por Lucio Branco
Destaquei, na minha última contribuição à “Futebol Arte”, um trecho da “Nota à 2ª edição” de “O negro no futebol brasileiro” escrito pelo próprio autor, Mario Filho: “Daí a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que faz questão de ser preto. Não para afrontar ninguém, mas para exaltar a mãe, o pai, a avó, o tio, a família pobre de pretos que o preparou para a glória”. E emendei: “Complexo. Fica a promessa de uma crônica futura a respeito. Nesta não há espaço”.
Decidi não adiar a promessa.
Realmente complexo o que afirma Mario Filho, também autor de Viagem em torno de Pelé. Quando redigiu essa “Nota à 2ª edição”, corria o ano de 1964, o mesmo em que fora lançada a biografia da encarnação pública – e mítica – de Edson Arantes do Nascimento. Com certeza, o jornalista se sentia muito familiarizado com o biografado para pontificar sobre o que fosse a respeito da sua imagem e da sua carreira. Admito que não a li, por rara que é a sua presença em sebos. Ao que consta, após algumas poucas edições iniciais, ela nunca mais foi publicada. Esse desconhecimento pode comprometer, em parte, o meu parecer. Mas, pelo trecho da “Nota”, não é difícil concluir que o autor defende uma versão particular da negritude do Rei que, muito provavelmente, é a mesma do livro.
Eis um bom teste para os cronômetros: na velha polêmica sobre quem é o “maior jogador de todos os tempos”, medir a velocidade da aparição do veredicto final “Pelé é um merda”. Quase fatalmente ela comparece para castrar qualquer possibilidade de debate. Em seu próprio país de origem, prefere-se não falar por muito tempo sobre Pelé. Corre-se até o risco de acabarem o elogiando como jogador…
Cabe então perguntar: se Pelé é um “merda”, o que é a sociedade que o pariu?
O racismo de fundo encerrado nessa sentença, embora nunca declarado, é fruto de um ressentimento que serve como um desses raros resumos pertinentes do Brasil. Digo resumo, não redução. A imagem do país se tornou indissociável à imagem de Pelé desde que, em 1958, ele o ajudou a pô-lo definitivamente no mapa. Todas as gerações de torcedores que vieram após a sua consagração mundial na Suécia nunca puderam lhe ficar indiferentes. Teria sido ele um astro beneficiado pelo fato de ter coincidido o início da sua carreira com o advento da era da comunicação de massa? Afinal, há quem sustente que Leônidas da Silva e Zizinho, para citar dois craques nacionais de gerações anteriores, só não receberam o mesmo título de realeza porque a repercussão midiática de suas jogadas era inevitavelmente menor. Mal havia TV, o rádio tinha menor alcance, os cinejornais que cobriam o futebol eram mais escassos etc. Mas não foi apenas essa a vantagem de que tirou proveito a sua consagração. No caso do mais popular camisa 10 da história, ser um gênio que se destacava entre tantos outros no Brasil e no mundo contribuiu bastante para a conversão dos fatos em lenda. Ou vice-versa. O vídeo-tape, contrariando o irmão mais novo de Mario Filho, ignora a burrice ao reexibir a sua antologia de feitos que seriam pouco críveis caso não fosse o seu sempre solícito testemunho.
É mais que sabido que Pelé, ao longo da vida pública, cultivou uma persona à sombra do equívoco. Pouco tempo antes do seu recente afastamento dos flashes, ele renovou o seu repertório de ditos que se sairiam melhor se fossem não-ditos. A esquizofrênica polarização entre Pelé e Edson até pode fazer sentido pontualmente, mas também diz muito do seu malfadado senso de autopromoção. Sua condescendência com regimes autoritários e federações desportivas idem não tem como não desabonar a sua reputação. Um entranhado conservadorismo (que Mario Filho involuntariamente detecta na referida glorificação da sua família) é, sem sombra de dúvida, a bússola dos seus descaminhos pelo território da opinião livre. Agora, bater única e exclusivamente nessa tecla, como se faz quase sempre, é outra coisa. Parece mais um exercício bem-pensante isento de autocrítica. Um vício de classe média no seu presumido papel de formadora de opinião. Jogadores brancos com perfil ideológico semelhante, ou até mais sectário, não são tão execrados. O Brasil é o único país em que se odeia Pelé consciente ou inconscientemente em igual medida. Em outros, o seu nome inspira restrições mais refletidas. Até na Argentina se elabora melhor a crítica ao maior do mundo – apesar de, por motivos óbvios, não o reconhecerem nesse patamar.
Num período de maior lucidez, em 1978, Caetano Veloso, numa longa entrevista conjunta com Chico Buarque, Aldir Blanc, Edu Lobo e outros artistas para a Revista Homem, questionou os seus pares sobre a expectativa de genialidade de Pelé também fora das quatro linhas: “Pedir a ele mais que isso seria pedir energia demais a quem já dá energia em demasia” – disse ele. Realmente, esperar que o mundo esportivo gerasse um outro Muhammad Ali é até perverso. Tamanha sintonia nesse grau de potencialidade entre corpo e intelecto não é um fenômeno assim tão assíduo na espécie. Mais inimaginável ainda numa mesma geração. O campeão dos pesos pesados, que sempre fez questão de superlativar a própria excelência, também fez questão de se curvar à majestade de Pelé na sua despedida do Cosmos.
Não é desconhecido que há outras obras sobre a vida de Pelé além da biografia de Mario Filho. Entre os filmes, há Isto é Pelé, que repassa a sua carreira para apresentá-lo promocionalmente aos EUA, justamente quando da sua contratação pelo Cosmos. E, mais recentemente, Pelé eterno. Neste documentário, para corresponder ao que estava textualmente no script, Pelé ecoa tardiamente o Mario Filho da “Nota” de 1964: muito convicta e oportunamente, afirma ter orgulho de ser negro. O discurso teve que ser reescrito ao longo do tempo. Não poderia mais repetir aquele evasivamente conciliatório que adotara então no auge da forma e da decorrente e inesgotável conquista de títulos. Mas o tom é velho conhecido, revela-se na clara intenção de calar ou satisfazer a patrulha contra ele, apenas. Antes, declara ter orgulho de ser brasileiro, como se a primeira afirmação atenuasse (ou desculpasse) a segunda. Tudo isso é bem perceptível para quem é atento aos sinais. Anos depois, Pelé regressaria aos braços da “democracia racial” ao desaconselhar a denúncia aberta do goleiro Aranha contra o racismo criminoso da torcida gremista. Mas a tal “democracia racial” não é simples. Suas dimensões são continentais, como as do país que a abriga. Falei em patrulha, anteriormente. Tomo cuidado para não reproduzi-la, eu próprio. Afinal, cobrar orgulho racial de Pelé é como o futebol brasileiro no período amador pesquisado por Mario Filho: um esporte praticado principalmente por brancos.
O fato é que há um racismo autorizado no Brasil cuja senha é Pelé. E pior: além de não ferir a tão cara instituição da “democracia racial”, não é considerado racista quem o pratica. E vou além: a garantia de apoio é imediata, na maioria das vezes. É um incansável apedrejamento público. Nada mais culturalmente legitimado do que canalizar todo o ódio racial contido na nossa formação histórica sobre a sua imagem. Não há Rei cuja entronização pudesse ser mais indesejada por uma tão larga faixa de súditos. Por aqui, a sua deposição é um evento longamente esperado. Em favor da mais pura aversão, o fator local é, inclusive, deixado de lado. Se é Maradona o candidato mais cotado na linha sucessória, que o cetro vá logo parar em suas mãos. É esse o raciocínio que prevalece. A igualmente pusilânime rivalidade Brasil X Argentina passa a contar com a inesperada adesão da nação adversária: fazer o elogio de Maradona, mesmo não pondo muita fé no que se diz, é a melhor forma de desqualificar o Atleta do Século.
Mais perto do fim da carreira, Diego Armando Maradona revelou ter a mesma habilidade de craque num outro domínio onde o seu concorrente brasileiro, apesar do esforço, é um rematado pereba: a autopropaganda. O argentino intuiu que ela é a alma do negócio. Negócio não no sentido do business, é certo, mas de angariar um capital político que Pelé nunca poderia ter – ou, como é notório, mesmo querer. O que é o engajamento à esquerda de Maradona senão o resultado da descoberta da fórmula de encarnar a antítese de um Pelé sempre servil aos interesses mercadológicos que cercam o esporte que o consagrou? Sua consciência contra os arbítrios da FIFA e outras instituições mafiosas é bem tardia. Antes dela, a alienação era a regra da sua condição de nouveau riche do futebol mundial. Sua passagem pelo Nápoles foi o auge do seu deslumbramento. Vamos condená-lo? Seria injusto. Antes de atirar a primeira pedra, seja um gênio precoce catapultado da plebe mais anônima para o mais súbito e cintilante estrelato. Quem está preparado para tanto em tão pouco tempo? Maradona não foi o primeiro e nem será o último. E, vejam: estou falando de Maradona. É humanamente compreensível sucumbir à combinação “juventude & contrato milionário” que agracia alguns raríssimos talentos da bola. Bravamente, ele conseguiu chegar onde muita gente não acreditava que conseguiria: sobreviver. Enfim, é possível haver quem ache que ser Don Diego é fácil?
A questão é que Maradona soube como erigir a sua imagem em oposição a de Pelé. Para melhor construí-la, era melhor, no mínimo, desconstruir a do rival –quando não tentar destruí-la. Os golpes, não raro, foram baixos. Sabedor de antemão da inegável simpatia que a manobra surtiria, procurou se colocar na contramão da trajetória de um jogador que ele próprio definiu como o único em condições de disputar com ele a posição de maior de todos. Os citados Leônidas e Zizinho, mais o seu conterrâneo Di Stefano, e Garrincha, Puskas, Cruyff, Beckenbauer, Zico e outros, automaticamente, foram rebaixados a um outro plano de importância.
Indiretamente, a culpa é de Pelé. Mais poderoso que o seu marketing é o seu anti-marketing. Especialmente quando manipulado pelo seu maior interessado. Muito embora involuntariamente Pelé o promova, invariavelmente alheio da impopularidade de alguns dos seus gestos e falas. Paradoxalmente, “Pelé émarketing” é outra sentença regularmente alardeada no Brasil. Quem a profere costuma exibir uma expressão mais convicta que a de qualquer herói pátrio numa cédula. Isso, como se Maradona também, de outro modo, não se pusesse “à venda” na sua auto-projeção de rebeldia. O craque argentino soube quando e como se postar ao lado de Hugo Chávez no palanque do IV Cumbre de Las Américas, em Mar del Plata, em 2005. Ou como agradecer a medicina cubana por tê-lo salvo da morte, tatuando Fidel e Che. De resto, há quem diga que um idoso Pelé não convence nem mesmo como garoto-propaganda de remédio contra a impotência.
A resistência política em campo e fora dele produziu exemplos de maior envergadura e que não dão margem à suspeita. Falo de jogadores que pagaram o seu respectivo preço pelas atitudes que tomaram conscientemente no auge das suas carreiras, quando tinham muito a perder. Cada um a seu modo, e fazendo jus à escalação no time da dissidência, souberam dar mais e melhor o seu recado: Afonsinho, Paulo Cézar Caju, Nei Conceição, Sócrates, Wladimir, Reinaldo, Nando Antunes, Carlos Caszely, Cristiano Lucarelli, Cantona e outros.
O filão anti-Pelé funciona com muita facilidade. É aí que vem a maior curiosidade: patrícios em nada inclinados ao pensamento progressista compram sem hesitar a versão do “argentino revolucionário que não nega as suas raízes” contra o “negro de alma branca que se vendeu ao sistema”. (Por sinal, o uso indiscriminado desta expressão pode ser bem mais racista que o racismo que pretensamente acusa.)
No Brasil, Maradona passa por branco. Quando se trata dele, nosso complexo colonizado é suspenso: – abre-se mão de condenar as suas origens étnicas não europeias para cair no mais raso julgamento moralista sobre o seu comportamento. Para a ideologia do senso comum que, por estas bandas, é uma profissão de fé, a natureza patológica do vício é voluntariamente descartada. Um preconceito é substituído por outro, assim como se saca um jogador que não se encaixa muito bem no esquema para a entrada de um reserva. Nada mais afeito às regras do jogo – em ambos os casos.
Pelé e Maradona encarnam toda sorte de paixões populares, representações coletivas, expectativas sociais. É uma carga imensa sobre dois homens que também têm a sua dimensão de mortalidade. Queiram ou não, são mitos em vida, condição também reservada a alguns poucos humanos, não se pode esquecer. Foram condenados por força da própria genialidade a ocupar a boca de cena desde antes de completar a maioridade. Trataram de corresponder ao papel que se esperava deles na encenação tragicômica que a indústria do espetáculo produz. É uma fatalidade. Sob todos os holofotes, nunca sairão do palco, território da sua glória e solidão.
Ainda no terreno da representação, há Pelé eterno e Maradona by Kusturica. Os dois filmes pecam pelo excesso de reverência. Evidente que obras desse naipe não poderiam fazer a crítica dos retratados quando são eles próprios os seus colaboradores mais interessados. E, fatalmente, seus valiosos garotos-propaganda de contrato assinado. Ambos os documentários os abraçam a ponto de tentar refletir exclusivamente a sua visão de mundo. Certamente, uma condição também previamente firmada por contrato. OK, a isenção, tanto no cinema como na vida, é uma ilusão. Mas seria necessário que os cineastas em questão (Aníbal Massaini Neto e Emir Kusturica) tomassem um pouco do seu próprio partido. Ou seja, assumissem uma maior liberdade criativa, engajamento primeiro do artista, ao que ainda me consta. Mas talvez seja ingênuo esperar esse mínimo de projetos dessa natureza. (Para não dizer que não falei das flores: o mérito do primeiro é a pesquisa documental e, do segundo, o seu – embora óbvio – senso crítico.)
Para concluir, reafirmo que entre um fazer publicidade de estimulante sexual e o outro posar ao lado de Chávez mandando a ALCA “ao carajo”, não há assim tanta diferença. Envolver-se a sério nessa discussão extra-futebolística acaba, ao final, reduzindo-se a usufruir da “liberdade” reservada ao consumidor diante de uma concorrida prateleira. Ou você compra uma fantasia empacotada de juventude eterna, ou uma militância pouco confiável numa causa nobre. Aos que insistem na polêmica, resta o critério de decidir qual a propaganda menos enganosa. Creio ser bem mais recomendável que suspendam a polêmica e se atenham à bola. Com ela nos pés, ambos só ludibriavam os adversários. Assim, como gênios criadores que foram, ressignificaram a palavra “mito”.
Escrevi o que vai acima com a mesma serenidade que me inspira o tema desde muito cedo na minha relação com o futebol e o mundo onde ele se situa. Já sei que, caso me leiam, serei contestado por muitos logo de saída. Insisto: na grande maioria dos casos, será ainda a decrépita “democracia racial” a ditar essa reação.
É curioso. Numa nação vocacionada para o Barroco como o Brasil, defender o retrógrado Pelé pode ser uma tarefa libertária.