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Lucio Branco

MÃE À VENDA

por Lucio Branco


Sede de General Severiano com faixa anunciando um Baile Black com o Monsieur Lima.

Botafogo de Futebol e Regatas, meados dos anos 1970.

A rigor, o que sucedia ali, dia após dia, quando já se acumulava mais de meia década sem títulos de uma contagem que viria a somar 21, no total?

A resposta: os corredores e gabinetes da sede de General Severiano tramavam a sua venda para a Companhia Vale do Rio Doce. À época, a Vale era uma estatal sob gestão de uma ditadura militar que se mantinha entre abusos e desvios num cenário totalitário e corrupto que demanda urgentemente ser tratado como tal pela História escrita e falada. Pesquisadores honestos podem calcular quão árdua é a tarefa. Afinal, a pós-verdade vigente fabrica revisionismos até mais canalhas que os da época.


Luiz Fernando, Garrincha e Charles Borer

Nas sombras da manobra comercial, a infâmia tinha nome e sobrenome: Charles Borer. Naqueles dias, milicos e congêneres desfilavam à solta pelos clubes. Portanto, nada mais dentro da norma que um cartola acavalar o cargo de presidente de uma agremiação desse porte com o de empresário do ramo de segurança privada. Era exatamente o caso. Mal assumido o comando, não bastou a Borer comercializar no interior do templo – o vendilhão tratou de vender o próprio templo.

Foi um acordo que apresentava o seu fim desde o início: a crise que punha o clube à deriva há alguns anos, agora o faria naufragar. Logo a torcida ficaria nostálgica da razão que a fizera calar o “É campeão” tão ecoado nos anos anteriores:o desgaste do plantel por conta das sucessivas convocações para o escrete nacional. Isso era bem mais que uma mera desculpa para a fuga de taças tidas como certas. Craques em bloco eram assiduamente sacados do Botafogo em plena temporada para compor as maiores escalações que o mundo da bola já testemunhou. Um fornecimento tão generoso que viria a combalir a contabilidade de títulos e dos cofres do clube.

(Um parêntese: definitivamente, não cabe o argumento de que o Santos sofria o mesmo desfalque no período. O Botafogo cedia mais e melhores jogadores. E, em contrapeso, o time paulista contava, então, com um Pelé em permanente estado de auge. O Rei sempre fazia a diferença, inclusive, contra o próprio Botafogo, em decisões com Garrincha, Didi, Nilton Santos etc que superpovoavam o Maracanã da primeira metade dos 1960. Foi somente com a geração subsequente de Gerson, Jairzinho e Paulo Cézar Caju etc, que a vantagem no confronto direto mudou de lado.

Por essas e outras, o constante questionamento do título de Atleta do Século é um exercício onde pontua mais a má-fé que a ignorância.)

O mais comprometedor é que os Borer, um clã policialesco que aproveitava períodos políticos de exceção para mostrar serviço, já carregavam na sua ficha corrida uma outra demonstração de repulsa à instituição que os projetou.

Três décadas antes, em pleno Estado Novo,o irmão mais velho de Charles, Cecil – que depois, sob os militares, foi diretor do DOPS –, disparou à queima-roupa contra João Saldanha numa reunião do PCB, realizada na UNE. A alegação de legítima defesa – Saldanha tentou acertá-lo antes com uma cadeira – é calhorda. O que ficou disso foi o efeito prático que teve na vida do futuro treinador do clube – e já, então, seu sócio dirigente atuante –, que a teve abreviada em função das complicações do ferimento, progressivamente agravadas com o seu envelhecimento natural.

Efeito prático e, faltou dizer, simbólico. Afinal, quem são os Borer em comparação com o treinador campeão carioca de 1957 na galeria alvinegra?

Dado o hábito deste em se prevenir com armas de fogo, seria legítimo especular sobre um possível acerto de contas posterior, em igualdade de condições. Mas é pouco provável. A autodefesa tática adotada por Saldanha alertava que o pior adversário possível é a polícia: – “Eles nunca estão sozinhos”.

(Uma cadeira contra uma pistola…Por aí se vê o porquê do “Sem Medo” que Nelson Rodrigues colou ao seu nome.)

Agora, uma enquete: alguém aí já foi apresentado à carranca de Charles Borer? Uma pesquisa no Google revela apenas três fotos do elemento. Todas de uma matéria da Revista Placar em que ele jura nada ter a ver com um escândalo de compra de árbitros. Com uma ou outra variação, ei-lo às voltas com um tema de semelhante teor.

E mais: numa entrevista para a mesma publicação, em 1981, conseguiu pôr a culpa da sua desastrosa administração na torcida. E,claro, principalmente nos indefectíveis comunistas infiltrados nela…

Mas voltemos à venda de General Severiano…

Por bem menos dentro do quesito entreguismo, retiraram, acertadamente, a foto do Mauricio Assumpção do quadro de presidentes do clube no salão nobre da sede. Na mística relativa de que “tem coisas que só acontecem ao Botafogo”, a História se repetiu, no caso, como tragédia e como farsa: por malversações criminais outras, a justiça foi feita. Mas é preciso dizer que, como resposta a um ex-mandatário de folha corrida, foi um gesto consideravelmente isolado, reflexo direto do seu próprio isolamento político dentro do clube.

Por isso, vai aqui a sugestão – já condenada ao fracasso – senão de também retirar a foto de Charles Borer do mesmo quadro, pelo menos fazer constar, em legenda, sob a sua tenebrosa figura, a informação de que afundou a agremiação em dívidas para se beneficiar diretamente do desfalque do seu patrimônio material maior. Mesmo sabendo que apagar a História não a melhora – lição involuntária que Rui Barbosa deu ao país –, a iniciativa poderia ser considerada.


André Barros

Sei que, nessa trincheira, estaria o bravo advogado André Barros. Desde a época da negociação escusa – contra a qual bateu de frente –, é um engajado nas causas do Glorioso que casam política, direito e justiça (combinação infelizmente inviável na atual conjuntura nacional).

Inclusive, no dia em que o Dr. Barros quiser lançar sua candidatura à presidência do clube, serei seu mais fiel cabo eleitoral. Melhor: se ninguém se apresentar para preencher a vaga, pleitearei compor a sua chapa, caso ele julgue louvável a ideia. Seria este o único modo de dar o meu apoio ostensivo a um candidato na política interna do clube. E reforçaríamos, assim,a sua tese de que o Botafogo é, por tradição, a morada de quem não prima exatamente pela Razão, este atributo menor quando se trata da adesão ao Preto & Branco.

No mínimo, por causa da tentativa homicida de Cecil Borer contra Saldanha, no início dos 1940, seu clã deveria ser impedido de circular pelas dependências do clube. Intolerância zero na afirmação. Só assim para haver o reparador senso de justiça verdadeiramente democrático diante do malfeito. O Estado Novo terminou pouco tempo depois, mas por aí se vê o quanto o pouco apreço nacional pela democracia seguiu incólume.

A entrega da sede de General Severiano prova o perigo da concentração de poder nas mãos de um só cartola. E, para piorar, não bastando influir nos bastidores da sua administração, outro membro da mesma famiglia vir a se tornar, anos depois, presidente da instituição, só poderia ser obra de um período permissivo com arbítrios dessa natureza. Mas, de certa forma, não deixa de guardar coerência com a escolha de outros nomes que ocuparam a mesma cadeira naqueles anos de exceção, e também posteriormente – porque afinal, por aqui, em política, exceção é regra.

No loteamento que a ditadura operou no futebol brasileiro, o Botafogo foi um dos seus maiores reféns.


Mas o que importa é que segue vivo…

A luz que ora cai sobre o Alvinegro redime, com rara justiça, tantos naufrágios imerecidos, parentes daquele que não foi o primeiro, mas que foi, certamente, o maior: a entrega da sede. Sua restituição, anos após, não apagou o trauma. A rigor, o trauma que resultou dali não foi exatamente trauma. Foi maldição mesmo .Em suma: Borer é o nome a se exorcizar.

Ponho fé que vencer pelo menos uma das duas competições que o Botafogo tem chances concretas de vencer este ano dará fôlego à iniciativa (simbólica ou não) de retirar o seu retrato do quadro oficial de ex-presidentes. Ou, então, como sugerido, grafar a devida acusação histórica sob a cara medonha daquele que se igualou ao filho que, como consagrou o dito popular, vendeu até a mãe.

Pensando bem, por mim, a sugestão já virou promessa. E, claro, promessa é promessa. Portanto, Dr. Barros, a nossa chapa deve assumi-la desde já. Quando lançamos a candidatura?

A FERA MAIOR

por Lucio Branco


De cara, confesso o atraso criminoso da leitura, na íntegra, da compilação das crônicas do João Saldanha que cobrem as campanhas das Copas do Mundo de 1966 e 70. Segundo os meus próprios critérios, comi mosca por um período de tempo mais extenso que o tolerável. Peço perdão e prometo a mim mesmo não incorrer mais em erro tão comprometedor.

Com o panorama da sua participação no escrete nacional a partir da sua versão de protagonista, a conclusão veio fácil: tanto essa passagem da sua vida, como outras, talvez não tenham sido o objeto de uma pesquisa realmente mais acurada. Melhor – e mais crível, até –, é o seu relato em primeira pessoa sobre as turbulências daqueles dias de 1969 e 70, quando seu nome rendia manchetes diárias, circulava em todos os meios etc. Desde o “Topo”; passando pelas escalação das Feras sem concessões às politicagens de clubes, cartolas e federações; passando ainda pela classificação retumbante para a Copa de 1970; até a “dissolução” da comissão técnica (“Não sou sorvete para ser dissolvido”); Saldanha foi de uma coerência ao mesmo tempo compacta e cristalina. Creio que isso já forneça por si só uma boa linha de investigação. Ler diretamente o cronista é se inteirar melhor sobre a sua trajetória. Sinceramente, confio mais na versão do Saldanha.

Esta contextualização inicial serve para outra conclusão (sim, as conclusões, aqui, já vêm no início): o Brasil é a terra do lugar-comum. Afirmo isso sem temer que me acusem de determinismo ou que acabo de confirmar contraditoriamente o que afirmei. Realmente, a sentença pode ser interpretada como mais um lugar-comum. OK.

Mas seria uma exclusividade nacional? De forma alguma. Toda nação dispõe do seu repertório de clichês, ao gosto do seu respectivo senso comum. É um fenômeno universalmente reincidente, mas a prática nacional excede o padrão das amostragens dispersas pelo mundo.


Por exemplo: fala-se demais na nossa falta de memória. Essa outra alegação, ela mesma, é um tremendo lugar-comum. Principalmente pela passividade costumeira com que é dita. Tão comum quanto afirmar que nunca resgatamos suficientemente o nosso passado, é negligenciar a necessidade de fazer algo a respeito. O processo é cruel. Por força do hábito, o que acaba impregnado na lembrança cumpre uma função útil à manutenção do caráter oficial das historiografias. E o que se esquece, também. Muito mais que ausente, a memória nacional é seletiva. E o que fica impregnado no imaginário popular acaba não sendo a avaliação mais precisa e justa sobre determinada pessoa pública no curso de uma vida sob holofotes inapagáveis.

Até hoje, a evocação da figura de João Saldanha inspira disputas sem fim. Versões mais ou menos desencontradas circulam sobre a sua atuação no futebol, imprensa, militância política, vida pessoal e demais campos da existência. Há quem o culpe diretamente por isso: – dele se diz que, se não alimentava ainda mais o folclore em torno do seu nome, era então um mitômano compulsivo. Eis mais um hábito muito nosso (que talvez também entre na categoria do lugar-comum): mentir quando se acusa de mentiroso alguém que confronta a ordem estabelecida.


É particularmente perverso que, no caso mais específico de Saldanha, tenham sido principalmente os seus “amigos” aqueles que mais insistiram na impostura. Por exemplo, há provas de que a vasta mitologia que cerca o filósofo da bola Neném Prancha é menos produto da generosidade de Saldanha em lhe emprestar as suas frases do que um esforço de criatividade que mereceria ser mais frequentemente creditado a sua pessoa. É uma questão de direitos autorais mesmo. E essas provas são sempre ocultadas em favor do mito.

Engajado em diversas frentes de luta, João Saldanha não se conformava com as limitações da vida ordinária. Ainda mais em períodos de exceção política, quando, no seu caso, viver equivalia a travar um combate diário. Um dado que parece geralmente preterido na sua trajetória é que teve que atravessar parte considerável dela na clandestinidade. Uma condição que, paradoxalmente, permaneceu simultânea à do treinador mais carismático e popular que assumiu a seleção brasileira– mesmo que por apenas 10 meses. Calar sobre a sua militância é diminuir o homem do futebol.

Falei em disputa. Pois bem…

“Disputa” é, em política, um conceito controverso. Mesmo necessária ao debate, pode também reproduzir, internamente, um fenômeno tão condenado pela boa consciência que orienta as hostes progressistas (ou que assim se consideram): a concorrência desleal. Paira sobre Saldanha uma muito desafinada polifonia que, imagino, devia incomodar o próprio, em vida.


É fácil imaginar o quanto ele, como biografado, não fosse, assim, tão facilitador da tarefa… A rigor, quem o seria? Viver o presente com vistas a garantir o controle sobre a versão consagrada de si para a posteridade é um esforço fracassado já de saída. Figuras públicas extremamente ciosas da própria imagem falharam nisso inapelavelmente. E falsear é, por essência, a antítese de Saldanha– apesar do injusto estigma que mancha a sua credibilidade.

Alguns jornalistas tentaram mapear os passos do colega de profissão ao longo do seu errático roteiro existencial. Do que li, creio que nenhuma das tentativas foi plenamente satisfatória. Umas foram bem menos que outras – diga-se. E nem consideramos tanto aqui o problema ético que as biografias suscitam. O juízo sobre o referido caráter satisfatório tem mais a ver com questões de pesquisa, investigação e redação final. Enfim, estamos tratando de uma qualidade que sobrava em Saldanha e que parece ausente em tantos dos seus biógrafos: o destemor.

Nesse quesito, João Sem Medo era bem melhor entendido pelos seus pares. Almir Pernambuquinho apontava a sua capacidade, quase inexistente na imprensa esportiva, em entender a psicologia do jogador. Portanto, não poderia ser outro senão ele a assinar o prefácio de Eu e o futebol, a biografia do craque assassinado em Copacabana. Nas suas poucas linhas, Saldanha relata que, certa feita, para evitar que um casal de idosos fosse espancado por cinco valentões numa briga de trânsito, ambos tiveram que recorrer ao experiente serviço prestado pelos seus punhos. Dois contra cinco. Qual outra modalidade de diálogo seria possível sob tal circunstância?

As falhas de abordagem sobre o personagem em questão são muitas. E, assim, uma mitologia que mais parece contrafação ganhou vida– seja na prosa de bar, seja na poesia suspeita das memórias afetivas de quem se diz íntimo do falecido. Ou, ainda, seja na letra fria (e não raro burra) da imprensa escrita e falada. Cada um valoriza um determinado ponto de Saldanha para, invariavelmente, desqualificar outros.

Lamentavelmente, alguns tópicos de importância capital da vida do militante passam ao largo do interesse dos seus biógrafos, que não vão além da breve menção. Não seria relevante saber como foi o impacto pessoal exercido pelo Relatório Kruschev sobre a sua atuação política? E as implicações do repasse do valor integral da venda do cartório de propriedade da sua família para o Partidão, quando Saldanha já era então um jornalista esportivo de renome? (De renome, porém, não exatamente remunerado à altura…) Não se poderia ir mais a fundo aí também? E a relação rompida com Armando Nogueira, o ex-colega de resenha FACIT que preferiu plantar a nota não propriamente verdadeira sobre o desejo da convocação de Dario pelo ditador Médici? Nota que virou “verdade” ao ter municiado a grande imprensa contra o então treinador da seleção, cuja manutenção no cargo sofreu abalos com a sua inesperada – mas talvez não involuntária – pontaria contra o próprio pé: “Nem eu escalo ministério, nem o presidente escala time”. Não é a curiosidade banal quem faz essas perguntas…

Há outros lapsos da parte de quem privou com ele…


Esvaziar a dimensão social do seu percurso para reforçar o papel do “carioca de adoção”, sócio do Clube dos Cafajestes na juventude, ou, ou ainda, a faceta do “viajante aventureiro” pelo mundo, dentre outras diluições, soa como a reconstrução de uma persona. Não me parece tão espontânea ou involuntária a assídua referência sobre o aspecto aparentemente menos engajado da sua personalidade. Além de tudo, é manjado o método de, ironicamente, pôr em dúvida as aspirações transformadoras de quem tem origem social não exatamente desprivilegiada. (No seu caso pessoal, ter doado o cartório da família por fidelidade ideológica não parece ter sido um gesto convincente.)

Até o seu temperamento explosivo entra na conta do folclore mais rasteiro. Suas brigas de rua parecem episódicas, a maior parte das vezes. Para alguns, pouco importa se, de forma mais ou menos direta, empunhou armas ou distribuiu murros coerentemente com as causas que abraçou. O que vale é confirmar o perfil de pavio curto. “Era esquentado, mas tinha bom coração” , é por aí que prefere concluir a infalível cordialidade nacional sobre ele. A maior parte das vezes, o sindicalista atuante e o organizador de guerrilha no campo perdem espaço para o atávico gauchão da fronteira que desafiou à bala o goleiro Manga e o técnico Yustrich.

Um dos méritos mais notáveis de Saldanha era a defesa da sua concepção sobre o jogo de bola como forma de expressão cultural que transcende as fronteiras desportivas. A noção que o define como metáfora da vida ganha, nele, a coloração do seu credo político. Em Saldanha, é justamente o caráter popular do futebol que nega a sua vocação teórica de “ópio do povo” ou outro lugar-comum elitista e/ou pretensamente revolucionário do naipe. Melhor: o caráter popular do futebol sempre foi o antídoto mais receitado contra o ópio de uma intelligentsia viciada em veredictos boçais como este. Ciente do alcance popular do futebol como do seu uso político (assim como de tantas outras manifestações culturais), um comuna de fé como Saldanha jamais replicaria esse chavão. Ao contrário do que se generaliza, principalmente hoje em dia, com os sectarismos do lado oposto mais desinibidos e intolerantes do que nunca.


A coletividade é o elemento por excelência do esporte mais popular do mundo. Este é, como se sabe, um complexo sociocultural que envolve jogadores, dirigentes, torcedores, meios de comunicação, indústria, comércio e muito mais… No meio dele, brota a figura individualizada do craque, que faz a modalidade se renovar. O craque é um fenômeno possível também graças à existência dos seus colegas de equipe. Saldanha entendeu essa coordenação como ninguém. A mais genial exibição solo quase sempre depende da harmonia com o conjunto por trás. Para a harmonia ficar melhor, privilegiou a presença de um conjunto de craques nas suas escalações. A esse respeito, sua atuação nas redações, cabines de rádio, estúdios de televisão e à beira de campo nunca deu mole para sofismas.

Sem a importância conferida à dinâmica coletiva da modalidade, as análises técnicas de João Saldanha seriam menos carregadas de apelo junto ao torcedor. Nem o seu próprio interesse pessoal em lidar com essa matéria-prima eminentemente social teria o mesmo peso. Comentar uma partida, fosse ela de pouca influência na tabela do Campeonato Carioca, fosse uma final de Copa do Mundo, era uma tarefa encarada como missão.

Reitero que, para encarar Saldanha, é preciso se inspirar nele e renunciar a toda e qualquer hesitação – ou seja: ao medo.

É, mais ou menos, pretender ser mais um na sua escalação de Feras.

PS: Só agora me dou conta de que nem me referi ao seu centenário, a ser celebrado – juntamente ao da Revolução Russa – neste 2017 que se inicia. Mesmo em tempos cada vez mais obscuros, que se faça justiça ao Sem Medo.


BARBA, CABELO E BIGODE

Nesta segunda (26), às 19h, na sala de cinema da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, o MAM (Av. Infante Dom Henrique, 85 – Parque do Flamengo), haverá uma sessão do filme Barba, Cabelo e Bigode, do parceiro Lúcio Branco. Vale destacar que após a exibição vai ocorrer um debate com o diretor e o craque Afonsinho! Imperdível!!

 Confira um depoimento de Gilberto Gil sobre os três craques do Botafogo, Afonsinho, PC Caju e Nei Conceição:


“Afonsinho pertencia a uma geração que era muito antenada, que tinha apreço pelas várias linguagens da expressão humana, que gostava de música, de cinema, de teatro, de jornalismo. Que se interessava pela questão profissional, pela dimensão econômica, política do futebol. Pertenciam a essa geração gente como ele, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição. Não era por acaso que eram, inclusive, muito próximos, muito amigos. Formavam um grupo. Eram percebidos pela crônica esportiva, pelo torcedor, pelos aficionados do futebol, de uma certa forma, como militantes do futebol. Distinguiam-se dos outros jogadores. A questão do passe livre, da emancipação dos jogadores do ponto de vista funcional e econômico em relação aos clubes, aos dirigentes. Eles tiveram uma influência direta nisso. Além de grandes jogadores que foram. Também, de uma certa forma, anteciparam o que veio a se estabelecer como um traço importante do jogador engajado na figura do Sócrates. Sócrates encarnou tudo isso de uma forma mais explícita, visível no caso da dimensão do Corinthians, da seleção brasileira. Nesse sentido, Afonsinho e seus colegas do Rio foram pioneiros na manifestação dessa ampla personalidade do esportista, do atleta, do cidadão. Enfim, do homem de cultura.”

BARBA, CABELO E BIGODE OCUPA EDIFÍCIO GUSTAVO CAPANEMA


Protagonistas do filme, PC Caju, Nei Conceição e Afonsinho posam para foto

Vencedor da Taça CINEfoot 2016, o longa-metragem Barba, Cabelo e Bigode, de Lucio Branco, será exibido hoje em uma sessão livre, às 19h, no Ocupa MINC.

Após a sessão, o craque Afonsinho, ex-Botafogo, o diretor de Barba, Cabelo e Bigode e André Barros vão participar de um debate.

O endereço é Rua da Imprensa, nº 16, próximo à Estação da Cinelândia e todos estão convidados!
 

Fazendo a barba, o cabelo e o bigode do futebol brasileiro. Sem pentear…

O aguerrido jornalista corintiano Bruno Pavan um dia me procurou para esta entrevista sobre Barba, Cabelo & Bigode, filme que produzi, dirigi e atualmente tento inscrever no maior número possível de festivais de cinema sobre a trajetória e o pensamento dissidente de três legítimos representantes da melhor tradição do futebol-arte entre nós: Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição. (Ia escrever “remanescentes” no lugar de “representantes”, mas essa conotação de sobra eu prefiro usar mesmo para designar o futebol brasileiro atual – afinal, o trio está aí, ativo e muito mais saudável que eu.)

A ideia era originalmente publicá-la no seu blog Fora de Foco (https://foradefocoblog.wordpress.com/), mas acabou que o Bruno conseguiu publicá-la numa versão editada no site da Carta Capital. (Aos inimigos da minha prolixidade, aqui vai ela: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/201co-jogador-hoje-e-uma-marca-comercial-rentavel201d.)

Agora, sua versão na íntegra no Museu da Pelada…

Como surgiu a ideia de fazer um filme com essas três figuras?

Muito cedo e espontaneamente. Na adolescência, dá pra dizer. Antes mesmo de vir à luz, eu já era botafoguense. Isso explica parte do meu interesse pelo tema. Admirar aquela geração à qual eles pertenciam, e que foi base da seleção tricampeã no México, ajudou ainda mais nisso. (Apesar de eu não ser contemporâneo dessa conquista – sou de 1974.) Acredito que o lugar deles no futebol e na vida nacional transcende qualquer limitação clubística. Quando travei contato, pela primeira vez, com a personalidade e a trajetória desse trio,a identificação foi imediata. Saber que, apesar de todas as atribulações que sofreram durante a sua permanência em General Severiano, eles não abandonaram a torcida pelo clube que os revelou, só fez aumentar ainda mais a minha. Vivi isso num momento em que a crise no Botafogo era tão institucional quanto a própria agremiação. Resumindo: a condição existencial do clube me parece ser muito mais a dissidência do que qualquer outra tendência espiritual. A impressão que eu tenho é a de que ele não se encaixa em nenhuma ordem estabelecida. A meu ver, é mais que a percepção de um torcedor, até porque sei que muitos outros botafoguenses não me acompanham nesse ponto de vista.

Por que a figura dos três te chamou a atenção?

Acho que não é à toa o símbolo do Botafogo ser a Estrela Solitária. É muito eloquente porque realmente simboliza uma tradição que o clube traz num patamar inalcançável, se comparado a qualquer outro: a presença do craque individualizado, absolutamente singular, único, de uma qualidade humana que ofusca de tão intensa. Não vejo outra agremiação que tenha apresentado tantas personalidades e/ou biografias inimitáveis,para muito além do folclore. É um patrimônio imaterial representado por nomes como Heleno de Freitas, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Quarentinha, Paulinho Valentim, Marinho Chagas, João Saldanha, Neném Prancha. Até o Paulo Amaral entra nessa escalação do Espírito – digamos assim. Se o destino preferiu que o Almir, o Pernambuquinho, não jogasse no Glorioso, só resta concluir que o destino também erra. Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição são membros de ponta desse grupo humano, demasiado humano. (Perdão, adjetivei demais a resposta.)


lLucio recebe o prêmio do CINEfoot ao lado dos três craques

Os três viam o futebol de alguma forma diferente que os craques da época?

Os três são herdeiros declarados da geração campeã na Suécia, em 1958. Sempre entenderam que o futebol brasileiro nunca poderia ter perdido aquela identidade essencial. Tinham plena noção de que a modalidade foi reinventada aqui e que aquela geração de Didi, Garrincha, Nilton Santos, Pelé, Djalma Santos, Zito etc representava o ápice da prática do esporte em escala mundial. Eles nunca ficaram indiferentes a esse legado e imaginaram poder dar continuidade a ele quando ingressaram no profissionalismo. Essa era a referência fundamental: o futebol percebido como fenômeno da cultura, forma de expressão artística, via de inserção social. Algo que transcende a mera competitividade. Da parte dos três, isso não era apenas uma percepção sensitiva, uma adesão sentimental, eles debatiam isso internamente, se posicionaram inúmeras vezes a respeito para a imprensa, o torcedor. (São coerentes com essa visão até hoje.) Foi essa a raiz dos conflitos com os dirigentes e comissões técnicas com quem tiveram que lidar ao longo das suas carreiras. Através da implantação da ditadura, o projeto de militarização da sociedade incluiu o futebol como um setor privilegiado de controle e propaganda junto às massas. Já na Copa de 66, na Inglaterra, apesar de ser um tópico pouco estudado ou mesmo comentado. Posteriormente, a coisa se aprofundou e a intervenção diária dos milicos dentro da estrutura dos clubes virou norma. Daí a emergência da figura do técnico como “professor”, a aparição dos preparadores físicos formados na Escola de Educação Física do Exército como referência vital no universo da bola que passava então a se “modernizar”. Uma espécie de início da adaptação ao modelo globalizado do jogo como podemos observar mais claramente nas últimas décadas, o que implicou a perda do estilo técnico particular, da habilidade, do talento individual, do improviso, da plasticidade. Sem contar as medidas de controle do comportamento dos jogadores na sua rotina dentro e fora dos clubes: proibição de cabelo grande, roupas “chamativas”. A barba do Afonsinho virou símbolo de resistência não foi de graça.O autoritarismo do período se metia em todas as frestas da vida social. Eles viveram esse processo na pele e pagaram um preço imenso, do qual nunca se arrependeram. Imagino que outros jogadores, principalmente os de maior talento no trato com a bola – como eles –, também se colocavam assim, mas, certamente, não se dispuseram a defender esse ponto de vista do mesmo modo, correndo o mesmo risco que os três não se intimidaram a correr. Por conta disso, talvez não seja errado afirmar que a política dos três fosse, antes de tudo, estética. (Estou me referindo menos aos cabelos e à indumentária dos três do que ao seu estilo de jogo.)

Os três jogavam juntos no Botafogo na que talvez seja a época mais dura da ditadura militar. Havia algum questionamento deles ao governo?

Totalmente. Não abriram mão de ser eles próprios justamente no período mais repressivo da ditadura militar que, como disse e a gente sabe, tinha um projeto de controle absoluto e de disciplinarização para o futebol. Isso os distanciava muitos da média dos jogadores da época, inclusive, daqueles considerados rebeldes. O diferencial do trio era a consciência. E o caráter político dela era evidente. Entravam com ela em campo e não a deixavam de lado quando estavam na concentração ou em outros momentos de convívio social com os colegas de classe. O Afonsinho e o Nei também conviviam com o professor Manoel Maurício de Albuquerque, historiador marxista que tinha o hábito de jantar no Hotel Argentina, no bairro do Flamengo, onde o time do Botafogo se concentrava. Outro que participava das conversas com o professor era o atacante Humberto Rêdes. Afonsinho, como estudante de medicina, frequentava reuniões clandestinas na universidade e cogitou muito a sério em integrar a luta armada. Ele afirma que não levou a iniciativa à frente porque era jogador. Ficou impossível conciliar as duas atividades, evidentemente. Já o Caju aderiu à causa negra mundial. Antes de adquirir consciência política mais específica sobre o que acontecia no país sob os generais, quando ainda iniciava no futebol, passou a se interessar pela trajetória de Muhammad Ali (OBS: escrevi seu nome aqui antes de saber da sua morte), Malcolm X, Martin Luther King Jr., Angela Davis etc. Sua posição contrária ao “mito fundador” da “democracia racial” no Brasil também lhe cobrou um preço imenso, reforçando ainda mais o estigma em torno do seu nome e das suas origens. Nunca deixaram de lembrá-lo, direta ou indiretamente, do quanto um negro favelado tem perspectivas praticamente nulas de ascender fora do futebol na sociedade brasileira. Sua resistência contra o racismo que nunca se apresenta como tal deriva dessa vivência. Mas tem um episódio de viés político na carreira do Caju que deveria ser muito mais citado… Durante uma reunião de jogadores, comissão técnica e dirigentes numa excursão preparatória da seleção para a Copa de 78, na Argentina, ele, titular absoluto, pediu a palavra. Quis fazer o mesmo que vira fazer antes líderes natos como Carlos Alberto Torres, Pelé, Gerson, que envergaram a mesma jaqueta amarela: reivindicar uma premiação geral mais à altura dos convocados. O então presidente interventor da CBD (a CBF da época), o Almirante Heleno Nunes, lhe cortou a palavra, sem pudor algum de exercitar o seu autorizado autoritarismo. A reação do Caju foi imediata: mandou que o oficial enfiasse no cu o seu arsenal de guerra e a sua frota de navios. O que o senso comum prefere julgar como destempero ou “marra” do craque (uma forma “elegante “de acusar que ele “não sabe o seu lugar”), foi na verdade um gesto de desobediência civil consciente, mesmo sob pena de ter tido que arcar com o prejuízo de nunca mais ter sido convocado para o escrete nacional. Na ocasião, ele foi o porta-voz de milhões de brasileiros que, apesar da imensa vontade, jamais poderiam ter feito o mesmo contra uma alta autoridade militar. Além disso, há um evidente elemento racista no comportamento do Almirante que o Caju captou na hora e não deixou barato. Obviamente, todos esses assuntos são abordados no filme.

Havia muita diferença, na época, entre a postura dos três e a do Pelé, que foi acusado muitas vezes de ter uma postura alienada da ditadura militar?

Os três eram a antítese do Pelé, do ponto de vista do posicionamento político. Em relação ao Caju, mais particularmente no âmbito do problema racial, a diferença é gritante. O Pelé sempre se manteve conciliador com respeito ao problema do negro no Brasil porque é, antes de tudo, um conservador. E sua boa relação com ditadores nacionais e internacionais também se baseia nisso, ideologicamente. Mas a persona do Pelé não cabe num debate sem nuances. Vou afirmar o óbvio que não se aceita facilmente por aqui: estamos falando de um gênio absoluto, total e definitivo na área de atuação esportiva dele. Quem nega isso o faz única e exclusivamente porque não gosta dele. Mais que desgostar, há um ódio militante contra a figura do Pelé no Brasil. Eis otermo técnico – que não se assume – para tanto: racismo. O lamentável é o próprio Pelé não acusar isso, o que implica uma cumplicidade involuntária da parte dele com esse fenômeno execrável da nossa formação histórico-social que o pegou para Cristo da raça. Em suma: no caso dele, pedir para o homem repetir o atleta é muito. E é exigir demais da Vida que uma mesma geração comporte dois Muhammad Alis… A complexidade do Pelé como figura pública é destrinchada por um depoimento do Afonsinho no filme, que atuou com ele no Santos em 1973. Fiz questão de tratar do Atleta do Século em Barba, Cabelo & Bigode com a seriedade que ele, como tema, merece. É um personagem que merece ser bem mais refletidamente analisado. Um gênio total dos gramados (o que não é pouco) condenado a ser o homem mais célebre do Planeta desde os 17 anos. Quem sobreviveria a isso aperfeiçoando progressivamente a técnica e a arte para continuar mesmerizando o mundo quando entrava em campo? (“Muhammad Ali, quando subia no ringue”,eis a resposta pronta, mas já observei, linhas acima, que dois corpos e mentes não ocupam o mesmo espaço no tempo – seria mais que contrariar uma lei da Física. Se me permite, deixo aqui este link de um artigo que escrevi para o Museu da Pelada em que trato deste mito moderno: https://www.museudapelada.com/resenha/contra-o-pente-fino-do-futebol


Quais as principais histórias dos três juntos? E dentro de campo, como eles se entendiam? 

As estórias deles são muitas. Juntos não saberia exatamente te dizer. Dentro de campo o entendimento era total. Foram poucas as vezes em que os três jogaram juntos, por uma série de questões diretamente relacionadas à trajetória deles no futebol. Só para se ter ideia, no filme, o litígio do Afonsinho com o Botafogo foi dividido em três capítulos, digamos assim. Começa com a disputa pela titularidade no time com o Gerson, considerado insubstituível. A torcida alvinegra (inclusive as adversárias) e a imprensa sabiam que ambos poderiam jogar juntos, mas nem os dirigentes, nem a comissão técnica do Botafogo julgavam assim. Decidiram que aquele jovem vindo do interior paulista para o Rio não deveria, além de jogar profissionalmente, estudar medicina. Menos ainda exercer a sua liderança espontânea entre os jogadores para reivindicar direitos básicos como, por exemplo, pagamento do “bicho” em dia. Decidiram também que a melhor coisa era mesmo pô-lo no banco. Insatisfeito com a reserva, Afonsinho quis se desligar do clube pelo qual torcia. Era um profissional que defendia, sobretudo, o seu direito de jogar. Qualquer outro clube do mundo garantiria sua escalação entre os titulares. Era um jogador de nível de seleção brasileira. Seu passe estava preso ao clube. A situação ficou incômoda para ambas as partes. A solução foi emprestá-lo ao Olaria, onde formou um meio campo clássico com Fernando Pirulito e Roberto Pinto e retomou o gosto pelo ofício. Jogou ali o futebol cadenciado e de toques fiel a sua escola. No retorno de uma excursão à Europa após ter rompido com o clube da Zona Norte, se reapresentou ao Botafogo e lá criaram o pretexto de barrá-lo por conta da barba e do cabelo que deixou crescer durante essa excursão. Tudo para desmoralizá-lo. E com o apoio direto dos militares, muito gratos ao Zagallo por ter voltado ao Brasil com a Jules Rimet para reassumir o comando técnico do Botafogo. O Afonsinho manteve pé firme no direito de garantir o direito de brigar pela posição e foi cortado do clube, que não abria mão do seu passe. Entrou numa longa batalha judicial com o Botafogo até conquistar o direito na justiça comum, e não na justiça desportiva – totalmente sitiada pela cartolagem – de adquirir o próprio passe. Foi em 1971, ano em que uma vitória numa causa pública como essa, na esfera do trabalho, era vista como grave subversão. Para a apreensão da ditadura, ela foi noticiada amplamente nos jornais, como não podia deixar de ser, pelo ineditismo do feito e o previsível impacto posterior no mundo do futebol. Além de ter sido uma deixa e tanto para os jornalistas que estavam ansiosos para confrontar o regime de exceção de algum modo. A conquista do passe foi uma revolução, sem dúvida, e no momento histórico mais improvável. A dívida dos jogadores profissionais que vieram depois para com o Dr. Afonso é imensa. A grande maioria nunca se deu conta disso. Já sobre o Nei Conceição circulam muitas estórias. Muitas delas não têm confirmação do próprio porque ele prefere que apenas se especule sobre aquilo que pode ou não ser a verdade factual dos acontecimentos. O Nei Conceição é um volante genial que caiu voluntariamente num relativo ostracismo – não para os que o viram jogar, que apontam a sua matada de bola como a maior do futebol brasileiro. Diria até que houve certo esforço da parte dele nesse sentido. O tiro meio que saiu pela culatra, já que todo o tipo de especulação surgiu para alimentar ainda mais o estigma que o cercava na época em que atuava profissionalmente. Daí as lendas que ficaram no imaginário das torcidas sobre ele. Uma das estórias é a da clássica não-transferência dele para o Palmeiras, mais precisamente para a segunda geração da Academia Palmeirense, onde ele iria compor o meio do campo com o Ademir da Guia. Claro, essa estória está no filme, em diferentes versões, porque, em se tratando do Nei, nunca se sabe ao certo como as coisas se sucederam. Ele realmente não facilita. E se você quiser saber a minha opinião, ele está mais do que certo. O fato é que o Nei está muito além do folclore que teimou em colar no nome dele. Afonsinho, seu grande parceiro dentro e fora dos gramados desde que se conheceram em 1965 no Botafogo, detecta nele uma sensibilidade ímpar. A expressão “jogar por música” que se emprega para definir o craque total, cai como uma luva no caso do Nei: ele era músico profissional antes de ser jogador. Toca vários instrumentos: violão, acordeon, trompete, percussão etc. O seu contato próximo com tanta gente do meio musical se explica por mais que uma mera afinidade – ele era do meio mesmo. Uma das mais célebres lendas sobre ele era que preferia treinar com os Novos Baianos, no sítio Cantinho do Vovô, em Vargem Grande, onde eles moravam, do que em General Severiano, sede do Botafogo.

O Caju sempre teve uma noção de negritude muito forte, foi um dos primeiros jogadores a adotar o blackpower. O que isso significou na época? Como você vê hoje a questão do racismo e principalmente da reação a ele no futebol?

Foi um impacto monumental, um jogador com a projeção que ele tinha, em plena era Médici, bater de frente publicamente contra a falácia da democracia racial no país tanto verbal como visualmente. O recado foi muito direto da parte dele. E acabou como uma atitude algo solitária no meio. Imagina o peso dessa responsabilidade de assumir em alto grau a consciência racial numa sociedade que institucionalizou a inexistência do racismo, apesar de todas as evidências em contrário? E num período histórico totalmente refratário a esse tipo de discussão? Todo tipo de acusação possível foi feita contra ele a partir daquela época. O Caju acabou se convertendo num caso típico de amor ou ódio. A questão racial também foi colocada por jogadores que antecederam o Caju como Leônidas da Silva, Fausto dos Santos, Barbosa, ou um técnico como Gentil Cardoso, mas não com a mesma adesão consciente e intensidade. O goleiro Aranha veio a ser um representante bissexto dessa luta no futebol brasileiro. Lamento que não seja algo mais frequente. O racismo é um tabu expressivo no nosso cotidiano. No futebol, é quase um assunto proibido. O Aranha se tornou ainda mais vítima do problema por ter se manifestado a respeito. A maior punição quem sofreu foi ele, e não aqueles torcedores do Grêmio (e não só a menina), que agiram criminalmente. Onde ele está agora? No ostracismo… Realmente, o Caju sobreviveu a muita coisa… Uma pena que o sermão sobre a mentira da “democracia racial” que ele passou nos dirigentes do Fluminense na cerimônia de apresentação dele nas Laranjeiras, quando ingressou na Máquina Tricolor, ficou de fora do filme. Admito que não conhecia ainda a estória quando elaborei o roteiro de perguntas.

Uma acusação que se faz muito ao Sócrates, por exemplo, que também foi um jogador contestador, é que ele deveria ter sido “mais atleta”. Isso é uma acusação que se faz aos três? Eles poderiam “ter ido mais longe”?

Esse estigma é fatal no caso de todo jogador com personalidade própria. Ainda mais quando ele se notabiliza por ser contestador em nome da classe. É uma velha estratégia de desqualificação. A gente sabe: parte considerável dos dirigentes, treinadores, imprensa e torcedores, na sua inclinação conservadora, costuma se engajar nesse tipo de campanha de detratação do atleta que não se encaixa em determinados padrões de comportamento. É um hábito tradicional da cultura da bola, em geral. Dele se cobram todas as virtudes morais que ninguém põe em prática, mesmos ainda quem faz essa cobrança. É uma vigília incessante. O fato do Afonsinho, do Caju e do Nei circularem pelo meio artístico sempre foi visto com reservas, quando não reprovado com veemência. A questão foi que a disciplinarização militar se esmerou em transformar o jogador numa máquina dócil, sempre apta a fazer uso da sua força física em primeiro lugar. Outros colegas do trio, como Geraldo Assoviador e Marinho Chagas, também se viram podados por essa política intervencionista do regime que tinha como aliada essa patrulha moralista. A pesquisa que o sociólogo José Florenzano fez sobre o Afonsinho e o Edmundo aborda isso de uma forma muito pertinente. Sobre o Sócrates quero dizer aqui, e sem nenhuma intenção de polêmica, que os três personagens do filme só não criaram algo como a “Democracia Botafoguense” porque viveram um momento bem mais repressivo que o da Democracia Corintiana, quando já vigorava a distensão política. Creio que havia um potencial enorme para a realização de uma experiência em termos similares. Um deles era a personalidade e o papel exercido pelo trio protagonista naquele grupo, apesar da evidente liderança tática e, por consequência, moral do Gerson, um craque genial com grande senso coletivo dentro do campo, mas, fora dele, pouco inclinado a ter a mesma atitude. Guardando as devidas dessemelhanças, esbocei um paralelo Afonsinho/Sócrates, Paulo Cézar Caju/Wladimir, Nei Conceição/Casagrande para o Afonsinho e ele achou interessante. Demérito algum na história daquele movimento de autogestão por ter acontecido durante a abertura da ditadura. Não foi nada fácil levar aquilo adiante, a gente sabe. Combater a estrutura feudal do futebol brasileiro é uma tarefa reservada apenas aos realmente destemidos. O Afonsinho e o Caju eram grandes amigos do Sócrates e são admiradores da Democracia Corintiana, claro.

Você acredita que ainda hoje existe espaço para jogadores como os três? Na sua opinião existe um desinteresse dos jogadores de hoje com posicionamentos políticos e sociais? 

Ao que tudo indica, infelizmente, não há mais espaço. Lembro aqui a entrevista do Daniel Alves num programa da ESPN, no ano passado. Ela foi anunciada como bombástica, reveladora, já que ele não teria refugado diante de nenhuma pergunta. E o que se viu foi só o que se pode esperar, na atualidade, de um jogador a quem se convenciona atribuir qualidades como “ter personalidade” e “falar exatamente o que pensa”. É um contexto de enorme limitação de ideias e valores. A rigor, nada o que pensa ou o que “tem a dizer” o lateral direito do Barcelona interessa. (Exceto para o seu empresário, talvez.) Foram duas horas de ode à “excelência” e a uma muito louvada, ultimamente, “meritocracia”. Foi a confirmação de que o modelo de futebol globalizado exige o jogador esvaziado da capacidade de ter opinião própria real. Sem pudor ou medo de aparecer, a face da escravidão moderna no seio do futebol profissional se mostrou naquela noite. Foi até didático. O marqueteiro, o assessor de imprensa, o consultor nem sei exatamente do quê e outros aspones muito bem remunerados converteram o jogador numa marca comercial rentável a ser negociada com grandes clubes, agências de publicidade e redes de televisão. Não tenho notícia de nenhum atleta atual que tenha se insubordinado,mesmo para posar bem para foto, contra isso. (O prejuízo decorrente disso poderia alcançar cifras incalculáveis.) Sinceramente, gostaria de ser apresentado a um para me sentir menos cético. O Emerson Sheik vai pela mesma linha. Me aponte uma única polêmica dele com um mínimo de densidade. Nada além de um imenso e inabitável oco.  Temos aí o Bom Senso FC, uma experiência destituída de qualquer sentido ideológico definido, que parece mais uma organização de empresários que se juntaram para defender os seus interesses corporativos. Mas, claro, sem deixar de apelar para o já manjado e conveniente método de propalar certa “responsabilidade social” ao não deixar de fora do papel as reivindicações dos times das divisões de baixo e mais uma ou outra medida demagógica. Uma boa jogada de marketing para a defesa da reputação da iniciativa. Mas a gente sabe que o recado não poderia ser mais claro: o que está em primeiríssimo plano é a luta pela garantia do interesse financeiro do jogador de elite que não quer perder parte dos lucros para o cartola e para a emissora de TV no negócio da exploração da sua imagem. A não ser que haja uma revolução que ainda não mostrou a cara, definitivamente não há espaço para jogadores como Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição no futebol dito “moderno”. Portanto, azar o dele.

 

*Bruno Pavan é jornalista

**Lucio Branco é cineasta (porque a era digital aconteceu)

CONTRA O PENTE FINO DO FUTEBOL

texto: Lucio Branco | vídeo: Daniel Perpétuo

Barba, Cabelo & Bigode, documentário em longa-metragem que aborda a trajetória dos craques da bola – e da dissidência consciente – Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição, não é exatamente um projeto recente. Impossível negar que há algo de muito pessoal na sua origem…

Data dos inícios da minha puberdade a admiração que trago por Afonsinho e Caju, duas personalidades únicas que me ensinaram que esse negócio de ser você mesmo é, embora raro, artigo de primeira necessidade na sobrevivência moral de todo dia. Um sentimento que se confundia — coisa típica da idade — com o orgulho de sabê-los revelados profissionalmente pelo Botafogo de Futebol e Regatas, agremiação da qual a fatalidade e o livre-arbítrio me fizeram torcedor.

Eis aí outra condição comum, o que fazia crescer ainda mais esse orgulho: apesar de tudo, eles nunca deixaram de torcer pela Estrela Solitária. (“Apesar de tudo” é uma ressalva que vai ser melhor explicada parágrafos abaixo.) Na minha ótica, não concebia — e ainda não concebo — a possibilidade de ter sido outro o clube a revelá-los. Não demorou muito para conhecer o Nei Conceição e as mil afinidades com os seus dois colegas alvinegros. A trinca capilar que intitula o filme então se fechava com um jogador que, diziam, preferia treinar com os Novos Baianos do que em General Severiano. O que poderia ter mais apelo para um adolescente que já sabia que ouviria a banda do Moraes Moreira com o mesmo interesse aos 40?

Repito: sou de novembro de 1974. O que significa dizer que escolhi — e como disse, também fui escolhido — torcer por um clube num momento no qual se atropelava em crises que insistiam em querer deslustrar a sua monumentalidade. Todas foram em vão. (E ainda estão sendo, porque, após um intervalo considerável, as mesmas forças voltaram a operar em nosso desfavor.)

Traindo o gosto pela autossabotagem ao longo de sucessivas gestões de uma cartolagem disposta a realizar os sonhos mais secretos dos adversários, o Botafogo foi deixando de corresponder à minha fidelidade militante. Fenômeno que não espanta: — basta considerar a sua cega adesão à estrutura feudal do futebol brasileiro desde sempre. (Temos que levar em conta que esta não é uma exclusividade sua.) Mesmo quando este, o futebol brasileiro, era o maior do mundo — principalmente por sua causa, como nos aponta o rigor factual dos eventos acontecidos em campo.

A esse respeito, não me deixam mentir a crise que se instalou imediatamente após a contribuição generosa do Glorioso na conquista da Jules Rimet, no México, em 1970. E, também, a derrota no apito sofrida pela Selefogo, na final do campeonato estadual do ano seguinte. Afonsinho, Caju e Nei foram personagens que atuaram direta e/ou indiretamente nessa fase de conquistas, mas, também, de alguns reveses. Ambos estão inscritos na História e no Mito, os quais se recomenda não contrariar — principalmente as conquistas. Quem viveu a época sabe bem: adentrar o gramado surrado de General Severiano parecia a melhor forma de encurtar o caminho até a convocação para o escrete canarinho.

De resto, a contribuição que esses três dão à mística da Estrela Solitária, fazendo jus à significação de um emblema tão ímpar, tem a ver com a vocação do Glorioso contar com uma galeria de personagens que, individualmente, primam pela distinção pessoal com (todo o) respeito aos seus colegas das demais agremiações. A vitoriosa geração alvinegra que antecedeu a de Afonsinho, Caju e Nei contava com outro trio de peso no quesito humano, demasiado humano: Garrincha, Didi e Nilton Santos. E para fazer brilhar ainda mais essa constelação, não custa lembrar que eles foram treinados por ninguém menos que João Saldanha.


Afonsinho

Já vivi a situação inúmeras vezes… Quando, entre conhecidos ou não, vinha à baila o tópico — às vezes até algo elitista — dos “jogadores diferenciados”, os nomes que protagonizam Barba, Cabelo & Bigode quase ou nunca eram mencionados. Fatalmente, o Sócrates era o primeiro da lista. Curiosa a infalível citação ao jogador que bravamente conseguiu conciliar futebol, medicina e ativismo político sem abrir mão de “viver a própria vida”. Sempre me soou estranha a indiferença para com o fato de que o Afonsinho havia indicado como se trilhar exatamente o mesmo caminho, além de ter enfrentado — e vencido — a luta pelo passe livre.

O paralelo com a Democracia Corintiana, experiência de autogestão que marcou a história do Parque São Jorge e do Brasil da abertura política, é incontornável. Porém, a meu ver, seria mais justo — porque a cronologia é um critério que julgo relevante — que o movimento inverso fosse mais frequente. Ou seja, que fosse feita menos eventualmente a menção aos craques libertários do Botafogo quando o assunto em pauta fosse os ventos de autonomia que varreram o clube paulistano no início da década de 1980. Mesmo se levando em conta que, anos antes, o esforço alvinegro não tenha ganho contornos coletivos, não obstante todas as tentativas nesse sentido. Entre as perguntas para o Afonsinho, eu mesmo não hesitei em levantar a questão, e não deixando de ressalvar o aspecto técnico (com exceção apenas para o seu colega de posição e estetoscópio), de que há alguma afinidade de fundo entre os binômios Afonsinho/Sócrates, Paulo Cézar Caju/Vladimir e Nei Conceição/Casagrande. O Camisa 8 do Time da Consciência considerou “interessante” a associação, mas sem deixar de concordar com a minha colocação de que o seu pioneirismo político e o dos seus parceiros capilares era uma especulação a ser mais levada a sério por mim do que por eles próprios.


Os três craques davam trabalho aos marcadores

O Botafogo nunca gozou do mesmo prestígio junto à grande mídia e das agências de publicidade que, inegavelmente, contribuíram para a consolidação do fenômeno da Democracia Corintiana junto a sua numerosa torcida e para além dela. Não vai aqui nenhuma restrição ao fato, apenas uma constatação. O que ajuda a explicar como o clube carioca teve que lidar com forças contrárias até mesmo à evidência do seu apogeu, que tanto contribuiu para fazer do imaginário do futebol brasileiro o que é. Só para lembrar: o apogeu alvinegro coincidiu, não por acaso, com a era de ouro da modalidade entre nós.

A trincheira na qual se meteram os três foi justamente num momento em que a artilharia contrária era muito mais pesada. Estamos falando principalmente da era Médici, o período mais repressivo de uma ditadura que interviu diretamente no futebol para se legitimar junto à população e tentar passar menos comprometida à História. (A se levar em conta o processo de desavergonhamento do reanimado conservadorismo à brasileira dos últimos tempos, não se pode dizer que foi um projeto malsucedido.) A rotina dos clubes passou a ser regida pelos mesmos códigos que já vinham condenando o país ao arbítrio. Afonsinho, Caju e Nei enfrentaram a imposição das cartilhas de comportamento nos clubes, a lei do passe, o regime de concentração, o controle sobre as condutas extracampo etc.


Paulo Cézar Caju

Na frase promocional da campanha de financiamento colaborativo de Barba, Cabelo & Bigode que a plataforma Benfeitoria me solicitou, digo: “Da desobediência civil em plena militar ao 7X1: Afonsinho, Caju e Nei Conceição falam tudo”. O conceito de desobediência civil talvez não dê conta do espírito de grupo que sempre foi a tônica da atitude geral dos três, mas, mesmo assim, é válido. Não lhes sobrou outra alternativa senão se isolar na sua franca oposição aos desmandos praticados ou expressamente autorizados pela CBD, seja na seleção, ou nos clubes onde atuaram. A condenação à impossibilidade de se articular com os colegas de time que cada um deles sofreu acabou encontrando uma boa solução metafórica no filme: registrada em inúmeros planos, a resistente Ilha de Paquetá, onde o Afonsinho mora e trabalha, e que o Nei tanto frequenta, é o principal cenário do filme.

Cinema e futebol sempre foi um casamento pouco estável no Brasil. Há as raras e muito honrosas exceções — todas no campo do documentário — que não podem ser negligenciadas. Fiz a minha parte indo atrás das devidas autorizações do uso de algumas das suas respectivas imagens no filme. Falo de Garrincha, Alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade; Subterrâneos do futebol, de Maurice Capovilla, Passe livre, de Oswaldo Caldeira; e Futebol, de João Moreira Salles. Além do óbvio aproveitamento temático para o filme, há a questão da preservação da memória audiovisual, um princípio no qual pomos fé. Afinal, não é agradável, por exemplo, ver as mesmas cenas do filme do Joaquim Pedro restritas apenas a matérias telejornalísticas suspeitas, em sua maioria.

Para concluir, retomo o viés pessoal do início do texto. Quero falar de uma herança deixada pela experiência de filmar Barba, Cabelo & Bigode. O Trem da Alegria, time itinerante criado em 1975 para abrigar jogadores desempregados e artistas com fome de bola capitaneado pelo Afonsinho, e que tem como hino uma composição do João Nogueira nunca gravada, serviu de inspiração, juntamente com os mais recentes Autônomos FC e Rosanegra Ação Direta e Futebol, ambos de São Paulo (todos os três estão no filme), para a criação do nosso bravo Radical Contra FC, que traz uma efígie do Buenaventura Durruti no escudo e o Nei Conceição como patrono.

Quando soube da ideia, nosso camisa 5 coçou o bigode que não tem mais e a aprovou na hora.


Lucio Branco é cineasta só porque a era digital aconteceu.

Abaixo, o perfil (também redigido pelo autor do artigo) dos protagonistas deste documentário em longa-metragem:

 

Afonsinho

Afonso Celso Reis Garcia, o Afonsinho, é conhecido por ser o primeiro jogador a conquistar o passe livre no futebol brasileiro. A aura de jogador rebelde, além de confirmada na barba e nos cabelos compridos quando ninguém ainda os exibia nos gramados, transparecia na consciência política desenvolvida em plena ditadura militar. Evidentemente, esses são aspectos singulares. Mas há algo que deveria ser considerado com mais frequência sobre ele: é que o seu engajamento talvez não tivesse a mesma ressonância histórica não fosse a sua intimidade com a bola. Afonsinho foi um craque monumental. Isso, por si só, já lhe atraía os holofotes. E o fato de nunca ter sido convocado para a seleção nada teve a ver com critérios técnicos.

Ainda muito novo, Afonsinho era uma promessa nas divisões de base do XV de Jaú. Apostando no próprio potencial, fez as malas para o Rio de Janeiro em 1965, movido pela mesma vontade de independência que foi a constante da sua carreira. O apelo da mística do Botafogo de Garrincha, Didi e Nilton Santos falou mais alto e ele não hesitou em escolher o seu novo destino na metrópole. Após breve passagem pelos juniores, Afonsinho foi alçado à condição de reserva, e logo, à de titular na meia-direita na equipe principal de General Severiano. Ciente da curta vida útil do atleta profissional, e também pelo desejo de se emancipar, dividia o período de treinos e concentração com a faculdade de medicina. E não demorou a se converter, para a diretoria, numa incômoda exceção à regra.

Afonsinho era articulado e exercia uma liderança espontânea entre os companheiros. Defendia direitos elementares que só o clube teimava em não considerar como tais. O pagamento em dia dos prêmios pelas vitórias do time era um deles. O diretor de futebol Xisto Toniato e o técnico Zagallo passaram a vê-lo como muito destoante do restante do grupo. A começar pela sua aparência.Implicaram com a sua barba rala, o cabelo um pouco maior que o permitido pelo padrão vigente. Em protesto, deixou-os crescer ainda mais. Afonsinho reivindicava melhores condições de trabalho para si e os outros jogadores. Dentre todas as reivindicações, a do passe livre tornou-se aquela que historicamente mais se associaria ao seu nome. Verdadeiro grilhão que aprisiona o jogador ao clube, o passe era — e ainda é, para quem não o detenha — a principal garantia de controle sobre os atletas por parte dos cartolas. Após longa batalha judicial contra os dirigentes alvinegros pela disputa do seu passe, a Justiça, de forma inédita (e inesperada), deu-lhe ganho de causa. O sinal de alerta foi ligado nas outras agremiações. O camisa 8 tornou-se um exemplo perigosamente influente dentro do sistema do futebol brasileiro.

General Severiano foi a primeira estação da sua trajetória cigana pelo profissionalismo. Uma trajetória marcada, principalmente, pelos embates com a cartolagem e os códigos disciplinares de todos os clubes pelos quais jogou. Além dos outros três grandes do Rio, a lista inclui Santos, Olaria, Madureira e América-MG. Não é de surpreender que fosse fichado no DOPS, ou que tivesse seus passos vigiados de perto tanto nas concentrações — mesmo quando em excursões internacionais — como na sua rotina universitária. Os infiltrados devem ter tido muito trabalho, já que Afonsinho frequentava círculos que não só o do futebol. A amizade com músicos rendeu “Meio de campo”, de Gilberto Gil, em louvor a sua luta. A canção aparece como um dos elementos narrativos de Passe livre, formidável documentário em longa-metragem de 1974, de Oswaldo Caldeira, que flagra o seu nomadismo clubístico ao sabor das desavenças que ia acumulando com dirigentes e treinadores. Entre as rescisões de contrato, excursionava em esquema mambembe com o Trem da Alegria, time que reunia artistas, jornalistas e jogadores temporariamente desempregados como ele. Era a solução para se manter em forma e melhor viver a liberdade conquistada.

Contestador em nome da classe, e não por ressentimento pessoal, Afonsinho se relaciona com o mundo à maneira do seu antigo fino trato com a bola. Outros reivindicaram direitos antes dele, mas nenhum o fez com tamanha consciência. Ou mesmo conseguiu conquistá-los como ele conquistou. Isolado, lutou pioneiramente por todos. Foi, com o perdão do trocadilho, um solidário solitário. E também um revolucionário, fazendo jus ao título como ninguém. Outros dissidentes do futebol trilharam o caminho que ele pavimentou. Quanto à lei do passe, até os atletas mais alienados vieram a ser beneficiários do seu gesto precursor. A geração atual de jogadores profissionais não sabe, mas tem uma dívida descomunal para com Afonsinho.

Paulo Cézar Caju

Quando Paulo Cézar Caju iniciou a carreira, os negros que atuavam no futebol brasileiro não eram exatamente conhecidos por manifestar consciência racial. É evidente a contribuição da cultura negra à reinvenção local dessa modalidade esportiva originalmente europeia. Não à toa foi um fenômeno dissecado por Mario Filho no clássico cujo título já estampa a relevância do tema: O negro no futebol brasileiro. Mas nem mesmo no universo popular do futebol se consegue desmentir o decantado mito da “democracia racial” que teima em querer definir a identidade do país. Desde os primórdios, as tensões raciais ali dentro refletiam as mesmas que vigoram do lado de fora. E não importava o quão craque pudesse — ou ainda possa — ser o jogador negro. Caju se deu conta disso muito cedo e reagiu à altura, não reconhecendo e recusando o lugar que lhe era reservado nesse universo. Não é exagero dizer que ele poderia ser um personagem de Mário Filho. E quem sabe o fosse, num capítulo exclusivo de uma provável versão estendida do livro, caso o autor não morresse em 1966, às vésperas da consagração do camisa 11 nos gramados.

Quando contestava decisões de técnicos e dirigentes, Paulo Cézar o fazia, também, por não querer interpretar o clássico papel do negro subalterno. Como o recado era claro demais, o efeito foi imediato: ganhou o rótulo de jogador-problema. O que não se esperava era que Caju viesse a assumir o estigma como forma de melhor resistir ao seu peso moral. Assim, desafiou uma cultura jamais inclinada a perdoar a cor do goleiro brasileiro da Copa de 50 pela falha que não cometeu na final contra o Uruguai, no Maracanã. Ao optar pela rebeldia em campo, Caju sentiu na pele que, em terra de Barbosa, bode expiatório pode ser também ovelha negra. E concluiu mesmo que, no seu caso,até deveria.

Paulo Cézar Lima era filho adotivo do ex-técnico alvinegro Marinho Rodrigues. Testemunha do seu talento desde cedo, não pensou duas vezes em conduzi-lo a General Severiano. De saída, Paulo Cézar se revelou artilheiro nos treinos dos juvenis. Sua habilidade muito acima da média o levou a ser também “adotado” pelo técnico Zagallo, que deve ter enxergado nele uma espécie de seu sucessor (melhorado) na ponta-esquerda. Logo ganharia uma vaga no time principal, em 1967. Sua estreia, jogando os 90 minutos de uma partida (na verdade, 120, por conta da prorrogação), não poderia ser mais apoteótica: marcou os três gols da vitória alvinegra por 3 X 2 contra o América-RJ, na final da Taça Guanabara. Três anos depois, Zagallo manteve sua convocação quando assumiu o lugar de João Saldanha no comando da seleção tricampeã de 70. O lugar de Paulo Cézar ali era cativo. Podia ser tanto entre os titulares como no seu banco de luxo. Quando solicitado, não só deu conta do recado como superou expectativas. Suas atuações contra a Inglaterra e a Romênia estão eternizadas em vídeo tape para desmentir qualquer declaração em contrário. (Mas há quem o declare?).

Paulo Cézar Caju foi uma espécie de representante pioneiro — e algo solitário — do movimento Black Power no meio do futebol nacional. No despertar dos anos 1970, a consciência racial ganhava novo impulso com o circuito dos bailes blacks do subúrbio, no Rio de Janeiro. A resposta ao racismo assumia a feição de um movimento urbano de massa. Ao som do soulfunky, gênero criado por James Brown e sua banda, equipes de som e dançarinos a caráter afirmavam a sua negritude justamente no momento mais repressivo da ditadura militar. Caju não ficou indiferente a isso. Seguiu à risca os mandamentos blacks: adotou o visual de roupas coloridas e cabelo grande (que tingia de acaju — daí o apelido), as gírias características, o punho estendido etc. E, dando estofo a isso tudo, um comportamento que dizia alto que ele era negro e que se orgulhava disso; que era alguém e que merecia respeito. (Mas não foi apenas o soul que fez a trilha sonora da sua história. Em 1980, rendeu-se ao reggae quando atendeu ao desejo de Bob Marley de jogar ao seu lado).

Sem nunca pedir licença, Paulo Cézar Caju frequentava tanto os bailes do subúrbio como as boates da zona sul do Rio. Estava certo de que não havia ambiente social que não pudesse frequentar — por pior que fosse recebido. Falamos de um tempo em que a discriminação racial era uma experiência mais abertamente compartilhada, despertava menos constrangimento social. O ponta-esquerda vitorioso do Botafogo e, posteriormente, de tantos outros clubes — inclusive do francês Olympique de Marseille –, desafiou a exclusão com uma atitude inédita porque, para muitos, intoleravelmente consciente.

Nei Conceição

Consta que Nei Conceição, na véspera da sua transferência do Botafogo para o Palmeiras, não parecia dar muita importância ao que estava para se consumar dentro de algumas horas. Ele iria integrar a histórica Academia Palmeirense, a maior geração de jogadores formada no Parque Antártica. Era o início dos anos 1970, e, naquele dia, como de costume, Nei estava passando tempo na célebre comuna dos Novos Baianos, em Jacarepaguá. Caso se desse por sua falta em General Severiano, já era sabido o seu paradeiro. Havia até quem achasse que ele preferia treinar com Moraes Moreira e seus parceiros de banda — conhecidos também pelo espírito peladeiro — do que com seus companheiros de clube. E naquela ocasião em particular, Nei intuiu a promessa de uma confluência astral com outra frequentadora do lugar, e pernoitou por lá mesmo. Sua cabeça não estava ocupada com certos detalhes da viagem como, por exemplo, a hora marcada do voo. Ou, ainda, a coletiva de imprensa e os dirigentes e torcedores alviverdes que o aguardavam para a apresentação formal do dia seguinte. Por ele, São Paulo podia esperar.

Num arroubo de responsabilidade profissional raro entre músicos do período, seus anfitriões tentaram convencê-lo que o melhor era ir. Afinal, ele iria jogar ao lado de Ademir da Guia, simplesmente, o maior ídolo da história do clube paulistano. Mas não deu resultado. E o fim foi mais que previsível: perdidos o voo e a transferência, Nei prosseguiu ganhando menos no Botafogo. Pelo menos, não teria que pegar a ponte área quando quisesse visitar os seus amigos em Jacarepaguá — deve ter calculado assim.

Nei da Conceição Moreira é um craque injustamente pouco comentado do futebol brasileiro. Habilidoso, do gênero que matava a bola no peito como ninguém e a fazia correr colada aos pés, tinha, em igual medida ao seu talento, horror à cartilha que rege a rotina dos clubes. Os ponteiros do seu relógio pessoal tinham vida própria, funcionavam conforme um compasso fora do tempo ordinário. O técnico Zagallo, mesmo tendo sido testemunha diária do seu temperamento no Botafogo, não abriu mão de tê-lo entre os primeiros convocados logo que assumiu o grupo que viria a se sagrar, meses depois, tricampeão na Copa do México, em 1970. Mas a aposta não foi muito longe: acabou barrando-o. O motivo alegado? Indisciplina. O regime da seleção era outro, mais rigoroso, sob intervenção militar — modelo que, dentro em breve, passaria a ser adotado pela maioria dos clubes do país. Assim, voltou à “Selefogo” — um esquadrão de craques permanentemente a postos para qualquer convocação ao escrete canarinho –, mas na condição de quase não selecionável. Seguiu apresentando a mesma categoria e estilo de comportamento no clube que o revelou até encerrar a carreira, prematuramente, pelo CSA de Alagoas, em 1975.

Nei Conceição era insubmisso por reflexo até numa pelada. Numa delas, novamente com os Novos Baianos, no clube Caxinguelê, no Horto, ele foi além da conta. Após driblar o time adversário inteiro, incluindo o goleiro, e com o gol escancarado, pronto para o chute fatal, decidiu voltar e repetir o feito. Gostou tanto da experiência que quis vivê-la mais uma vez. Porém, diante da censura dos companheiros de equipe, desistiu. E na justificativa, saiu-se com essa: “Aqui eu não pago pra jogar? Então faço o que eu quero!”.

Mais Nei Conceição, impossível.