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Grêmio

ATÉ A PÉ NÓS IREMOS… MESMA QUE SEJA ATÉ TÓQUIO

por Luis Filipe Chateaubriand


Em 1983, o Grêmio, campeão da América do Sul, decidia o Mundial de Clubes (ou Copa Intercontinental, como muitos preferem), contra o Hamburgo, campeão europeu.

Naquele 11 de Dezembro de 1983, o Tricolor Gaúcho jogou com: Mazaropi, Paulo Roberto, Baideck, De Leon e Paulo Cesar Magalhães; China, Oswaldo (Bonamigo) e Mário Sérgio; Renato, Tarcísio e Paulo Cesar Caju.

No primeiro tempo, o jogo teve poucas oportunidades de gol, embora muito disputado. O Grêmio teve mais volume de jogo. Renato era muito bem marcado por Schroder, mas, ainda assim, incomodava barbaridade a defesa alemã.

No único lance de real perigo do primeiro tempo, Paulo Cesar Caju recebe a bola ainda na defesa, mas próximo à lua de meio campo, aciona Renato, na intermediária de ataque, pela direita.


Renato avança com a bola com grande vigor pela direita, adentra a grande área, corta Schroder pela direita, corta Schroder pela esquerda, corta de novo Schroder pela direita e chuta rasteiro entre a trave e o goleiro alemão. Um golaço! Eram 37 minutos do primeiro tempo.

Grêmio 1 x 0.

O segundo tempo começa com amplo domínio gremista e, inclusive, um pênalti em Renato, logo nos minutos iniciais, não é assinalado. Contudo, a partir da metade da etapa, o Hamburgo equilibra as ações.

Os últimos dez minutos do segundo tempo são de sufoco alemão. Renato, com cãibras, está fora de campo. Schroder, seu marcador implacável, se vê livre para atacar, vai à área e empata o jogo, aos 40 minutos do segundo tempo.

O jogo está 1 x 1.

Vem a prorrogação. E, logo no início desta, Caio cruza a bola da intermediária esquerda, Tarcísio cabeceia no meio da grande área, Renato domina a bola com o pé direito do lado direito da área, corta o zagueiro e direciona a bola para seu lado esquerdo e, com o pé esquerdo, estufa novamente as redes alemãs. São três minutos do primeiro tempo da prorrogação.

Grêmio 2 x 1.

Daí em diante, o Hamburgo pressiona, mas os gremistas resistem. O Tricolor Gaúcho é campeão mundial pela primeira vez.


Mazaropi teve grande atuação, fazendo ótimas defesas em momentos cruciais. 

Mário Sérgio teve atuação de gala, com inteligência tática e toques e lançamentos divinos. 

Mas Renato acabou com o jogo.

Certa vez, Renato foi entrevistado por Zico. Foi indagado sobre sua atuação naquele jogo. Respondeu assim: “Joguei pouco: ataquei, defendi e fiz dois gols”. 

Pano rápido!

Luis Filipe Chateaubriand acompanha o futebol há 40 anos e é autor da obra “O Calendário dos 256 Principais Clubes do Futebol Brasileiro”. Email:luisfilipechateaubriand@gmail.com.

DE MADUREIRA SURGIU CAIO, O DO DECISIVO GOL GREMISTA

por André Felipe de Lima


Luiz Carlos Tavares Franco ficou conhecido como “Caio”. Foi centroavante e ponta-direita. Atuando nas duas posições tornou-se ídolo do Grêmio e do maranhense Moto Club. Nasceu no Rio de Janeiro, no dia 16 de março de 1955. Foi criado no bairro de Madureira, no subúrbio carioca.

O pai de Caio, Valter Franco, era fotógrafo e deu um duro danado para criar os cinco filhos. Apesar das dificuldades, Caio, que tinha pinta de craque desde pequeno, ingressou no infantil do Brasil Novo, um time amador de Madureira do qual Valter era sócio. Um dia, o time da categoria “dente de leite” do Botafogo entrou em campo para enfrentar o Brasil Novo. A atuação de Caio impressionou Joel e Joca, os treinadores do alvinegro, que não perderam tempo, levando o garoto bom de bola para treinar no Botafogo. Valter não se opôs. Imediatamente aceitou o convite feito ao filho, afinal torcia ardorosamente pelo Botafogo.

Diariamente, Caio embarcava na estação de trem de Madureira até a Central do Brasil. Dali, para o campo do Botafogo, em General Severiano, na zona sul. Uma cotidiana “viagem” longa e cansativa, mas necessária para a evolução do Caio. Dos 11 aos 17 anos, esta foi a rotina do garoto. De Madureira a Botafogo, buscando um lugar ao sol.

O pai esforçava-se ao máximo para não deixar faltar nada aos filhos. Valter fez questão de que Caio estudasse em um bom colégio. Não abriu mão da educação. Se jogava no Botafogo, tinha de estudar. Por isso o matriculou no Colégio Piedade, vinculado à antiga Universidade Gama Filho, no bairro Piedade, bem próximo a Madureira.


Com boas atuações no time juvenil, jogando sempre como ponta direita, logo o escalaram entre os profissionais, em um time de “cobras”, craques da melhor estirpe. No dia 23 de março de 1975, Caio disputou seu primeiro jogo oficial, no Maracanã, contra o América, mas o Botafogo perdeu de 1 a 0, em jogo válido pelo primeiro turno do campeonato carioca. Foi a quarta derrota consecutiva do Botafogo para o América em campeonatos cariocas.

Semanas após o jogo contra o América, Caio se desentendeu com Neca, o técnico do time juvenil. Fim da linha no Botafogo e o sonho de defender o Madureira, time do seu bairro, concretizado, para onde Caio seguiu após ser dispensado pelo alvinegro.

A estreia no Madureira foi coincidentemente contra o Botafogo, que venceu o jogo por 3 a 0. “Eu morava perto do estádio. Ia a pé para os treinos, na saída ficava conversando com a vizinhança. E me sentia em casa. Jogadores e torcida eram como uma família”. Mas, embora fosse destaque do time, o clube o surpreendeu com o passe livre. “Não entendi. Peguei aquele papel e saí do clube chorando, fui correr mundo. Mas aqueles dois anos nunca mais esquecerei.”

Em maio de 1977, Caio aceitou o convite do Coronel Santana, que treinara o Maranhão Atlético Clube e que o conhecera no Rio, para jogar no futebol maranhense. Começara, portanto, sua trajetória no Moto Club, e a estreia não poderia ser mais apropriada… contra o rival Sampaio Corrêa, na decisão do terceiro turno do campeonato estadual. Embora tenha jogado bem, Caio não conseguiu evitar a derrota do Moto Club. Nascera ali, naquele jogo, uma relação de amor com a torcida rubro-negra, mas também, ao longo do tempo, a fama de “turista” porque vivia “fugindo” de São Luís para visitar a noiva, que morava no Rio de Janeiro. Uma situação que provocou uma indisposição com a diretoria do clube que acabou emprestando seu passe, no começo de 1978, ao Paysandu, que se reforçava para disputar a Taça de Ouro, o campeonato nacional. Mas o clube acabou eliminado logo no começo da competição e Caio regressou ao Moto Club, onde permaneceu até junho do ano seguinte.

No “Papão”, como o Moto Club é conhecido no Maranhão, Caio descobriu-se mais eficiente como centroavante do que como ponteiro. Foi o treinador Marçal quem percebeu o goleador nato em Caio e passou a escalá-lo no comando do ataque. Com Caio na frente, o Moto foi campeão estadual em 1977.

Caio construiu fama de craque no Maranhão. Era justo que ousasse voos mais altos. No começo do segundo semestre de 1979, o técnico da Portuguesa de Desportos, João Avelino, passeou em São Luís a procura de valores para a Lusa. Viu Caio jogar e se impressionou. Seria ele o novo atacante da Portuguesa. Não deu outra. Caio marcou 19 gols no campeonato paulista. Os anos se passaram e Caio tornou-se ídolo da torcida da Lusa.

Em janeiro de 1983, Caio voltou das férias que passou em São Luís. Ao retornar aos treinos da Portuguesa, discutiu com cartolas, que, como represália ao que consideravam rebeldia, não renovaram o contrato de Caio, que passou a treinar isoladamente, sem contato direto com os companheiros do time. Em março, a corda esticou de vez E Caio teve o passem emprestado ao Grêmio, pelo período de dez meses. Um personagem foi fundamental para a negociação: o preparador físico Wilton, que também acabara de trocar o São Paulo pelo clube gaúcho. Caio seria uma das esperanças de gols para o time que se preparava para a Taça Libertadores da América, que também contratara César. Ambos brigaram pela posição de titular, mas Caio levou a melhor. O destino reservava grandes surpresas. E não foram poucas.


Com o Grêmio, Caio teve o seu melhor momento na carreira em 1983, conquistando o Mundial Interclubes e a Taça Libertadores da América, da qual foi o segundo principal goleador. Ao longo de sua jornada no Grêmio, assinalou 48 gols. Um deles o primeiro da vitória de 2 a 1 na final contra o Peñarol, que garantiu a primeira “Libertadores” para o Grêmio.

Mas houve um momento no Tricolor gaúcho em que Caio aborreceu-se. O centroavante era titular absoluto do time que se preparava para a disputa do Mundial Interclubes, em Tóquio, contra o Hamburgo, mas a diretoria do clube contratou várias estrelas somente para aquele jogo. Uma delas, Paulo Cézar Caju.

Logo no segundo tempo, quando o placar estava 1 a 1, Caju cansou e o técnico Valdir Espinosa escalou Caio. Sorte gremista lançada. Caio entrou para mudar o rumo da partida. Com um lançamento preciso para a grande área do time alemão, a bola encontrou Renato Gaúcho, que driblou o zagueiro e marcou o segundo dele na partida e o gol do título de campeão do mundo para o Grêmio.

Em dezembro de 1984, Caio sofreu uma grave contusão na virilha durante um jogo pela Taça Libertadores daquele ano. O Grêmio tentava o “bi” e Caio era a esperança de gols, mas, infelizmente, a contusão o tirou de cena e o time perdeu a final para o Independiente, da Argentina.

Embora tivesse apenas 30 anos, Caio sentiu-se inseguro para continuar a carreira. Decidiu, prematuramente, parar. Santos, Palmeiras e o Benfica queriam contratá-lo. Caio manteve-se irredutível e informou à diretoria que não mais jogaria.

Desolado, Caio retornou a São Luís, cidade que aprendeu a amar tanto quanto o Rio de Janeiro, sua terra natal. Do futebol, partiu para o comércio. O que tinha, investiu em uma rede de farmácias. Foi nessa época que, durante uma pelada para lá de informal, Caio descobriu que não mais sentia a impertinente dor na virilha. Estava curado. Cartolas do Moto Club souberam do fato e decidiram convidá-lo para voltar aos gramados. O Grêmio ainda era detentor do passe de Caio, mas acabou liberando-o para o clube maranhense. Caio permaneceu até 1989, ano em que o Moto Club foi campeão estadual, brigou com o presidente do clube, Edmar Cutrim, e decidiu ir para o rival Sampaio Corrêa, com o qual foi bicampeão, em 1990 e 91. Após estas conquistas, Caio decidiu, definitivamente, pendurar as chuteiras.


Passou a trabalhar com escolinhas de futebol pelo Cohatrac [Conjunto Habitacional dos Trabalhadores Comerciários], famoso bairro de São Luís, e foi treinador e auxiliar técnico de muitos clubes maranhenses, entre os quais o Maranhão e o próprio Moto Club. Mas a carreira de treinador não decolou. Seu último estágio foi em 2000, no comando do Açailândia. “Cada ser humano é um ser humano… Nem todo bom atleta quer dizer que será um técnico. Prefiro ser torcedor.”

Caio foi se virando como pôde. Foi gerente de vendas de uma fábrica de pré-moldados e derivados, localizada no bairro do Anil, em sociedade com Paulo Figueiredo, técnico em engenharia. Sem experiência de ambos, o negócio não foi para frente. Nunca se omitiu diante dos fracassos como empreendedor, mas sempre fez o possível para ajudar, sobretudo, os parentes, inclusive os da ex-esposa Zelda, com quem teve os filhos Caio Rafael e Rafaela. E foram alguns destes familiares de Zelda de que Caio disse ter sido influenciado para investir em farmácias. “Fiz algumas coisas com o dinheiro, como comprar casa pra minha mãe e meus irmãos. Na hora que achei que era momento, montei cinco farmácias; achei que era ganhar ou perder. E foi isso [perder] que aconteceu. Montei uma coisa que não tinha nada a ver comigo; eu nunca havia vendido um remédio. O que eu ia fazer com farmácias? Mas acontece que não deu certo faz parte da vida, não é só eu que está assim que passou pelo futebol e poderia estar melhor.”

Na década de 1990, o dinheiro escasseara de vez. Caio encontrou como fonte de renda um táxi, que pertence a um amigo. Até novembro de 2014, o grande ídolo gremista, da Lusa e do Moto Club dirigiu seu carro, cujo ponto ficava no Aeroporto de São Luís, para sobreviver. “Não queria ser taxista, não. Mas, dentro do que ganho, vivo bem.”

Morando sozinho e com o desgastante e insalubre ofício aliado ao uso contínuo do cigarro por anos a fio, sua saúde degringolou. Uma trombose na perna esquerda há anos o impediu de trabalhar como taxista. Caio negligenciou a doença, que se agravou em 2014. Sem recursos financeiros para o tratamento, o risco de amputação, nestes casos, é iminente. Em novembro de 2014, para reverter a situação, Tarciso, ponta-direita com quem Caio jogou no campeoníssimo Grêmio dos anos de 1980, iniciou um mutirão solidário para arrecadar recursos e operar a perna de Caio. Renato Gaúcho, o capitão do Mundial de 83 Hugo De León e o presidente do Tricolor Fábio Koff foram alguns dos que colaboraram com a campanha que levou Caio a Porto Alegre para submeter-se a cirurgia.

A solidariedade entre heróis do futebol foi decisiva para salvar Caio, um ídolo genuinamente campeão mundial!

Mas o dia 12 de fevereiro de 2019 roubou Caio do carinho das torcidas gremista e do Moto Club. Mas jamais sequestrará da memória o que Caio fez pelas duas.

OBRIGADO, TARCISO!

por Claudio Lovato


Vai, Tarciso, vai descansar em paz, Flecha Negra.

Correste muito, correste demais, voaste.

E agora vais encontrar repouso no lugar de teu merecimento.

Enfrentaste tudo e superaste tudo.

Chegaste ao Grêmio numa época difícil, tempos de muitos vendavais, nos quais nós todos tivemos de ser fortes, especialmente fortes.

Persististe, sempre.

Em 1973, ano da tua chegada, eu tinha 8 anos. Desde então e por muito tempo depois, eu estava lá na arquibancada do Olímpico, te vendo em campo sempre assim: o tempo todo lutando, na vitória ou na derrota, sem jamais esmorecer, sem nunca se dar por satisfeito, correndo, voando, lutando, sendo Tarciso, sendo gremista.

Não te intimidaste com as cobranças da torcida, impaciente e ansiosa, naqueles anos 70 de poucas conquistas.


Não te amedrontaste nem mesmo com as cotoveladas assassinas que frequentemente atingiam teu rosto nos jogos contra nosso arquirrival.

O Tarciso que, com humildade, ouviu Telê e acabou formando com André e Éder um dos melhores trios de ataque que o mundo do futebol já viu.

Isso foi em 1977. Um ano depois, eu estava na Escolinha do Grêmio e então a coisa ficava séria quando os jogadores profissionais apareciam para nos ver jogar, e o Tarciso sempre aparecia, e eu sou grato à vida por momentos como aqueles. 

O Tarciso que deu início à nossa estirpe de grandes ídolos guerreiros da camisa 7.

O Tarciso que queria vencer Grenais e o Tarciso campeão do mundo.

O Tarciso injustiçado pela CBF (seria tua, a Copa de 78; seria nossa!) e o Tarciso que um dia arrancou o aplauso libertador de toda a América. 

O jogador que mais vezes vestiu a camisa do Grêmio.

O segundo maior goleador da história do clube.

O Tarciso mineiro, que veio do América do Rio e se tornou gaúcho, porto-alegrense.

Porto-alegrense, gaúcho, brasileiro, sul-americano, do mundo – como o teu Grêmio.

Tão destinado ao Grêmio que nasceu no mesmo dia em que o Tricolor foi fundado.

Salve 15 de setembro!


Em Porto Alegre, virou vereador e elegeu suas causas: a escola com turno integral e o esporte como instrumento para evitar que os jovens caiam nas garras do crime.

Nas minhas definições de “herói”, tu serás sempre muito mais que um verbete; serás personificação e exemplo.

Correste muito, voaste. Fizeste muita gente feliz.

Fizeste muita gente entender que persistir é questão crucial – no futebol e na vida.

Obrigado por tudo, José Tarciso de Souza.

Flecha Negra.

Tarciso.

TARCISO, O DA PREVISÃO CERTEIRA DO SALDANHA

por André Felipe de Lima


O jovem mineiro José Tarciso de Sousa tinha um sonho: jogar futebol no Rio de Janeiro. O amigo Reis, conterrâneo dele, realizou o sonho do rapaz e o levou para jogar no América. Foi devagarinho. Isso lá por volta de 1969. Começou no infanto-juvenil e foi logo mostrando que era bom de bola… e de gol. Foi o artilheiro do time, com 20 gols, no campeonato carioca da categoria. Oto Glória era o treinador do time de cima. Viu o potencial do menino Tarciso e decidiu lançá-lo contra o Botafogo. E que estrela! Havia sete anos que o América não colocava o Alvinegro na lona. E, naquela tarde, com Tarciso em campo, colocou.

Foi Oto quem decidiu que o mineirinho não mais seria meia-atacante. Experimentou-o na ponta-direita de onde Tarciso muito raramente sairia. Antunes é quem sofreu com a concorrência: “Agora, se o Antunes quiser voltar, vai ter que rebolar bastante”, brincava Tarciso, ainda muito jovem, daqueles sem papas na língua e, vá lá, meio donos da verdade. Era altivo, mas um menino que levava a sério a carreira. “Aquela cor vermelha é um coisa muito séria. Vestir a camisa do América é virar fera, é querer ganhar o jogo de qualquer maneira. É lutar 90 minutos sem desfalecimento”.

Pois é, Tarciso levou todo esse furor futebolístico para os pampas. Em 1973, o Grêmio o contratou. A cor vermelha dera lugar ao azul, ao branco e ao preto em sua vida. “Quando saí do Rio, João Saldanha falou que eu era o único jogador de lá com chances de vencer no futebol europeu do sul. João é um bom profeta.”

Sim, Tarciso tornou-se o Grêmio, e o Grêmio, o Tarciso. Juntos, mesclados na entranha da alma, pareciam-se como uma única entidade. E escrevo “entidade” sem receios. Tarciso, vestindo tricolor, era idolatrado pelos torcedores gremistas como pouco se vê em todas as torcidas de todos os clubes, sobretudo hoje em dia. A festa constante para ele não era para menos. Afinal, entre 1973 e 85, marcou 222 gols com o manto tricolor. Só fica atrás do Alcindo, com 264. Dificilmente será ultrapassado. Inclusive no quesito “jogador que mais vestiu a camisa gremista”. Foram 721 jogos com Tarciso em campo. Nenhum outro foi mais vezes tricolor no gramado que ele.


Como não recordar o “milagre” de 1977, quando o Grêmio, com Tarciso perdendo penal, desbancou o todo-poderoso Inter de Falcão, na final do campeonato estadual? E quem ousaria colocar à prova a capacidade do cabisbaixo ídolo, consolado por companheiros e até rivais naquela tarde ensolarada em Porto Alegre? Tarciso era uma referência para todos.

Foi, indiretamente, vítima de uma injustiça, em 1990. Um casal esquisito, que certamente abomina futebol ou, na pior das hipóteses, parece não ter tido infância, chamou a polícia para prender meninos que jogavam uma despretensiosa pelada próximo ao portão da casa onde moravam os intolerantes. O endereço (vejam vocês) era na rua que leva o nome de ninguém menos que Eurico Lara, o maior goleiro da história do Grêmio. A polícia chegou e prendeu alguns garotos. Outros conseguiram fugir da insana ação dos policiais. Um dos que escaparam foi Marcelo, então om 12 anos, filho do Tarciso, que logo mostrou o espírito mobilizador que sempre o caracterizou. Foi ao Juizado de Menores, liderando um grupo de pais, e ouviu um respeitoso pedido de desculpas do juiz Renato Kraemer Peixoto, que condenou veementemente a prisão dos menores por causa de uma pelada.


Marcelo, o filho amado do Tarciso, era um talismã. O garoto nasceu exatamente no dia 25 de agosto de 1977, para quem não recorda a data, vamos lá: Naquele dia em que o Marcelo nasceu, o Grêmio destronou o Inter. Talvez por isso Tarciso estivesse tão tenso naquela tarde a ponto de perder um penal. Aí a justificativa para quem ainda, mesmo que silenciosamente, o critica.

Mas Tarciso sempre foi respeitado. No campo de futebol, um campeão mundial com o Grêmio, em 83. Na vida pública, idem, também um campeão. Tornou-se político, e assim se manteve, ilibadamente, até o seu último ar, neste triste e menos branco, preto e azul dia 5 de dezembro de 2018.

Adeus, ídolo.

EVERALDO, O OURO DA BANDEIRA DO GRÊMIO

por André Felipe de Lima


“Já ganhei muitos presentes — dois carros, máquina de lavar roupa, relógio — e o carinho de meu povo. Meu contrato termina no dia 6 de fevereiro do ano que vem e então eu pedirei ao Grêmio o que achar que meu futebol vale”. Estas palavras foram ditas ao repórter Divino Fonseca em julho de 1970, um mês após o Brasil conquistar o tricampeonato mundial, no México, pelo inesquecível Everaldo, lateral-esquerdo daquele escrete campeão e um dos maiores ídolos de toda a história do Grêmio. Como a maioria dos craques de sua época, contentava-se com pouco para ser feliz. O que lhe garantisse uma razoável qualidade de vida. Mas tudo que o Grêmio fizesse por ele sempre seria pouco comparado à dimensão que Everaldo representa para gloriosa trajetória do clube gaúcho.

Após a Copa de 70, Everaldo desfilaria pela Porto Alegre sentado em um trono e ganharia muitos outros bens materiais pelo seu heroísmo no México. Do presidente Emílio Garrastazu Médici, ele e todos os companheiros do “tri” receberam um cheque de 25 mil cruzeiros e uma caderneta de poupança de 5 mil cruzeiros. Quando desembarcou em Porto Alegre, recebeu uma TV, um aspirador de pó, uma bandeja de prata, uma placa de bronze, uma chuteira de bronze e dezoito pares de sapato produzidos em Novo Hamburgo, uma taça prateada, vinte garrafas de vinho fabricados em Bento Gonçalves, um troféu da emissora de TV Piratini e um título de sócio honorário da Federação Gaúcha de Futebol que lhe garantia acesso livre aos estádios de qualquer canto do país.

Everaldo era uma sumidade. Acreditava que ficaria rico após o título de 70. Era humilde e, como o descreveu Divino Fonseca, um tanto “ingênuo”. Acreditava piamente que abriria uma loja para explorara Loteria Esportiva. Pelos seus cálculos, ficaria rico em pouco tempo com a lojinha. Afinal, tinha de aproveitar a bajulação. Era incessante o entra e sai de fãs, amigos e “amigos” de Everaldo no apartamento 303, na rua Jerônimo Ornelas, nº 28. Cleci, esposa do jogador que estava grávida, atendia a inúmeros telefonemas de donos de lojas, restaurantes e boates que insistiam em convidar o casal para homenagear o grande campeão mundial. Até um agende de publicidade Everaldo contratou para filtrar os convites. Quando o campo de futebol lhe dava uma folga, Everaldo escrevia crônicas para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Ganhava 100 cruzeiros por artigo e, de tabuada em punho, concluíra: “São 30 textos para contar toda a minha história na Copa do Mundo, vou ganhar 30 mil cruzeiros ao final”. Queria ficar rico, o grande ídolo.


Everaldo Marques da Silva era reserva da melhor seleção de futebol de todos os tempos. Naquele time de 70, enquanto o mundo só tinha olhos para Gérson, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres, Rivelino, Jairzinho, Tostão e o Rei Pelé, Everaldo, que ocupara a vaga de Marco Antônio, cumpria a risca seu papel de garantir consistência à marcação e fechar a defesa. Aliás, sua principal característica como jogador era justamente a capacidade de defender, embora também atacasse com muita qualidade.

Com a seleção, Everaldo conquistou as maiores glórias de sua vida. Foi campeão da Copa de 1970 e graças a este título virou uma das estrelas da bandeira do Grêmio, clube pelo qual jogou quase toda a carreira. Quando retornou a Porto Alegre, no dia 24 de junho, após a conquista do tricampeonato foi recebido como um verdadeiro herói por uma multidão de aproximadamente 200 mil pessoas. A chegada parecia a de um pop star! O avião que trazia o único jogador de um clube gaúcho na delegação tricampeã foi escoltado pela FAB e, ao desembarcar, Everaldo foi recebido no Palácio Piratini pelo governador Walter Perachi de Barcelos.

Ao descer do avião, no aeroporto de Porto Alegre, Everaldo ficou espantado com a multidão que o cercava, com cerca de 5 mil pessoas [as que Everaldo pôde mensurar]. Perguntou ao presidente Flávio Obino e ao vice-presidente Sérgio Ilha Moreira: “Esse povo todo está aqui por minha causa?”


Everaldo voltou tricampeão do mundo e não eram só os gremistas que o aguardavam, mas o povo gaúcho. Do aeroporto até o Palácio Piratini, onde foi recebido pelo então governador Perachi Barcelos, Everaldo foi ovacionado por fãs que contavam 300 mil, a maior concentração pública numa extensão de 7 quilômetros. Fato inédito.

Ao descer o último degrau da escada do avião, Everaldo sorriu e, em seguida, soluçou. Intercalava riso e choro, erguendo os braços e procurava a esposa, a filha, os irmãos e a mãe com o olhar emocionado. Nem mesmo Figueroa e Falcão, dois ídolos renomados do Inter nos anos de 1970, nem outro jogador gremista posterior ao tempo de Everaldo foram agraciados na mesma proporção do ex-lateral esquerdo no Rio Grande do Sul.

Everaldo distribuiu autógrafos por uma semana, ganhou prêmios, homenagens públicas e foi convidado para banquetes. Pela primeira vez, um jogador do Grêmio sentou ao lado do presidente do Conselho Deliberativo e do presidente do clube. Ele motivou uma reunião extraordinária e festiva do alto órgão diretivo do clube.

Diante de tanta glória proporcionada pelo ídolo, a diretoria do Tricolor resolveu prestar-lhe uma homenagem: desde o dia 30 de junho de 1970, estampa-se uma estrela dourada na bandeira do Grêmio. A estrela é Everaldo. “Com toda a sinceridade, sinto-me feliz. Mais feliz ainda porque senti, ainda lá no México, como estaria o meu povo aqui no Brasil. Quando terminou o jogo, em segundos, eu vi o Brasil inteiro rindo e chorando. Vi a minha Porto Alegre, todos os seus bairros; vi o Olímpico, a minha turma, os jogadores e dirigentes do Grêmio; vi a minha esposa, minha filha, meus irmãos e minha mãe. Vi todos direitinho. Eles pulavam, gritavam, se abraçavam. Quando retornei, foi apenas a repetição do que já sentira lá no México. Tudo isso foi para mim motivo de alegria. Sou tricampeão do mundo. Para mim é um incentivo. Eu sei que agora tenho a obrigação de acertar sempre. Como pessoa, continuo igual. Acho, até, que nem preciso explicar. O meu prêmio maior, repito, foi ter podido ajudar o Brasil a conquistar o título. Para o Grêmio, que é o meu clube de coração, a conquista do tricampeonato representou muito.”


Nascido em Porto Alegre, no dia 11 de setembro de 1944, Everaldo, que começou jogando no Marabá, do bairro da Glória, chegou ao Grêmio com apenas 13 anos de idade para atuar nas categorias de base do clube. Vestiu pela primeira vez o manto sagrado do time profissional, no dia 18 de novembro de 1962, quando o Grêmio perdeu de 2 a 0 para a seleção gaúcha. Em seguida, Everaldo foi reintegrado ao time juvenil. Voltaria, definitivamente, ao time principal no dia 16 de janeiro de 1966, para nunca mais sair da lateral-esquerda. E com toda a pompa. O Grêmio massacrara o Itapuí de Guaíba pelo placar de 9 a 0.

Além do tricolor dos Pampas, o outro clube que Everaldo defendeu foi o Juventude. Porém, ficou duas temporadas [1964 e 65] na Serra Gaúcha e, em 1966, retornou ao clube que o revelou para não mais sair.

Com o Grêmio, conquistou quatro títulos gaúchos [1966, 67 e 68]. Era um jogador muito leal tanto que conquistou o prêmio Belfort Duarte. No entanto, em 1972, durante uma partida contra o Cruzeiro se desentendeu com o árbitro José Faville Neto e o agrediu. O ato de indisciplina lhe rendeu uma suspensão de um ano.

Everaldo gostava de samba. Foi ritmista da escola de samba Bambas da Orgia, o grêmio carnavalesco mais antigo de Porto Alegre e um dos mais populares da cidade. Mas a sua vida festiva e de glórias inigualáveis teve prazo. Um lamentável prazo curto.


No dia 27 de outubro de 1974, a vida do jogador, que se preparava para encerrar a carreira, foi interrompida bruscamente quando o carro que dirigia, um Dodge Dart, bateu violentamente em um caminhão na BR-290. No acidente, morreram Everaldo, então com apenas 30 anos de idade, a esposa e a filha.

Assim como Eurico Lara, lendário goleiro gremista, o lateral tricampeão mundial no México saiu dos gramados para entrar no Olimpo dos mitos tricolores. O craque disputou 364 jogos pelo Grêmio e marcou apenas dois gols. Se Eurico Lara teve o nome imortalizado no hino do clube, a estrela de ouro na bandeira gremista simboliza Everaldo por ter sido o primeiro jogador do tricolor gaúcho a se sagrar campeão mundial.