cá do rio que divide a cidade.

Um tempo diferente, com muito terreno vazio, ruas de terra e a vida sem pressa. Eram os anos em que as árvores do bairro ainda venciam a necessidade de se ter garagens para carros. Os carros, aliás, eram bem poucos no Parque Novo Oratório. Assim como os telefones…

Na rua em que morávamos, havia apenas um, o da Angélica. As pessoas davam uma graninha para ela e, então, recebiam recados, avisos de entrevistas de empregos e com um pouquinho de moedas a mais, dava até para ligar para o parente distante, maioria no Nordeste. Um dia daqueles, meu pai fez uso do serviço e depois voltou para nos contar:

– Liguei la para Tia Dete, vamos assistir a abertura da Copa na casa dela, em cores!

Copa?!


Aos 8 anos de idade eu não sabia bem ao certo o que era tal de “Copa do Mundo”, mas ouvindo as conversas dos primos mais velhos descobri que seria jogada num lugar chamado Argentina e que era uma coisa de futebol, então gostei muito. E por um tempo da minha vida, gostei demais.

Para contar dessa minha viagem pelo mundo das Copas, começa aqui essa série no Museu da Pelada. Semanalmente, sempre as quartas, contarei de um episódio ligado a essa competição que tanta gente move. Venham conosco e fiquem ligados que amanhã a primeira publicação sai do forno!

HAMLET NO LAVÍNIA E O BLUES DO PICOLÉ DE FRAMBOESA

por Marcelo Mendez


(Foto:Fabiano Ibidi)

Sim, o cronista está feliz.

Com todos os raios multi coloridos de um domingo em fúria e seu calor absolutamente dantesco, aqui estou eu, poeta das letras ludopédicas, buscador renitente de um verso lírico, sagaz caçador de poemas improváveis, vivendo um daqueles amores que redimem o homem de todas as besteiras que ele faz.

Um instante na vida em que nada parece incomodar. O pernilongo, a conta de luz, o entregador de gás que demora, a pia que entope, o cachorro que late, o esquilo que corre a cerca… Nada atrapalha e tudo vira verso. Toda a Poesia do mundo reina no olhar de um homem em meio a umas de amor.

Pois é…

Munido de todo esse sentimento, parti do Jardim Lavínia em São Bernardo para ali, cobrir a Copa Regional. Me foi dito que ali aconteceria algo parecido com uma pré temporada dos times de várzea. Uma besteira, copiada dos clubes profissionais que decerto em outros tempos que não estes de amor, eu reclamaria horrores, rogaria todas as pragas do universo contra a pauta e arrumaria boas dores de cabeça ao bom editor.

No entanto, sabedor das coisas da várzea que sou, bem imaginei que dali não sairiam grandes coisas. Afinal, depois das festanças do término dos principais campeonatos da várzea do ABC, calor de novembro, domingo de manhã, enfim; ninguém ali correu muito.

O jogo era entre Jardim do Ipê e Águia Branca. Sob um sol intenso de 35 graus, em uma grama sintética que jogava isso para uns 40 graus sem dó, as duas equipes duelavam bravamente em preguiça de fazer inveja a Dorival Caymmi. Uma leseira para ser curtida ao som de Bob Marley a cantar seu hino “Catch a fire”. Uma canseira tamanha, que contaminava a todos ali na cancha.

Dona Raquel, 59 anos, moradora do Ipê, ali a meu lado se queixava do preço do sorvete de picolé e do serviço apresentado pelo moço que suava em bicas para ganhar seus trocados.

– Eu até queria comprar, mas olha lá onde ele tá… Lá do outro lado. Não vou dar essa volta debaixo de sol.

Munido do mesmo drama, Seu Salvador, 61 anos, morador do Bairro Assunção, se apertando em uma pequena sombra ao lado do campo, relatava ao cronista sua decisão:

– Eu queria até tomar um café afinal são onze horas. Mas com esse calorão, sabe como é… Uma cervejinha é mais de Deus né…

Não querendo atrapalhar a sagração do simpático senhor, nada disse, apenas sorri. Tomando como um consentimento de causa, lá foi Seu Salvador em rumo da cerveja santa a refrescar suas quenturas.

Segui ali.

Príncipe cansado como um Hamlet resoluto, por detrás de meus óculos escuros, permaneci atento a qualquer outro réquiem de encanto que por ali reinasse. Vez por outra, dava uma olhadela no campo. Via por lá uns meninos tentando entender o porquê de seus suores em bicas mas de imediato entendi que ali não estava o que eu procurava. Não seria da cancha que sairia o verso. Por vezes é assim.

A poesia do futebol de várzea mora na improbabilidade, no imprevisto, no insólito. No que há de mais corriqueiro aos olhos nus da normatividade das rotinas diárias, está o que na várzea, inevitavelmente acaba se tornando épico. Sempre esta lá. Toda hora tem algo a se tornar imortal por aqueles cantos. Cabe ao cronista ficar atento para ver. E se por vezes não ver, bem…

Dei a volta no campo para Dona Raquel em busca dos picolés. Comprei dois de Framboesa…

 

O CORAÇÃO DE JOJÓ E O TÍTULO DO CAFEZAL

por Marcelo Mendez


(Reprodução Autônomos)

Eram jogados no estádio do Baetão, alguns minutos de jogo.

Por um punhado de sonhos e mais algumas ambições poucas que se almeja a miúde, os times do Cafezal e do Esporte Clube Cordeiro lutavam por um título na final do campeonato da primeira divisão da cidade de São Bernardo. Primeira, que na verdade é segunda…

As equipes estavam então entrando para elite do futebol de várzea local, a série especial. No estádio tinha de tudo; instrumentos de samba, cânticos de exaltação, versos em fúria e muita animação.

Era uma final de campeonato de várzea.

No entanto enquanto os times corriam pelo campo, uma movimentação chamou atenção do lado dos bancos. Um homem ali por volta de seus 50 anos deitou no chão e precisou de um atendimento.

Imediatamente a portentosa e solerte equipe do “Remoção Emergência Você Amparado” correu para atender o homem. Cuidados tomados, pressão aferida, batimentos no lugar, tudo certo. Foi só um susto e o diagnóstico:

Emoção demais.

– Calma Jojó, o jogo ta só começando – gritou um ao lado.

Jojó…

Caro leitor que me acompanha aqui nessas linhas de futebol de várzea, será que é capaz de entender o que se passa com uma final de segunda divisão do futebol de várzea?

Imaginem; o coração de Jojó não bate por nenhum super atleta, não está a pulso por nada de ouro, prata ou bronze, nada disso absolutamente. Jojó está ali a se esbaldar de emoção pelo seu time o qual é técnico, o Cafezal, em uma final de futebol de várzea.

Por entre os caminhos os quais se chega a uma partida de futebol de várzea, muito mais do que as trilhas que nos levam aos terrões onde são disputados os jogos, está o coração dos homens da várzea.

São pessoas simples, abnegadas, que não têm maiores esmeros de planejamentos, que não fazem curso de gestão esportiva, que não manjam nada de marketing, nem usam mídia training, nem nada do tipo. A guiá-los em sua sina futeboleira varzeana eles só têm o coração.

É de paixão e poesia que vive um homem da várzea. A ele nada demais está reservado a não ser o amor pelo que faz, nada mais lhe resta senão a pureza do que sente, do que o motiva, do que o conduz, do que de mais santo corre por suas veias.

Domingo no Baeta, Jojó provou isso.

Sarou, bebeu água, gritou, vociferou táticas mirabolantes, improváveis e viu o seu time, o Cafezal, segurar um empate em 1×1 para sagrar-se campeão da Primeira Divisão (Que na verdade é segunda…) da cidade de São Bernardo.

E depois do jogo, o único som que se ouviu na cidade, foi o da batida do coração de Jojó.

Parabéns, Jojó!