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MARACANÃ, MAIS UM DESRESPEITO SEM TAMANHO

por Eduardo Lamas


Capa do Jornal dos Sports em 17 de junho de 1950

Não bastasse ser destruído por dentro, ter sua alma arrancada no início da década passada, o Maracanã passa por nova tortura. A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou nesta semana em regime de urgência (o que por si só já é um completo descalabro, como se não vivêssemos problemas muito maiores no país, em especial no mais que maltratado Rio de Janeiro) a troca do nome do estádio de Mario Filho, que permaneceria com seu nome ligado ao complexo inteiro, pelo de Pelé. Não que Pelé, o personagem criado para e por Edson Arantes do Nascimento que se tornou o maior jogador de futebol de todos os tempos não mereça homenagens e não tenha qualquer ligação com o Maracanã, muito pelo contrário. Porém, é um completo desrespeito com Mario Filho, o Criador de Multidões, como bem o apelidou seu irmão Nelson Rodrigues.

Para quem não sabe, Mario Filho foi o maior defensor da construção do estádio para a disputa da Copa do Mundo de 1950, incluindo uma campanha no Jornal dos Sports, que dirigia à época e onde tive o privilégio muitos anos depois de trabalhar em quatro oportunidades (1990/91, 94, 97 e 2002/03). Um povo que desconhece e, pior, desrespeita a própria História está fadado a definhar. É o que temos visto nas últimas muitas décadas no Rio, em particular, no Brasil, em geral. Infelizmente.

Minha ligação com o antigo Maracanã já é bem conhecida por quem acompanha este blog (é só ver algumas postagens lá embaixo). E aquele lugar que em determinado momento de minha vida cheguei a dizer que era a minha segunda casa (com certo exagero, admito) inevitavelmente acabou se tornando um personagem fundamental em vários dos Contos da Bola, livro que estou relançando pela Cartola Editora. Mas o que está nas páginas que você certamente terá em mãos (seja em papel ou em algum dispositivo eletrônico) é o maior e mais emblemático estádio do mundo, não a arena ou ginásio gigante em que se transformou a partir dos anos 10 deste século.

É muito triste saber de mais esta marretada no Maracanã. Parodiando o título de um livro de Jorge Amado, é a morte e a morte do Maracanã. Antes, destroçaram sua alma, concretamente. Agora, simbolicamente.

ARQUIBANCADA VAZIA, CORAÇÃO PLENO

por Paulo-Roberto Andel


Duas da tarde de domingo. Se fosse possível voltar no tempo, há 40 anos eu sentiria o peito bater mais forte com a chance de ir para o Maracanã, chegando lá no máximo às três, com casa cheia ou não. Se estivesse lotado era acompanhar a preliminar. Não estando, era feliz do mesmo jeito.

Com a arquibancada vazia a visão era outra, mas não menos importante para um garoto de dez ou onze anos de idade, sonhando com o mundo, com seus craques e botões. O Maracanã era tão colossal que, mesmo numa tarde de pouco público, o olhar infantil não deixava passar nada: os pequenos burburinhos do outro lado, os personagens da geral, o movimento nas cabines de rádio com os craques da transmissão, as poucas pessoas sentadas perto ou nem tanto, os frequentadores das cadeiras de baixo.

Num outro jogo aquilo ali estava tudo lotado, mas não é ou pode não ser o caso de hoje. Ao longe você vê os vendedores de refrigerante, todos de branco com capacete e o tanque de refresco nas costas – pareciam astronautas. E o moço do cachorro-quente tem uma caixa bem grande. Os vendedores de amendoim são quase todos garotos, deixando o produto quentinho em latas que eles mesmos adaptam. 

Bem no meio de campo tem o cordão de isolamento da polícia, mas só é necessário em dia de clássicos.

Do outro lado pintaram os pés da trave com tinta preta, fazendo duas bordas.

Se o radinho estiver ligado por perto, geralmente do pai e do responsável, logo alguém vai entrevistar o Justino, funcionário da SUDERJ que invariavelmente acerta todas as previsões de público.

Não tendo preliminar ou ela sendo pouco empolgante, dá para ir no corredor e ver as salas das torcidas organizadas, cheias de bandeiras. Ou então espiar o térreo, onde estacionam os ônibus dos times e aí você pode ver os jogadores à paisana. Atrás de um dos gols você vê a estação de trem Derby Club, que sempre traz gente para o jogo; se for do outro lado, tem a turma se esbaldando de bebida no Bar dos Esportes.

Se preferir ficar sentado na arquibancada cinzenta e olhar para cima, o céu vira um lindo círculo formado pela cobertura de concreto – a mesma que, nos grandes jogos, é responsável por aquele eco vigoroso de UUUUUUHHHHH toda vez que alguém acerta um chute perigoso ou, claro, GOOOOOOLLLL quando o nosso time balança a rede e Jorge Curi, Garotinho, Doalcei, Édson Mauro ou outro craque da narração dispara a vibrar. 

Do lado de cá e do lado de lá tem bumbo e samba. É uma certeza marcial do jogo.

Lá pelo segundo tempo eles ligam os refletores, que parecem pequenas estrelas luminosas cravejadas no alto do Maracanã. Quando o goleiro chuta a bola muito alto, ela se perde em meio às luzes por um segundo e, logo no outro, quica no maior gramado do mundo.

Pode ter tido gols, jogadas bonitas, emoção, mas estar naquele lugar marca a criança para sempre em qualquer resultado. Perto das sete da noite, tudo termina, mas aí vem um componente especial: a mão do pai puxando a do filho, orientando, guiando, dando a sensação de que ela estará sempre presente.

Na hora de ir embora, pode ser de carro, trem ou ônibus, tanto faz: dá uma vontade de começar tudo outra vez, para sempre, para sempre. Só de pensar que tem uma bola branca novinha em cima da grama perto da lateral, e que ela vai correr por todo lado naquele campo verde, a gente pensa que a infância vai durar eternamente e o Maracanã estará ao nosso dispor. 

Três da tarde. Uma câmera mostra um campo vazio. Daqui a pouco vai ter jogo na televisão. Cadê o radinho, a bandeira, a sala das torcidas? Cadê o trem chegando, a torcida cantando, a arquibancada enchendo?

O Maracanã agora é outro, mas o sonho permanece. Vai ter outro ano, vai ter outro jogo.

@pauloandel

GERAL

por Paulo Roberto Melo


A primeira vez em que fui ao novo Maracanã, foi no dia 24 de outubro de 2013 – novo Maracanã, novo normal, acho que eu é que estou ficando velho. O estádio havia ficado pronto para a Copa do Mundo de 2014, de triste lembrança para todos nós, e, os jogos estavam servindo de teste para o evento. Vasco x Goiás se enfrentavam naquela noite no jogo de volta pelas quartas de final da Copa do Brasil. O Vasco havia perdido o jogo de ida no Serra Dourada, por 2×1, portanto precisava ganhar por uma diferença de dois gols.

Meu irmão, Carlos Eduardo e eu, chegamos e nos colocamos nas arquibancadas superiores, e só esse nome já dá uma pista do que aconteceu com o bom e velho Maracanã. Tudo era muito diferente. Um estádio bonito, confortável, padrão FIFA, com o mesmo nome, estádio Mário Filho, mas não, não era mais o nosso Maracanã! 


Não tinha mais a dimensão gigantesca do antigo templo sagrado do futebol, onde, num silêncio mortal, o grande Barbosa buscou aquela bola no fundo da rede na Copa de 1950; onde o Ademir Queixada dava aquelas suas arrancadas que enloqueciam o meu pai; onde o Garrincha corria e driblava e parava e corria e driblava de novo e cruzava e fazia gols que o levaram a ser eleito pela torcida como melhor do que Pelé; onde o Pelé fez fila, driblando meio time do Fluminense e cunhou a expressão gol de placa; onde, no mesmo ano, carimbou o passaporte para a Copa de 1970, com uma bomba, aproveitando uma rebatida do goleiro do Paraguai, fazendo estremecer as arquibancadas apinhadas de gente e ainda fez o milésimo gol, contra o Vasco, numa data que antes era conhecida como Dia da Bandeira (19 de novembro), mas acabou virando Dia do Milésimo Gol do Rei Pelé; onde o PC Caju fez embaixadinha na frente do Moisés e foi premiado com um pontapé, que zagueiro que se preza não recebe Belfort Duarte; onde o Gérson calibrou a canhotinha para depois encantar o mundo no México; onde o Rivelino inventou o elástico; onde o rei Zico nasceu, cresceu e se imortalizou, batendo faltas como se jogasse a bola com as mãos, deslocando os goleiros nas cobranças de pênalti e invadindo a área adversária com a bola dominada para fazer gols lindos e alguns… dolorosos; onde o Roberto Dinamite deu aquele chapéu no zagueiro Osmar e fuzilou o Wendel com um tiro de voleio; onde o Maradona, na Copa América de 1989, quase fez do meio de campo aquele gol que o Pelé não fez, mas a bola, prudente, se lembrou da placa, da rivalidade e de tudo mais e preferiu quicar no travessão e ir para fora; onde também nasceram para o futebol o Romário, o Bebeto, o Edmundo, o Felipe e o Pedrinho; onde tantas vezes eu, meu pai e meus irmãos rimos e choramos as alegrias e as dores de tantas vitórias e derrotas. Não, não era mais o Maracanã.

Sei que muitos vão ler estas linhas e me achar um saudosista chato e certamente vão dizer que – “o estádio precisava se modernizar.”; “os tempos são outros.”; “está tudo mais limpo e mais seguro.” Sou obrigado a concordar. Afinal, confesso que uma impressão que eu tinha quando ia aos jogos no antigo Maracanã, era que o estádio nunca tinha ficado pronto de verdade, tantos eram os entulhos pelos corredores internos, as colunas com ferragens à mostra, sem falar dos banheiros, queinvariavelmente estavam alagados, não extamente de água.

É verdade. Tudo isso fazia parte do antigo Maracanã. Mesmo assim, antes de começar aquele jogo, no novo Maracanã, eu e meu irmão sentíamos uma saudade imensa pulsando dentro do nosso peito. Parecia que faltava alguma coisa, e não era o cimento incômodo dos degraus que antes sujavam os fundilhos das calças, nem o torcedor mais humilde, impedido de frequentar o novo estádio por causa dos novos preços e nem o vendedor de amendoim torrado. Nós olhamos em volta com atenção, como se estivéssemos conferindo um jogo de sete erros. Não demorou para que chegássemos à resposta. Aquele estádio novo não tinha a geral!

Mandatária suprema dos que ganham dinheiro com jogos de futebol, Dona Fifa não queria mais que seus súditos cariocas assistissem aos jogos em pé. Ela queria todo mundo sentado em lugares marcados, com todo o conforto que um bom punhado a mais de reais certamente podia comprar. Talvez ela quisesse também, que, assim como europeus, nós, selvagens pela própria natureza, comemorássemos os gols apenas com aplausos, mas acho que isso ela nunca vai conseguir.

 Dona Fifa nos impôs um estádio novo, e alguns governantes ávidos por obras e comissões rapidamente disseram que sim. Mas a minha memória de torcedor, por enquanto, ainda é livre. É uma memória afetiva que envolve sentimentos, aromas, pessoas e acontecimentos. Hoje, quero falar da saudade que eu sinto da geral do Maracanã.

 Saudade da entrada

O corredor que dava acesso à geral, era escuro, iluminado apenas por lâmpadas fracas que pendiam do teto, que era bem alto. Confesso que percorrer esse trajeto nunca foi muito agradável. Uma das paredes do corredor tinha tijolos vazados, e, por eles, víamos uma outra parte das entranhas do estádio, onde havia carros estacionados no meio do nada. Um ambiente bem sombrio. Uma vez eu estava chegando à geral por esse caminho com meu pai e meus irmãos quando surgiu alguém e se agarrou ao meu pescoço. Meu irmão José Gulherme partiu logo para encaçapar o agressor, mas, antes que ele desferisse o primeiro sopapo eu descobri que o ataque era uma brincadeira sem graça de um colega de escola.

Ao chegar à geral, a imensidão do estádio que se apresentava diante dos olhos, proporcionava uma sensação fantástica. Estar em um nível abaixo da arquibancada, ouvindo o barulho das torcidas, a música tocada pelas charangas e vendo a nossa volta, acima de nossas cabeças, o colorido das bandeiras e faixas, depois de ter deixado para trás aquele corredor sombrio, sempre mexia comigo.


 Saudade dos aromas

Na geral e, só na geral, conseguíamos sentir o aroma fresco do gramado. Era um aroma que me levava à infância, quando descia rolando a ladeira de grama da Quinta da Boa Vista. Ali, na geral do Maracanã, experimentávamos uma ilha de natureza, cercada de concreto por todos os lados.

Havia outros aromas. Mais de uma vez, fui alvejado por saquinhos ou respingos de um certo líquido cuja a cor e a origem eram pra lá de duvidosas. A tarefa de cheirar a roupa ou a parte do corpo atingida, para tentar identificar a procedência do líquido às vezes confirmava terríveis suspeitas. Algumas vezes, senti alívio ao constatar que era apenas água, outras, o melhor era ter a certeza de um bom banho assim que chegasse em casa.

Não posso deixar de falar do aroma delicioso do cachorro quente da Geneal, que invadia minhas narinasassim que o vendedor abria a caixa. Havia o aroma dos leitinhos da CCPL, vendidos em uma embalagem triangular, com vários sabores: chocolate, caramelo, morango. E havia também o cheiro inconfundível de cerveja que pairava no ar, vindo dos copos de papelão, dos hálitos e das roupas das pessoas que estavam em volta. Sim, porque muitas vezes o líquido amarelo e espumante que vinha do céu era apenas… Brahma na jogada.

Pode parecer piegas dizer isso, mas a geral do Maracanã tinha aroma de povo. Nada a ver com o que disse, há muito tempo, um ex-presidente da República em relação a odores humanos e equinos. Era um cheiro de gente, de igualdade social, de transpiração, desodorante barato e sabonete; cheiro de corpos, de pessoas jovens, adultas e idosas, movidas pela paixão pela bola, convivendo a céu aberto em um mesmo espaço e isso só acontecia porque o ingresso era barato, menos da metade do da arquibancada.

 Saudade do contato


Aqui, a saudade se me apresenta de duas formas:

A primeira, no contato com o povo. Em tempos de poucos jogos televisionados, o acesso ao Maracanã era bem mais fácil. Desse modo, os torcedores folclóricos, muitas vezes fantasiados, faziam da geral o seu palco.

Tinha o torcedor do Flamengo que dava instruções, orientando a defesa do seu time, grudado na grade, próxima ao campo. Tinha o torcedor que também era vendedor de amendoim e que, com um fôlego absurdo, dava sequências de assobios tão fortes, durante o jogo todo, que se podia escutar sua série de apitos mesmo que ele estivesse do outro lado da geral e, às vezes, até nas transmissões pela TV. Torcedores dos dois times que estavam em campo, assistiam ao jogo juntos, muitas vezes lado a lado um suportando a alegria do outro. Essa convivência, lógico, nem sempre era tão romântica epacífica. Também era comum quando alguns clarões se abriam no meio da massa, como indício de que estava acontecendo aquilo que cantaram Aldir Blanc e João Bosco: um pega na geral.

A segunda forma de saudade diz respeito, como dizia Jorge Cury, aos “artistas do espetáculo”. Na geral, a proximidade com o campo era tanta, que era como se o geraldino estivesse na beira do gramado. Assim, eu pude testemunhar alguns fatos bem bacanas.

Uma vez, um amigo tricolor, em um jogo do Fluminense, gritou quando o ponta esquerda Tato ia bater um escanteio: “Tato, bota na cabeça do Washington!” O ponta virou para a geral e fez um sinal de positivo com o polegar. O escanteio foi cobrado na cabeça do Washington e… gol!

Teve o dia em que o meu velho pai se esqueceu da discrição que o caracterizava e saiu do sério com o polêmico árbitro José Roberto Wright, Depois de um primeiro tempo com muitas marcações duvidosas contra o Vasco, o juizão vinha saindo do campo e começava a descer as escadas do túnel do vestiário dos árbitros. A gritaria e os xingamentos na sua direção eram a prova clara de que a sua habitual necessidade de querer aparecer mais do que os jogadores tinha sido cumprida. No primeiro degrau, atraído pelos apupos que vinham da geral, o árbitro, todo orgulhoso, olhou para o povo enfurecido. Meu pai e eu estávamos bem em frente ao túnel. Dessa vez o seu Zé não se controlou, esqueceu os bons modos e gritou a plenos pulmões na cara do homem de preto: “Filho da p*#*!” Até o fim de sua vida, meu pai dizia com imensa satisfação que o Wright tinha visto ele o xingar.

Aliás, nada mais gostoso do que, ao final de uma partida, ficar em frente ao túnel que dava acesso aos vestiários dos jogadores, para aplaudir os heróis e xingar os vilões do jogo. Os aplausos eram retribuídos com acenos agradecidos e os xingamentos eram a trilha sonora fúnebre da saída de alguns jogadores.

 Claro, era maravilhoso também quando os jogadores vinham comemorar os seus gols perto dos torcedores da geral. O Luisinho Tombo gostava de subir no murinho, ainda quando jogava pelo América e depois no Flamengo, acompanhado do Zico e do Doval. Todos os artilheiros sempre corriam em direção à torcida, ao marcarem seus gols. Parecia que recarregavam suas forças com a energia que vinha dos geraldinos.

 Saudade da liberdade

Na geral, por estar de pé, o torcedor tinha mais liberdade. Quando alguma bola vinha do campo, alguns até arriscavam umas embaixadinhas, mas tinha que ser rápido, pois a PM chegava logo.

Muitos geraldinos gostavam de ficar no trecho embaixo das cabines de rádio, bem no meio do campo. A localização era triplamente estratégica: permitia uma visão mais ampla do gramado; protegia dos arremessos de saquinhos contendo líquidos suspeitos, e, permitia e ver os craques da informação nas cabines de rádio: Jorge Cury, Waldir Amaral, José Carlos Araújo, Washington Rodrigues, João Saldanha, Luiz Mendes, Sérgio Noronha, Gérson e outros.

Uma outra parte de torcedores, preferia acompanhar o ataque do seu time. Era muito bom também, em cobranças de pênaltis, correr para se colocar atrás das balizas e ver abola entrando. Numa época, o Roberto Dinamite cobrava faltas com uma precisão tão grande, que a torcida fazia a mesma coisa, corria para trás do gol, como se fosse um pênalti. Ah, que saudade do Dinamite. Que saudade de ver da geral um gol do Dinamite..

Saudade… Palavra estranha essa, que, dizem, só existe na língua portuguesa. Sentimento arrebatador, ora de alegria, ora de tristeza.

Sentados em nossos lugares marcados da arquibancada superior, meu irmão e eu olhávamos o novo Maracanã, tentando resgatar o antigo. O velho campo só está vivo agora nas lembranças, de jogos memoráveis vistos da arquibancada ou da geral. Sensações, aromas, vitórias, derrotas, pessoas amadas que se foram, gente desconhecida que já conhecíamos tão bem, povão, família, radialistas, craques…

A propósito, naquela noite o Vasco ganhou do Goiás por 3×2, e acabou eliminado da Copa do Brasil

O MARACANÃ DOS SONS INCONFUNDÍVEIS

por Paulo-Roberto Andel


Para quem viveu o que foi o Maracanã entre 1950 e 2010, e mais especialmente entre os anos 1970 e 1980, as emoções não se limitavam ao verdadeiro carnaval de imagens fantásticas, que iam desde o colorido das torcidas até às maravilhosas jogadas que ficaram na memória, mas também passavam por uma experiência sonora fascinante. 

Tudo começava bem antes de um clássico, por exemplo. Se você chegasse mais cedo e ficasse no corredor das arquibancadas, ali por volta das 14h, podia ouvir em intervalos regulares os gritos da multidão que chegava nos trens, desembarcando na estação Derby Club e formando um maravilhoso desenho de gente vindo e cantando, gritando, assobiando, fazendo da chegada ao estádio imortal uma verdadeira catarse. 

Já nas arquibancadas, muitas vezes lotadas a partir das 15h, o espetáculo musical ficava por conta do samba. Muito samba, às vezes com a participação de baterias de escolas consagradas. Era a pulsante trilha sonora do pré-jogo e das preliminares, também acompanhada de gritos de guerra (pacífica) das torcidas. 

Chegando às 16h45, tudo mudava: o Maracanã era tomado por certo silêncio de expectativa enquanto dezenas de bandeiras se alinhavam nas arquibancadas, tudo no aguardo da entrada dos times em campo. De repente, com a subida dos craques ao gramado, precedidos pela garotada correndo e se empilhando na entrada dos túneis, a arquibancada explodia: cantos, percussões, fogos, luzes, papel picado, papel higiênico, pó de arroz, fumaça colorida, balões e o ruído ensurdecedor de festa. 

Durante o jogo, um barulho era inconfundível: “UUUUUUUHHHHHHH”, quando um chute de fora da área passava perto do gol ou era espalmado pelo goleiro para escanteio. A onomatopeia coletiva ia com toda força na cobertura de concreto no Maracanã e voltava, fazendo um eco inesquecível. Se saísse gol, bem, não precisava nem falar: era o orgasmo do futebol, exceto para o time que o levasse. 

Durante muitos anos, o som abafado dos alto-falantes teve uma assinatura infalível, a do locutor oficial do Maracanã Victorio Gutemberg. Era dele o bordão “SU-DERJ IN-FORMA” com as substituições em campo, renda, público e jogos relevantes disputados noutros lugares. No intervalo, ele vinha com “LO-TE-RIA”, passando os resultados de momento das partidas da Loteria Esportiva, até então o jogo mais popular do país. Gutemberg sabia dar o tom exato das partidas: certa vez, num Vasco x Fluminense de 1980 no primeiro turno, ao mesmo tempo o Flamengo jogava contra o Bangu em Moça no Bonita. O Flu vencia o Vasco por 2 a 1, enquanto o jogo do Flamengo interessava a ambos os times. Perto do fim da partida, Victorio Gutemberg entrou com “SU-DERJ IN-FORMA: em Moça Bonita…”, fez alguns segundos em silêncio e anunciou “Mi-ran-di-nha” para depois explodir “BAN-GU 1, Fla-mengo 0”, com tricolores e vascaínos se esquecendo do próprio clássico para comemorar o gol alvirrubro. 

E justamente nos finais dos clássicos é que surgia uma das maiores experiências sonoras do Maracanã: todo mundo ia com seus radinhos de pilha e cada rádio tinha uma vinheta de minutagem, geralmente usada nas transmissões de cinco em cinco minutos, mas executada a cada 60 segundos depois dos 40 minutos do segundo tempo. Imagine mais de cem mil pessoas com a massa sonora das rádios Globo, Tupi e Nacional também batendo na cobertura de concreto e reverberando em toda a arquibancada? Uma mistura de samba potente, Kraftwerk e Azymuth que só o maior estádio do mundo sabia proporcionar. 

Outro ruído sempre presente, mas perceptível apenas nos jogos mais vazios, não vinha das arquibancadas mas da parte de baixo: a velha e saudosa geral, que já gerou estudos, documentários e celebrou o espaço mais popular do Maracanã. Mas isso fica para outra história; afinal, o eco fortíssimo dos sinalzões das rádios, bem descrito no penúltimo parágrafo, ainda está ecoando nestas linhas com força. E os geraldinos merecem uma coluna só para eles. 

UMA RELÍQUIA QUE MANTÉM VIVO O VERDADEIRO MARACANÃ

por André Felipe de Lima


Há uma bola de futebol em minha vida. Não aquelas convencionais, de couro ou mesmo as de meia, com as quais dei meus primeiros chutes no chão de terra e cimento da vila onde nasci e cresci. É uma bola de mármore. Um mármore muito especial no qual milhões um dia pisaram, pularam, vibraram, cantaram ou mesmo choraram. Aliás, o choro primevo está cravado nela, que tornou-se uma relíquia sem preço. Minha amada bola está marcada com lágrimas que, na dolorida tradução poética, assemelham-se às lanças com as quais imperadores romanos ceifaram cristãos em priscas eras. Só mesmo a fé celestial de gente como aquela para seguirmos adiante após o fatídico 16 de julho de 1950. Vejam, amigos, são 70 anos que esta bola permanece encharcada com lágrimas de milhões. Mas ela, teimosa, seguiu firme para presenciar reviravoltas de placares inimagináveis, no campo e na vida. Esta bola viu seleções extraordinárias conduzirem o Brasil ao pentacampeonato mundial. Viu, inicialmente, Zizinho e Ademir de Menezes. Viu também Barbosa e sua imagem mais marcante após o gol de Ghiggia naquela data medonha. Viu depois Didi, Nilton Santos, Dida, Evaristo, Garrincha, Dequinha, Bellini, Vavá, Almir, Quarentinha, Waldo, Telê… viu Pelé, a nossa majestade universal. Viu Gerson, Paulo Cezar Caju, Tostão, Rivellino e o nosso tricampeonato sendo construído nas gramas de seu septuagenário estádio. Viu Zico, Roberto Dinamite. Viu Romário. A minha bola de mármore viu isso tudo, mas não verá mais. Ela está aqui comigo, longe do chão onde um dia brilhava porque havia gente zelosa e especial a lustrá-la diariamente. Gente que, embora com nome, CPF e identidade, sempre passava despercebida aos olhos de torcedores e jornalistas. Hoje, setenta anos após aquele gol uruguaio que nos fez chorar sangue, a minha bola tem um novo e dedicado lustrador. Este cronista, no seu recanto, no Rio de Janeiro, no dia 16 de julho de 2020, sentindo muita saudade daquele estádio que já não existe mais. Daquele do qual restou somente a minha linda e brilhante bola de mármore.