por André Felipe de Lima
Tínhamos Friedenreich, e eles Héctor Scarone, o “mago charrua”, o “Gardel da pelota”. Um gênio, porém esquecido. Por estas plagas pouco (ou nada) se ouve falar daquele uruguaio ambidestro e de um drible impiedoso e chutes fortíssimos. A poeira do tempo encobriu sua história. Creio que mesmo nossos vizinhos lembram-se dele como realmente merecia. Nós, brasileiros, não fugimos a triste regra. Os mais jovens sequer citam Friedenreich no rol de ídolos. Hoje, as gerações regidas pelo imediatismo e o prazer efêmero e fugaz deixam escapar-lhes pelas mãos a história e o passado. A memória se esvai. Não se apreendem origens que certamente justificam muito do que somos atualmente. Ora, se há na atualidade um avante como Gabriel, cujos gols deram dois títulos ao Flamengo em menos de 24 horas, foi preciso termos antes dele outros centroavantes memoráveis, que de gol em gol foram construindo um estilo, uma trajetória peculiar, e isso começou com Friedenreich, passou por Leônidas da Silva, Ademir de Menezes, Baltazar, Quarentinha, Reinaldo, Romário e Ronaldinho chegando, enfim, ao Gabriel. Mas ignoramos essa estrada. É a tal da “era líquida” sobre a qual o pensador polonês Zygmunt Bauman tanto alertara.
Scarone e Friedenreich tornaram-se “líquidos” para a história do futebol. Quando falam no Uruguai de um centroavante goleador da seleção citam imediatamente Luis Suárez, Cavani e Forlan, respectivamente os três primeiros do ranking dos artilheiros. Mas esquecem de que até 2011 nenhum outro superara Scarone, que marcou 31 gols em 51 jogos. Os outros três precisaram disputar mais de 100 pelejas para superá-lo. No Nacional, o mítico craque marcou 301 gols em 369 jogos. Hoje, dia 26 de novembro, o ídolo maior deveria ser festejado por tudo isso, especialmente em Montevidéu, onde nasceu em 1898.
Scarone, cujo pai Giusseppe torcia pelo CURCC (antecessor do Peñarol), era franzino e relativamente baixo. A compleição pouco favorável para um jogador de futebol era compensada com impetuosidade, perseverança e, acima de tudo, técnica. Felizes eram os torcedores do Nacional de Montevidéu que puderam ver o craque vestindo o manto branco, azul e vermelho por cerca de 15 anos. Com o “mago” no time, que começou a defender em 1916, o Nacional foi várias vezes campeão nacional. O escrete uruguaio, obviamente, também foi privilegiado. Tendo em campo Scarone conquistou campeonatos sul-americanos, duas medalhas olímpicas de ouro (em 1924 e 28) e a primeira edição de uma Copa do Mundo, em 1930. Nasceu naquele momento a mística da “Celeste olímpica”, com Scarone, seu irmão Carlos, o “marechal” José Nasazzi, o parceiro de tabelinhas Petrone e o estupendo Leandro Andrade, a “maravilha negra”. O Uruguai tornara-se o primeiro “país do futebol”. O mundo reverenciava seus ídolos. Scarone, em especial. Afinal, o craque mor era o baixote bom de bola.
Scarone abriu portas europeias para os jogadores sul-americanos logo após a medalha de ouro olímpica em 1924. Foi convidado para defender o Barcelona. Não permaneceu muito tempo por lá. Diziam que sofria boicote do ídolo local Samitier. Ambos desmentiram a rusga, mas os bastidores pareciam mais críveis. O futebol espanhol se profissionalizara. O mago teria de assinar um contrato, que o impediria de defender a Celeste na Olimpíada de 1928. Optou pelo amor pátrio. Regressou ao Nacional e à seleção para manter a série interminável de conquistas. A Taça Jules Rimet seria o seu épico e inesquecível limite.
O extraordinário goleiro espanhol Zamora o descrevia como “o símbolo do futebol” e o italiano Giuseppe Meazza, que seria campeão mundial em 1938, definia Scarone como “o jogador mais fantástico” que viu atuar, pelo menos até se deslumbrar com Garrincha e Pelé: “Sinceramente, já enfrentei muitos oponentes e vi muitos jogadores na minha vida, mas para mim Hector Scarone foi o melhor de todos”, dizia Meazza.
O famoso cronista uruguaio Luis Alfredo Sciutto, cujo pseudônimo era “Diego Lucero”, que trabalhava no jornal argentino Clarín, jamais titubeou: “Olhe, nem Pelé, nem Maradona, nem Di Stéfano; o melhor de todos os tempos foi Héctor Scarone. Nada como ele. Tinha tudo: inteligência, drible, habilidade, físico (aí, nem tanto) e coragem, muita coragem.”
Torcedor fanático do Nacional e um dos mais singulares contistas do futebol, o poeta e ensaísta uruguaio Mario Benedetti enxergava o esporte bretão como um fenômeno transcendental, sem amarras sociais ou econômicas. Para ele, era algo inerente à alma humana. Igualmente a outros gênios homólogos, dentre os quais Gabriel Garcia Márquez e Nelson Rodrigues, ele começou a carreira nas letras escrevendo crônicas de futebol nos jornais. Nascido em 1920, o poeta cresceu encantando-se com Scarone. Era o seu ídolo a quem conferiu uma espécie de altar em suas santas memórias juvenis. Benedetti não admitia que naquele tapete verde tão lindo servisse de tela para que falsos artistas o borrassem com jogadas feias e mal desenhadas. Nunca acreditou neles, nos falsos artistas da pelota. Mas sim na arte do Scarone, um “Rembrandt” com a bola nos pés.
Após a Copa de 30, o craque charrua defendeu os italianos Internazionale de Milão e Palermo. Em 1934, ele voltou ao Nacional, onde conquistou seu oitavo campeonato uruguaio. Permaneceu até 1939, quando aos 41 anos decidiu se aposentar no Montevideo Wanderers para tocar a carreira de treinador. Ensinou muita gente a jogar bola de verdade. Era uma unanimidade no meio futebolístico. Vivia com o salário que recebia dos clubes que treinava, mas nunca abandonou o emprego nos Correios de Montevidéu, onde trabalhou como carteiro até se aposentar. Sofreu o trauma da perda do único filho. Isso o abalou muito. O futebol era o seu refúgio emocional.
No dia 23 de abril de 1967, o genial Héctor Scarone foi ao estádio Centenário, acompanhado do amigo Pedro Cea, com quem jogou a Copa de 30 pela Celeste. Sentaram-se no camarote. Era uma tarde fria. Mais fria que o normal para aquele começo de outono. O Nacional entrara em campo para enfrentar o paraguaio Guarany, em jogo da Taça Libertadores da América. Os adversários fizeram o primeiro, mas o tricolor virou, com sobras, o placar. Scarone estava exultante. Voltou para casa bastante feliz naquela tarde. Poucas horas após chegar a sua residência, percebera que aquela felicidade era um convite de Deus. O coração de Scarone parara de bater. A história dele, não. Diante do seu túmulo Nasazzi, outro companheiro de 30, despediu-se do amigo: “Éramos jovens, vencedores, unidos, e nos imaginávamos indestrutíveis”.
Nassazi não estava errado. Scarone é indestrutível. É imortal.