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Goleiro

QUIABO, QUANDO O INSTINTO FALA MAIS ALTO

por Jonas Santana


(Foto: Reprodução)

Quiabo!! Nome esquisito para um goleiro. Por que não Manga, Cantarelli, Taffarel (famoso pelas defesas milagrosas, pelo bordão de certo comentarista e pela conquista da Copa de 1994) ou mesmo Tafa-Rai (alcunha atribuída pelos colegas da academia de futebol que ele freqüentava)? Mas a galera insistia no apelido, uma forma reduzida, mas nada carinhosa de elogiar o arqueiro, para não chamá-lo de Mão-de-Quiabo. 

Na tradição da pelada o escolhido para defender a meta era sempre aquele que não sabia jogar “na linha” mas no caso de Quiabo era diferente, era uma verdadeira paixão pelo arco.  Embora fosse talentoso com os pés, ele não abria mão de mostrar suas habilidades debaixo das traves, o que fazia com bastante maestria desde que a bola não estivesse molhada. Nestas horas ele fazia jus ao apelido gritado em coro pelos torcedores, às vezes pró, às vezes contra, dos diversos times que nosso herói das traves defendia. E quando fazia uma defesa mais portentosa nosso goleiro sempre dava um berro de vitória, por ter mais uma vez neutralizado um ataque do adversário.

Ser goleiro era algo que ninguém queria e invariavelmente significava ficar de fora da diversão, por isso quando alguém era escalado para o gol, o fazia com certa relutância aceitando a ingrata missão de defender sua cidadela, desde que “tomou um gol ou o time fez gol o goleiro vai pra linha”.  Muitas vezes a regra era quebrada e culminava em confusão porque ninguém queria sair do campo de batalha para ficar “embaixo das traves” tomando boladas. Mas também havia aqueles que faziam questão de “ir para o gol” seja por vocação ou por imposição, havendo ainda aqueles que abraçavam o ofício pela falta de concorrência (ninguém queria estar no gol no momento dos chutes de Dirran, de Zé Rosca ou do próprio Vevé).

“Pra ser goleiro tem que ter coragem”, dizia sempre Quiabo, quando alguém perguntava o porquê de tal função.  Era no gol que ele se realizava. Principalmente quando ia jogar no interior, sentindo o calor da torcida naqueles campinhos apertados, com todo mundo em volta ou no estádio da cidade, E nosso amigo, magrelo e comprido, sempre com a camisa vermelha e a calça preta fazia suas artes no campo.

Nem de longe se incomodava quando lhe faziam apupos após uma defesa. Para Quiabo cada jogo era uma batalha e cada defesa era uma realização pessoal. E num desses jogos de fim de semana que aflorou uma situação um tanto quanto atípica nas hostes futebolísticas

Dir-se-ia que o jogo estava a mil, com os ânimos mais acirrados que decisão de campeonato de várzea na disputa por pênaltis. A bola parecia uma abelha ziguezagueando por todo o campo, não parando no pé de nenhum dos dois elencos e sequer chegando à meta do nosso arqueiro. Eis que de repente surge um escanteio e, almejando transpor a meta adversária, Quiabo dispara em louca corrida para a área esperando o lançamento para, quem sabe, alçar o tiro ou cabeçada fatal e decretar a vitória. 

Assim disse o narrador: “corre Zé Rosca para a bola, solta-lhe o petardo e ela vem girando feito um pião para a meta e vem em direção a Quiabo que… Incrível defesa de Quiabo!!! Incrível, senhores!!”!

Quiabo, o grande arqueiro que tinha saído de sua meta para cabecear não resistiu àquela bola descendo em sua direção e, obedecendo ao seu instinto de goleiro, literalmente voou na pelota, realizando uma estupenda defesa. Só que do lado contrário, o que lhe valeu um cartão amarelo e vários dias sem poder freqüentar as ruas do bairro por conta da alegria de seus confrades que por conta dele perderam o jogo.

Mas ele não se deu por vencido e ainda desfilou seu talento por longos anos até se aposentar depois de escorregar num prato de caruru e ficar seriamente machucado.

Dizem que ele até hoje ele não come o referido legume.

 

Jonas Santana Filho, Escritor, professor, servidor publico, gestor esportivo e apaixonado por futebol. Jonassan40@gmail.com,  jonassan50 –skype/instagrarm.

JAGUARÉ, O GOLEIRO QUE FAZIA A “BICHINHA” ROLAR NO DEDO

por André Felipe de Lima


Há histórias em que o prólogo é necessário. A de Jaguaré está entre elas. Uma eloquente epopeia. Uma trajetória incomum como a de um Heleno de Freitas, Garrincha ou Almir Pernambuquinho. Até o surgimento de Barbosa, foi ele o melhor goleiro da história do Vasco. No Brasil, poucos se lembram de quem foi Jaguaré, mas na França, especialmente em Marselha, os torcedores do Olympique o reverenciam até hoje. Jaguaré — com a sua indefectível boina — é, de longe, o melhor goleiro de todos os tempos do clube mais popular de lá. Poucos questionam isso em Marselha.

Jaguaré migrou da anedota ao trágico. Do goleiro, contaram muitos casos, uns para rir, outros nem tanto. Chegou a puxar um punhal para Welfare, então treinador do Vasco, porque queria a todo custo entrar em campo. O técnico só queria poupá-lo de uma inexpressiva partida contra o modesto Elvira de Jacareí. Mas a verdade é que Jaguaré “abria bocas de sono”, como descreveu Mario Filho. Sempre parecia que jogava obrigado, mas a “bichinha” — como se referia à bola — morria sempre em suas mãos. “Se Pereira Peixoto não estivesse por perto, Welfare era um homem morto”. Mario Filho até entendia a reação intempestiva e passional de Jaguaré. Se parasse de jogar ali, pouco importando se era um time de várzea ou o Flamengo, seu destino era o amargo regresso ao cais do porto, aos sacos de farinha, aos tamancos que usava em dias que apagara da memória. Era negro e não poderia se dar ao luxo de ser poupado de um match. Seria uma desgraça. Se fosse branco, “como um Fortes”, ex-jogador do Fluminense e de família endinheirada, não temeria. Como frisou Mario Filho, Jaguaré precisava de tudo que o futebol lhe proporcionava, principalmente casa, comida, “bicho” e retrato no jornal.

O ex-goleiro Jaguaré Bezerra de Vasconcelos nasceu no dia 14 de maio (ou julho, como apontam outras fontes) de 1905, no Rio de Janeiro. O historiador e jornalista Celso Unzelte informa, contudo, que a data correta do nascimento do goleiro seria 27 de outubro de 1908. Trabalhava em Santos, na S.P.R, nos armazéns, no pesado. Carregava tudo que surgisse. Descobriram que aquele camarada forte pra burro daria um ótimo “quíper”. Jaguaré foi a estrela do arco do Associação Docas. Achou que era bom, confiou no próprio taco e rumou para o Rio de Janeiro. Mas o futebol ainda era algo intangível. Trabalhou, e duro, no Moinho Inglês, na estiva, até ser descoberto por Espanhol, então zagueiro vascaíno, quando o viu defender o Pereira Passos F.C., antigo time do cais do porto e das peladas no bairro da Saúde. Espanhol não pensou duas vezes. Convidou-o para treinar no Vasco.

O “Dengoso”, apelido que ganharia mais tarde, tentaria a sorte em São Januário. Cruzou o portão de entrada do estádio do Vasco calçando tamanco e vestindo uma camisa fora da calça. Um desalinhado que impressionara no treino. O então técnico Welfare, que implicava com o jeito desleixado e irreverente de Jaguaré, cedeu. E não poderia ser diferente. Foi imediatamente inscrito na Liga, depois que o Vasco contratou um professor particular para ensiná-lo a assinar o nome. Teve uma carreira fulminante: no mesmo ano em que estreou no Vasco, em 1928, tornou-se titular da seleção brasileira. No ano seguinte, foi campeão carioca pelo Vasco. O goleiro já tinha uma legião de fãs. Na seleção carioca, substituiu o “intocável” Amado, do Flamengo.

Diziam que Jaguaré tinha o hábito de cochilar 10 minutos antes de entrar em campo.

Era adoravelmente irresponsável. Um goleiro acrobático, com um jeito moleque. Gostava de rodar a bola em seu dedo indicador depois de defendê-la, quase sempre com uma mão. Ladislau da Guia, irmão de Domingos da Guia, defendia, na ocasião, o Bangu, quando se irritou com Jaguaré porque o goleiro prometera, antes do jogo, driblá-lo. No primeiro lance, um chapéu — mas com as mãos — em Ladislau e a bola rolando na ponta do dedo indicador.


Em 1931, depois de uma vitoriosa excursão do Vasco a Portugal e Espanha, foi contratado pelo Barcelona, juntamente com o zagueiro Fausto. Os dois desejavam experimentar o tal do profissionalismo. Queriam, enfim, ganhar dinheiro com o esforço e categoria que esbanjavam nos gramados. A cada um os cartolas da Catalunha ofereceram 30 mil pesetas, mais 30 contos de luvas, ordenados e gratificações. Ambos jogaram apenas amistosos. Como não se naturalizaram espanhóis, o clube dispensou os dois brasileiros. Para Jaguaré, a situação era mais incômoda porque no arco do Barça havia a lenda Ricardo Zamora. A permanência de “Dengoso” na Espanha não durou mais que cinco meses. Ele e Fausto receberam apenas uma parcela das 30 mil pesetas.

Apesar da volta que ele e Fausto receberam dos cartolas do Barça, Jaguaré definiu, em 1932, ser o profissionalismo imprescindível para o esporte: “Acho que o profissionalismo é uma grande necessidade, para melhorar o nosso futebol, tão carecedor de bons conjuntos. Além disso, os profissionais jogam com mais ardor, porque é dessa tarefa que eles tiram o pão de cada dia. A vitória para o ‘footballer’ assalariado é uma questão de vida. Lá na Espanha, onde joguei, vi muitos companheiros chorando, depois dos jogos perdidos. Uma bola que vai fora do arco, chutada por profissionais, importa em grande tortura para todo o time, que perde, assim, possibilidades de ganhar mais ‘nota’”.

Mario Filho registra em sua obra sobre o negro no futebol brasileiro que Jaguaré, “antes que o dinheiro acabasse”, teria retornado ao Brasil. A São Januário, mais precisamente. Mas o Vasco “não quis saber dele”. Chegou justamente no dia de um jogo contra o Botafogo que valia o título carioca de 1931. Foi hostilizado e deixou a arquibancada sob vaias. Embarcou em um táxi para Campos Sales, onde jogavam América e Bonsucesso. O Vasco, até a “fuga” de Fausto e Jaguaré, mantinha ampla vantagem sobre os adversários na tabela do torneio. Mas enfraqueceu-se. Perdeu seus dois principais craques. Os botafoguenses derrotaram vascaínos. O América venceu o seu jogo e conquistou o título.

Desde que retornara da Europa, o único assunto de Jaguaré era o tratamento que recebera dos espanhóis. “Menino, só vendo!”. Então “promessa de craque” em 1932, Leônidas da Silva se encantava com as histórias contadas por Jaguaré sobre a estada em Barcelona. E o arqueiro só ficou na Catalunha apenas cinco meses. Imagine se permanecesse por mais tempo.

Sem o Vasco para acolhê-lo, o goleiro estava convicto de que deveria voltar ao futebol europeu. De tanto propagar sua aventura espanhola, muitos outros jogadores se interessaram pelo “novo eldorado”. Um dos quais, Leônidas.

Jaguaré já estava no porto. Leônidas iria com ele. Mas nada de Leônidas aparecer. Sem poder espera-lo por mais tempo, Jaguaré, preparava-se para embarcar quando foi detido por policiais. A acusação: desertor. Foi sorteado para o serviço militar e não compareceu. Mario Filho escreveu que a prisão de Jaguaré foi uma grande “sorte”. O Barcelona nunca enviou passagens tampouco o procurou para algum acerto. Lá, na Europa, negro e sem dinheiro seria tudo muito mais complicado. Se no Brasil, o preconceito racial era latente, o que dizer na Europa.

Ficou por aqui mesmo e tinha de sobreviver. Era querido por todos que trabalhavam no meio futebolístico, jogadores, cartolas, técnicos… e, sobretudo, torcedores. Estava fundado o “Festival do Jaguaré”, jogos de futebol patrocinados por blocos carnavalescos, cujas rendas eram repartidas entre os jogadores. O evento organizado por Jaguaré fez tanto sucesso que atraiu mais torcedores que as partidas do campeonato carioca de 1932. Domingos da Guia e Leônidas da Silva sempre prestigiaram os festivais de Jaguaré. Todo o sucesso incomodou a Confederação Brasileira de Desportos [CBD], que abriu vários inquéritos contra o “festival”. Deram em nada. O empreendimento lúdico — que rendia dividendos aos jogadores do Rio de Janeiro — acabou sendo a alavanca para que o profissionalismo no futebol brasileiro acontecesse formalmente no ano seguinte. Jaguaré poderia retornar a São Januário sem vaias e treinar com os antigos companheiros. Fosse ainda amador poderia fazer as presepadas costumeiras com a bola. Engolir um “frango” aqui, outro acolá… mas agora era diferente. Era um profissional. Na primeira falha após uma firula — em um jogo contra o Palestra, no dia 18 de julho de 1933 — a torcida, que tanto o admirava, e representantes do Vasco no gramado se enfureceram. “Palhaço! Vai para o circo, palhaço!”.

ENCANTADOR DE FRANCESES

O goleiro defendeu o Corinthians no ano seguinte, quando disputou apenas 15 partidas. Venceu nove, empatou três e sofreu 13 gols. Formou naquele período a linha de defesa corintiana do “J”, com o não menos folclórico zagueiro Jaú e Jarbas. Acabou se transferindo, segundo o cronista Adriano De Vanney, para o Sporting Lisboa. Jogou a tempo de vestir a camisa do Acadêmicos do Porto. Foi um dos primeiros jogadores brasileiros a defender um time português. Em 1936, um telegrama vindo da França convida Jaguaré para um teste no Olympique de Marselha. A reposta é “oui”. Quem o indicou ao clube francês foi o craque espanhol José Samitier, El Mago, ídolo do Barcelona, com quem Jaguaré atuou na Espanha e que fugira da guerra civil espanhola. Bastou meia hora de teste para o goleiro provar que era craque.


Escrevia aos amigos dizendo que estava “abafando” na França. A pura e genuína verdade. Era ídolo. Incontestavelmente ídolo. Em uma das cartas, escreveu um curioso episódio em um bar, onde pediu água e o garçom lhe ofereceu conhaque. “O pior é que não tive remédio senão beber, porque malandro não estrila”. O craque bebeu. E seria esta mesma bebida a responsável pelo seu ocaso anos depois.

Com o Olympique, foi campeão francês da temporada 1936/ 37. Um título apertado. Apenas um ponto sobre o segundo colocado. Mas a temporada seguinte de 1937/ 38 seria ainda mais especial para “Le Jaguar”. A memorável final da Copa da França, realizada no dia 8 de maio de 1938, com cerca de 30 mil espectadores no Parc des Princes. No disputadíssimo jogo, o Olympique derrotou o Metz por 2 a 1 [Kohut e Aznar para o Olympique e Rohrbacher, para o Metz]. O árbitro foi Mr. Munsch. Jaguaré foi considerado um dos melhores jogadores daquele momento apesar de o Olympique ter sido vice-campeão do campeonato francês atrás apenas do Sochaux-Montbéliard. No torneio de 1938/ 39, Jaguaré ajudou o clube a obter novamente o segundo lugar, perdendo o título para F.C.Sete. Mas o craque fez fama. Dizem que até pênalti cobrava. A mais pura verdade.

Sete dias antes da final contra o Metz, os dois rivais do sul, FC Séte e Olympique entraram em campo. A peleja terminou 1 a 1. Ao longo do jogo, Jaguaré (que era chamado pelos franceses de Vasconcelos) envolveu-se nos três pênaltis marcados pelo juiz Roger Conrié. O primeiro em favor do Olympique. O goleiro foi designado para cobrar o penal. Olhou para o arqueiro adversário e, como deboche, indicou o canto no qual colocaria a bola. Após marcar o gol, passou pelo capitão do Olympique, Ferdi Bruhin, e disse: “Você está contente, Napoleão?”. A história não parou naquele penal. Outros dois foram marcados para o Séte, mas Domingo Balmanya [34 anos], veterano espanhol, e o jovem francês Pierre Danzelle [18 anos] fracassaram nas cobranças. Um penal sobre o gol e outro nos braços do Jaguaré. Os resignados adversários diziam: “Impossível marcar gol no grande Vasconcelos”. Até hoje Jaguaré permanece como único goleiro a marcar gol para o Olympique no campeonato francês.

O danado foi mesmo um goleiraço. Era difícil para os franceses engolirem tamanho desprendimento em campo. Consideravam as molecagens de Jaguaré impróprias para um arqueiro. Em uma partida contra o Racing, o arqueiro teria salvado o gol com uma inimaginável “bicicleta”. Tinha a mania de bater a bola na cabeça do atacante adversário. O que aconteceu durante uma partida do Vasco contra o América. A “vítima” da galhofa foi o atacante Alfredinho. O mesmo ocorreu em um match na Inglaterra. O juiz chamou o capitão do Olympique e o advertiu que expulsaria Jaguaré caso a cena se repetisse, mesmo assim puniu o time francês com um tiro livre, indireto.

Pioneiro em todos os aspectos, em uma de suas vindas da Europa ao Brasil, Jaguaré apareceu no Vasco e treinou usando luvas, uma novidade. Há quem defenda a tese de que foi ele o primeiro a usá-las no futebol brasileiro. Teria trazido dois pares após uma excursão do Vasco a Europa, em 1931.

Mesmo quando visitava o Brasil, especialmente São Januário, arrastava multidões aos treinos ávidas por conhecer a próxima novidade de Jaguaré. Em um deles, apareceu de terno branco e chapéu Chile pendido para o lado. Trocou de roupa, mas manteve o boné e as luvas. Era um exímio defensor de pênaltis, como escreveu Mario Filho:

“Às vezes, porém, o quíper é quem descontrola o atacante. Joel se arrepiava todo, de nojo, quando cuspiam na bola. Jaguaré Bezerra de Vasconcelos, pelo contrário, era o primeiro a cuspir na bola. E dizia para quem ia bater o pênalti: Pode bater que eu vou rodar a bichinha na ponta do dedo. E rodou-a algumas vezes. Até mesmo num pênalti batido por Grané. Para se ter uma ideia do chute de Grané: ele ia bater um off-side dentro da pequena área e os companheiros pediam-lhe que chutasse devagar. Porque se ele chutasse com força a bola atravessava o campo, ia perder-se atrás do outro gol. Pois Jaguaré, depois de cuspir na bola, avisou a Grané que ia rodá-la na ponta do dedo. O chute de Grané partiu para cima de Jaguaré. Jaguaré agarrou a bola, caiu sentado, com toda a força, os olhos revirando. Não estava totalmente desacordado, porém. Lembrou-se a tempo e, insolentemente, sorrindo um sorriso de anjo tocando ou ouvindo harpa, rodou a bichinha no dedo”.

O pesquisador Celso Uzelte afirma que o duelo Jaguaré x Grané realmente aconteceu durante um jogo entre paulistas e cariocas, mas o final não foi nem um pouco louvável para o goleiro, que antes da cobrança do penal teria dito a Grané que defenderia o “chutinho” do “mastodonte” com um soco. Teve os dois pulsos fraturados.

Jaguaré debochava dos cobradores de pênaltis adversários. Desde com um Ladislau da Guia, que tinha fama de irascível, até um Leônidas da Silva ou De Maria, ponta-esquerda do Corinthians, Jaguaré fazia troça com todos. Com Leônidas, o seguinte diálogo recuperado pelo cronista Adriano De Vanney: “Você é o tal que nunca perdeu um penalty?”, disse Jaguaré para Leônidas da Silva, que ignorou a chacota e partiu para a cobrança. Jaguaré alertou-o que defenderia sem muito esforço e ainda “cantou” que o craque bateria na bola, mas chutando-a no centro do gol, em cima do arqueiro. Bingo. “Eu não te disse, ‘velhinho’, que você ia chutar onde eu mandei?”.

Com De Maria, não foi diferente. O embate aconteceu em 1929. Era mais um jogo entre cariocas e paulistas. O ponta chutou. Jaguaré defendeu apenas com uma mão. O inusitado, porém, aconteceu. O goleiro devolveu a bola para De Maria e desferiu o deboche: “Chute outra, De Maria, que esta não prestou!”.

Mas houve um craque com quem Jaguaré nunca deveria ter brincado: Friedenreich. Àquela altura, “El Tigre” tinha mais idade e estrada no futebol que Jaguaré, mesmo assim o goleiro não queria perder a piada.

O juiz marca pênalti. Fried se prepara e Jaguaré diz que “vai tirar de cabeça”. Na hora da cobrança, o craque troca de pé. Chuta no canto oposto de Jaguaré, que tenta voltar, praticando, literalmente, um voo contorcionista. O resultado da acrobacia foi descrito por De Vanney: “Torceu a espinha dorsal de maneira que saiu do campo carregado em padiola para o Pronto Socorro, completamente paralítico da cintura para cima. E, após recobrar os sentidos, comentou com aquele bom humor que jamais deixou de ter:

“Eu fui pensar que era avião e… aí está o resultado”.

Quando retornou da França, Jaguaré, o primeiro goleiro brasileiro a jogar fora do Brasil, não trouxe tantos francos como muitos imaginaram. Diziam, na ocasião, que o goleiro, já não era mais aquele camarada forte que, antes de iniciar a carreira, fazia as pessoas pararem para aplaudi-lo no cais do porto quando carregava em uma única mão saco de cinquenta quilos de farinha. Havia se acovardado, acreditavam, por deixar Paris com medo da sanha hitlerista. Eis a verdade: quando a Segunda Guerra começou, o dinheiro de todos na França foi congelado. Inclusive o de Jaguaré, que retornou a Portugal para defender o Acadêmico, do Porto. Mas já não era mais o Jaguaré de outrora, do Vasco, do Olympique… regressou ao Brasil, pobre. “Fisionomia cansada, de quem esbarrou no nada da vida”, escreveu De Vanney.


Nelson Rodrigues lembrava de Jaguaré como grande goleiro, que só não morreu vítima de um foco dentário por milagre. “No seu tempo não havia Departamento Médico, e um jogador podia andar com a boca em petição de miséria, desfraldando cáries gigantescas. Assim era Jaguaré: — não tinha dentes, mas só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era largo, permanente e terrível. E acontece o seguinte: — a época de Jaguaré coincidiu com a infância do profissionalismo. Morria-se de fome no futebol”.

Logo que chegou de Paris, Jaguaré visitou São Januário e desafiou os atacantes a fazerem gol nele usando bolas de tênis. Não deixou passar nada. Torcedores, obviamente, ficaram extasiados. Mas Jaguaré já estava em fim de carreira e não teve mais oportunidades em São Januário. A última, aliás, no São Cristóvão. E foi só. O craque foi tombando. Encontrou no álcool um lenitivo. E a bebida encontrou em Jaguaré um território fértil para seu poder destruidor de almas incautas e frágeis. O pouco que conquistou, gastou… preferencialmente em bebida. A maior parte, em Paris mesmo. Morreu em 27 de outubro de 1940, no Hospital Franco da Rocha, o antigo centro psiquiátrico de Juqueri, onde esteve internado após uma briga no Largo do Paissandu, no centro paulistano. Outras fontes asseveram, porém, que o genial ex-goleiro do Vasco e do Olympique morreu após ser espancado por policiais num bar em Santo Anastácio D´Oeste, interior paulista. Não há, entretanto, registro de óbito do ex-goleiro em nenhum cartório da cidade. As duas versões convergem pelo menos em algo: Jaguaré foi enterrado em uma vala comum, sem a presença de amigos ou parentes, como indigente. Esquecido.

EU E AS MINHAS CALÇAS DE GOLEIRO

por Rodrigo Cabral


Rodrigo Cabral

Era uma manhã de sábado, acordei todo empolgado para mais um dia ensolarado em Porciúncula, cidade do interior do Rio e fronteira com Minas, onde morei na infância. Era dia de treino do meu time e ali naquele campo de terra eu sonhava junto aos outros meninos e como a maioria deles, em ser um jogador de futebol. Confesso que fui um moleque um tanto privilegiado, as referências da minha geração formam o elenco dos sonhos de muitos até hoje. Sou da época de Romário, Bebeto, Raí, Djalminha, Zinho, Rivaldo, Ronaldo, Edmundo, dentre tantos outros monstros sagrados.

Diferente da maioria dos outros tantos e tantos meninos, eu não calçava apenas chuteiras, meu coração sempre bateu mais forte pelas luvas também. E já que estamos falando de uniforme, para mim nada de shorts, eu gostava mesmo de agarrar de calças, meião, devidamente colocado por cima dessas calças. Modo de vestir que denunciava que meu grande sonho era ser o Zetti.


Me recordo de nos treinos sempre tentar imitar as pontes que ele dava, evitando espalmar a bola, numa busca implacável pelo encaixe perfeito, mas se fosse para espalmar a gorducha, me esticava todo para que fosse plasticamente perfeita, ao menos no meu juízo de criança. Além da obsessão pelas defesas perfeitas inspiradas no meu ídolo, fui um jovem sem cabeça o suficiente para entender que goleiros falham. Cada bola que eu sentia que poderia ter defendido e não defendia me derrubava, não fisicamente como no meu ofício dos sonhos, mas emocionalmente. Contudo, embora às vezes com lágrimas nos olhos, ao lembrar da garra do Zetti, desistir deixava ser uma opção. Seguia eu com meu talento e energia de menino, entre falhas e sucessos, fazendo ótimas partidas.

Afinal, meu craque e inspiração ficava embaixo da três traves. Não me lembro de nada mais empolgante do que ouvir o Galvão Bueno gritando com todo seu fôlego: “Zetti! Que nem um gaaaaaato na bola”. Fechava os olhos instantes antes de sair para defender uma bola, e não me via, via o Zetti fazendo aquelas lindas defesas de mãos trocadas.


As saídas rápidas, que com uma mão, faziam a bola atravessar o campo e ir de encontro ao destino dos pés exatamente de quem ele queria. Mesmo ao falhar não havia tempo para crítica, porque ele era maior do que qualquer erro. A cada defesa dele eu ficava tão feliz, que parecia sempre final de Copa do Mundo. Zetti! Craque, ídolo! Obrigado por ter me inspirado a a seguir meus sonhos, embora tenha seguindo um outro caminho, tudo em mim começou quando você, sem saber quem e nem de onde eu era, me guiou nessa coisa mágica e poderosíssima chamada sonho.

Meus ídolos calçam luvas e no meu esquema de jogo você sempre vai ser o número 1.

TAFFAREL: VAI QUE É TUA…

por Serginho 5Bocas


Me desculpe quem quiser discordar, mas Taffarel foi o melhor de todos. Melhor goleiro sempre é o cara que é o melhor porque é bom e ainda pode contar muito com a sorte, pois goleiro sem sorte, um abraço!

Surgiu para nós no Mundial sub-20 de 1985 conquistando o título (o bi mundial) e logo em seguida tornou-se titular do Internacional, de Porto Alegre.

Muito jovem e com uma qualidade impressionante, chegou à seleção principal e não saiu mais de lá, só que antes teve que arrebentar nas Olimpíadas de 1988, quando junto de Romário, Bebeto, Geovani e outros craques, conquistou a medalha de prata. Destes jogos olímpicos, lembro bem da disputa de pênaltis contra a Alemanha na semifinal em que pegou uma cobrança e começou a trilhar sua trajetória vitoriosa. Aliás, pênaltis tornou-se a especialidade da casa. Em vários momentos demonstrou frieza e qualidade para defendê-los.

Lembro-me da despedida do Zico em março de 1990, quando ele foi o grande destaque. Neste dia, ele não deixou Zico marcar em seu último jogo, foi uma atuação histórica com defesas espetaculares, os flamenguistas xingaram muito este rapaz, mas eu aumentava minha idolatria por ele, quanta categoria!

Outro momento marcante foi na Copa do Mundo de 1990 quando ele estava sem sofrer gols e foi vazado apenas uma vez contra a Argentina sendo eliminado, foi a sua primeira grande frustração.


Em outra ocasião, nas eliminatórias da Copa de 1994 contra a Bolívia lá na altitude, já no final da partida, ele defendeu um pênalti e parecia que seria um herói. O que ele não podia imaginar é que nos últimos 6 minutos da partida, ele levaria 2 gols, falhando, talvez, em um deles junto com Válber e sendo considerado pela Imprensa um dos grandes culpados de nossa primeira derrota em eliminatórias.

Teve que dar a volta por cima e deu. Tinha muita perseverança, talento e paciência para provar novamente seu valor. Parreira apostou nele e não se arrependeu de levá-lo a Copa dos Estados Unidos em 1994. Taffarel junto a Jorginho, Aldair, Bebeto e Romário, foram os grandes destaques do Brasil naquele mundial e na final pegou o pênalti de Massaro e viu Baresi e Baggio isolar sua última cobrança, tornando-se um dos grandes responsáveis pelo título.

Taffarel voltou a fazer das suas com pênaltis contra Holanda na Copa de 1998, classificando o Brasil para a Final, após pegar as cobranças de Cocu e Frank de Boer. Infelizmente não foram campeões, pois perderam para a França na final, mas ai já é uma outra história.

Ele tinha a frieza necessária para intimidar os atacantes, a excelente colocação que o permitia gastar menos energia para fazer as defesas, era elástico sem ser espalhafatoso, econômico nos saltos, sem palhaçadas e ainda possuía uma liderança nata, passava tranquilidade ao time, um monstro na posição.


Taffarel ainda teve fôlego e categoria para vencer na Itália e na Turquia, consagrando-se internacionalmente e quebrando um tabu de que nossos goleiros não eram tão bons na ótica dos europeus. Estava a frente de seu tempo e abriu caminhos para os outros goleiros brasileiros. Após ele, vários goleiros brasileiros passaram a interessar ao mercado europeu, ele foi um divisor de águas na posição.

Gostaria muito que ele tivesse jogado no meu clube, mas apesar de não ter tido esta felicidade, ele conseguiu me fazer ser seu fã mesmo sem ter o gostinho de vê-lo jogar tão de perto. Pra mim o melhor do Brasil de todos os tempos.

A CRUCIFICAÇÃO E RESSURREIÇÃO DO GOLEIRO NEGRO

por Paulo Escobar


Em meio a duzentas mil pessoas daquele Brasil e Uruguai de 50 vem um silêncio que ensurdece e se transforma num final de choro, para aquelas pessoas que ali se encontravam. E o silêncio não terminou alguns dias depois, mas continuou por décadas na vida do silenciado Barbosa, que pagou o maior preço de todos. 

Barbosa Goleiro Negro, e porque a importância do negro no título? Pois além dos pesos que teve que carregar, um deles foi o de ter sido goleiro Negro no Brasil. O peso foi tanto que numa das conversas com Mirandinha, aquele da perna quebrada, comenta que quem descobriu ele como atacante foi o pai dele, pois o mesmo queria ser goleiro. Mas um dos conselhos do pai a Mirandinha foi de que Goleiro Negro no Brasil era sofrimento a exemplo do Barbosa.

Barbosa foi lembrado como o culpado da perda do título daquela final de 50, mas poucos lembram dele como o grande goleiro que ele foi. Quase ninguém comenta que foi aquele que fechava o gol no “expresso da vitória” do Vasco da Gama em tempos da inexistência dos treinadores de goleiros ou equipamentos de proteção que amorteciam quedas, ou do não uso de luvas.


Como goleiro sofreu fraturas algumas vezes ao se enfrentar aos atacantes. No primeiro ano de Vasco foram costelas, braço, dedos e assim Barbosa viveu de uma carreira árdua e sem todo o aparato que se vive no futebol de hoje. 

Naquele fatídico domingo de julho o que Barbosa teve que enfrentar foi o começo da cruz que viria a carregar, as palavras que viria ouvir e o peso que se amplifica ainda mais num país carregado de racismo e que deseja ardentemente ainda hoje a derrota dos negros. O gol que o levou a ser enxergado como criminoso e que lhe custou o preço do martírio apagou a história do grande goleiro e humilde pessoa que Barbosa foi.

O que ele jamais imaginou antes daquele domingo, que mais parecia sexta-feira santa, era que se dirigia a sua crucificação e que o momento de alegria que ele esperava não se concretizou. Sempre penso o que será que Barbosa que se passou na sua cabeça, e como aquele homem de olhar humilde e sereno enfrentou essa culpa que lhe foi imputada. Numa das poucas entrevistas que anos atrás assisti na TV Cultura me lembro de ter chorado, num misto de tristeza e raiva, tristeza pela cruz que ele não escolheu carregar e raiva por ter sido crucificado.


Poucos foram os goleiros negros que tiveram na Seleção depois de Barbosa, poucos foram os que tiveram lugar de destaque mesmo sendo bons goleiros muitas vezes. Muitos carregaram o peso de serem comparados com Barbosa, não pelo grande goleiro que ele foi, mas pelo erro imputado a ele. 

O futebol brasileiro tem uma divida com Barbosa, e penso que no Maracanã era o lugar que uma estátua deveria de ser feita a ele, como herói que teve que carregar o peso de uma culpa até sua morte, para nos lembrarmos o quão injusto fomos com ele. E como continuamos crucificando Barbosa no desprezo aos goleiros ou técnicos brasileiros por serem negros, mesmo num país de maioria negra. Vide Jefferson, que vem sendo colocado no ostracismo aos poucos ou a perseguição que Aranha sofreu em tantos estádios.

Barbosa foi crucificado num domingo de julho de 50, mas acredito que ele ressuscita quando um goleiro vence no futebol brasileiro que ainda depois de décadas continua dando mais oportunidades e prestígio a goleiros brancos.