por João Luiz Albuquerque, da Revista Placar, 1978
Foi em 1966, no verão. Mês de dezembro, pouco antes daquele temporal que derrubou metade do Rio de Janeiro. Eu trabalhava como cartola expert em soccer do New York Generals, da liga pirata do futebol dos Estados Unidos, o pai do Cosmos. Estava no Brasil para contratar jogadores, no melhor estilo do José da Gama, depois de ter levado, entre cinco outros, do Boca Juniors, o Luis Menotti, hoje técnico da seleção argentina.
Acho que foi o Didi que me levou à casa do Marinho Rodrigues, o técnico, ali no final do Leblon. A gente ia ter uma reunião para escolher uns dois ou três bons atacantes, um deles negro, pois se os home em New York não sabiam a diferença entre banheira e bidê, entendiam paca de marketing: queriam um artilheiro negro para tentar interessar o Harlem em soccer.
Como os clubes brasileiros tinham medo dos meus dólares piratas por causa de uma possível eliminação vinda lá da FIFA, a lista de nomes discutida na casa do Marinho era composta de craques que ficavam ali pela calçada da Rio Branco, em frente ao Cineac – era ali a antiga sede da Federação – na esperança de conseguir um contratinho de colchão de crina, canja de galinha e vales. Aí o Marinho me falou:
– Por que você não leva o meu filho? Ele tem 14 anos e joga num time na Venezuela de onde fui técnico. O garoto é bom de bola.
Olhei para o Didi pedindo ajuda, mas ele estava com cara de dia de treino matinal: fria, impassível, aquele olhar de ficar vendo a chaminé do navio pintar primeiro no horizonte. Pensei, poxa, logo o Marinho, um cara tão legal vir com esta conversa de cerca-lourenço querendo empurrar o filho. De 14 anos. Jogando num time da Venezuela! Filho de bom jogador nunca virava craque. O Marinho deve ter lido minha cara.
– Não é porque ele é meu filho, não. Ele tem um futebol para chegar à seleção. Vai ser um dos maiores jogadores do mundo. Você pega ele no caminho. Eu garanto.
Desconversei, acabei contratando o Adilson, irmão da Alaíde Costa. O nome do filho do Marinho que achei que ele queria me empurrar?
Paulo Cézar Lima.
Muitos anos depois ficamos bons amigos e não foi nem uma nem duas vezes que ele me gozou por causa desta minha bobeada. Da última vez em que jogou na seleção, há um ano atrás, tivemos uma longa conversa num banco descascado daquelas cavernosas e desagradáveis entranhas de São Januário. Paulo Cézar, naquela sua enorme sinceridade que poucos enxergam, foi lá no fundo de sua infância de menino pobre – põe pobreza nisso – buscar as razões da sua guerra particular contra tudo e quase todos. Sua carência afetiva é tão grande quanto seu futebol. Boto o cassete no gravador e deixo a fita rolar.
– Sei que tenho um temperamento muito difícil, estou sempre com a guarda alta, pronto a reagir ao primeiro bom dia, numa atitude de autodefesa exagerada. Eu fui muito bem educado por meus pais. Tenho consciência disso e acho que esta é uma das minhas maiores qualidades. Mas os outros pensam diferente, me provocam, me chamam de mal educado. Perdia a cabeça, dava o troco, revidava. São marcas muito profundas, são feridas não cicatrizadas que trago dentro de mim desde a infância. Quando criança, morava com a minha mãe numa vila em Botafogo, uma vila de pobre. Pertinho dali tinha outra vila, uma vila classe média. Era amigo dos garotos daquela vila vizinha que sempre me convidavam para jogar futebol porque o meu era muito melhor do que e o deles. Quando a bola chutada por um deles, aquele chute mal dado que sai torto, quebrava uma vidraça, já sabia que vinha ofensa pra cima de mim. Sempre saía alguém da casa atingida aos gritos de foi aquele pretinho ali, foi o crioulinho!!! Isso vai marcando a gente. Pobre sempre arranja um dinheirinho pra ter seu rádio, por mais que radinho que seja. Mas lá em casa, minha mãe não tinha nem dinheiro para isso. Já imaginou, não ter dinheiro nem para aquele que só pega estática?
– E eu, garoto, sem entender estas coisas e, ainda por cima, viciado em televisão. Seis da tarde e eu todo entusiasmado para ver o Zorro e o Falcão Negro, principalmente o Falcão Negro. Pedia, implorava aos meus amigos ricos que me convidassem para ver televisão. Como tinha muitos garotos nos rachas, eu pedia hoje a um, amanhã a outro, para não dar tanto na vista. Na minha inocência, eu achava estar naquela de não atrapalhar muito a vida na casa de ninguém. Às vezes deixavam, aceitavam meu pedido, outras até me convidavam. Eu não estava pedindo, afinal, nada de extraordinário, nada do outro mundo. Queria apenas ver televisão. Pois bem, você sabe que, muitas vezes, depois de ter acertado a ida à casa de um deles, durante a pelada de depois do almoço, eu chegava na porta da casa, chamava, ô fulano, ô fulano, ele vinha porta ou na janela e, sem jeito, muito sem jeito, me dizia: hoje não vai dar para você para você ver televisão aqui em casa. Mamãe disse que vem visita e ela prefere que você não esteja na sala quando elas chegarem. Quer dizer, tinha vergonha de ter um menino preto e pobre, ali, sentado no chão, juto com o filho, vendo televisão.
– São coisas que você nunca mais se esquece. E como marca. Bem menino, ainda, entendi que ser pobre, duro, negro, fazia diferença. Só era alguém, gente, na hora que iam me buscar em casa para ganhar o jogo para eles. Sofria demais por isso, sofro até hoje. Minha única arma de defesa passou a ser o futebol. E a de ataque, a agressividade. Não se deve, não admito que se trate mal uma criança. E não deve existir diferença entre rico e pobre, entre preto e branco. Tive uma infância dura, sofrida, pobre, mas sadia e maravilhosa. Tive todas as oportunidades para me tornar um marginal, mas não me perdi nem me perverti. Já me aconselharam a fazer análise pra resolver meus grilos, mas prefiro tentar superar tudo isso por mim mesmo. Como sou um cara muito difícil e fechado, seria quase impossível me abrir, mesmo para um analista.
*Box de João Luiz Albuquerque originalmente publicado na entrevista concedida por Paulo Cézar Caju para a revista Placar, edição de 7 a 13 de abril de 1978.