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DURA E REPREENSÃO DE GARRINCHA EM PARINTINS

por Antonio Carlos Meninéa


Figura 1 Mané com camisa do Amazonas e bem acompanhado. Acervo José Brilhante

Figura 1 Mané com camisa do Amazonas e bem acompanhado. Acervo José Brilhante

Motivado pela matéria do Museu da Pelada, sobre Maria Cecília, filha de Garrincha, resolvi contar essa história da qual o “Anjo das Pernas Tortas” foi ator principal. Trata-se de uma curiosa história que consta no livro “Futebol Parintinense – do sucesso ao fracasso”, do jornalista José Brilhante.

Em 1973, mesmo aposentado e meio fora de forma, mas defendendo um troco, o “Anjo das Pernas Tortas” aceitou um convite para jogar na cidade de Parintins, Estado do Amazonas. Jogo entre os maiores rivais da cidade, Amazonas e Sul América. Um tempo em cada time. 

A atmosfera na cidade era festiva, euforia total. E não podia ser diferente, pois veriam Garrincha em carne e osso, bem diferente de vê-lo nos cinemas, jornais ou revistas. 

Uma multidão se acotovelava no cais do porto para receber o bicampeão mundial, monstro sagrado do Botafogo, Estrela Solitária. Ao chegar foi literalmente carregado no colo até o hotel. Um frenesi, catarse total nunca visto na cidade de Parintins.


Figura 2 Fabi em círculo e Garrincha agachado terceiro esquerda para direita - (acervo José Brilhante)

Figura 2 Fabi em círculo e Garrincha agachado terceiro esquerda para direita – (acervo José Brilhante)

Confesso, no entanto, que até eu estaria nesse transe se lá estivesse. Pois Garrincha não era humano, e sim, um ser espacial que todos queriam tocar, abraçar, fotografar, pegar autógrafo. Queriam ver se ele era de verdade.

Na tarde de sábado, 2 de junho de 1973, uma lenda, um Deus, adentra o estádio Tupy Catanhede. Gente saindo pelo ladrão, lembrando um pouco o saudoso Maracanã em dia de clássico, quando ficávamos espremidos entre um torcedor e outro, sem poder ir ao banheiro. Dessa festa histórica e mítica, dois fatos pitorescos ocorreram durante a partida e se eternizaram para sempre.

O primeiro foi nos 45 iniciais, quando Mané atuou pelo Amazonas. Francisco Batista, mais conhecido como “Fabi”, contava com apenas 16 anos de idade no dia desse jogo, e atuava pelo Amazonas, time que Garrincha jogou na primeira etapa.


Figura 3 Fabi nos dias atuais (acervo José Brilhante)

Figura 3 Fabi nos dias atuais (acervo José Brilhante)

Fabi relatou que levou uma dura, um esporro do Garrincha, devido ao fato dele tocar toda bola que recebia para o Mané.

–  Vem cá garoto! Ta querendo me queimar, é? Porque parece que você só está vendo eu em campo, só toca a bola pra mim!

–  Não quero te queimar. Estou fazendo isso, porque essa multidão que está na arquibancada veio ver o senhor fazer seus dribles – respondeu Fabi, um tanto quanto nervoso, pois, estava pertinho de um ídolo mundial. 

Após a bronca, o jovem ficou feliz da vida, pois apesar da dura que levou, ficou frente a frente com um dos maiores craques do futebol mundial, coisa que jamais sonhou que aconteceria em sua vida.

O outro ocorrido se deu no segundo tempo, e Mané já estava pelo Sul América. Nilo Gama, craque desse time, participou de algumas jogadas com Mané. Quando o “Anjo das Pernas Torntas” tocava de calcanhar, Nilo Gama, rapidamente jogava por cima de seu marcador indo concluir a jogada lá na frente. Foi quando Garrincha se aproximou e perguntou:


Figura 4 Time Sul América - (acervo José Brilhante)

Figura 4 Time Sul América – (acervo José Brilhante)

– Baixinho, onde você aprendeu essa jogada?

– Meu treinador foi no Rio de janeiro e viu a tua jogada com Djalma Santos e me ensinou.


Figura 5 Nilo Gama dias atuais (acervo José Brilhante)

Figura 5 Nilo Gama dias atuais (acervo José Brilhante)

–  Olha, teve só um lateral que fazia essa jogada que é o Djalma. 

A conversa encerrou, Nilo Gama, nunca soube se aquilo foi uma espécie de elogio ou repreensão, mas também se sentiu honrado por esse episódio.  

Enquanto permaneceu na cidade de Parintins, Garrincha foi homenageado e frequentou muitas festinhas se refrescando à beira do Rio.

BARBOSA E GARRINCHA

por Leymir Moraes


Os clichês podem apontar Barbosa e Garrincha como personagens antagônicos, um exemplifica o êxtase e a expressão máxima do fundamento mais divertido do jogo, o drible. Garrincha é o maior encantador da história do futebol, sem nunca ter sido um atleta na concepção do termo.

O outro é o atleta dedicado, o multicampeão obscurecido pela nefasta e determinante tarde de 16 de julho de 1950. Sua carreira enfrentou a maior injustiça do futebol mundial, um surto coletivo de frustrações nacionais direcionados a si de forma impiedosa.

Os mais inocentes vivem inúmeros carnavais sem nunca perceber seu quinhão de tristeza, o carnaval como o futebol tem um pé na ilusão e na magia, e outro no drama e na aspereza. Barbosa e Garrincha são personagens emblemáticos que compõem esse ciclo.

Garrincha é um Rei Momo esbelto que posterga a devolução das chaves por 10 anos, de 53 a 63 ele mistura os limites entre fantasia e jogo. Garrincha é um bailarino, Garrincha é um jogador, Garrincha é um redentor? Garrincha é tudo isso, e ninguém poderia com justiça maior ser reconhecido como Alegria do Povo.

Mané é o Rei despojado, alma de criança, sorriso de moleque, é o Rei por direito divino e acaso. O soberano perfeito que nunca percebeu seu reinado.

Barbosa é um rei diferente, majestoso em cada detalhe, das muitas personagens do futebol ninguém teve sua elegância e fidalguia. Barbosa é ao mesmo tempo a lei áurea, a abolição e a justiça racial no gol da seleção brasileira. 

O Homem de Borracha, o antigo ponta esquerda do Comercial de SP, o maior goleiro entre todos do seu amado Vasco da Gama, e um dos maiores da seleção em seus gigantescos 1,70 m de altura, sofre em(por?) sua pele um rosário de pesadas injustiças.

Se Garrincha reina despercebido, Barbosa carregou durante a vida o peso de sua coroa de espinhos. Barbosa é o Rei necessário, o que ensina com seus feitos e suas injustas chagas.

Barbosa teve paz, alegria e suporte fora de campo, aquele que uma nação tentou em vão destruir teve em sua querida Clotilde uma intransponível muralha. SClotilde a companheira de toda uma vida, Tereza Borba a quem amou como filha e foi amado como pai, junto a torcida Vascaína, foram seus apoios para que vivesse bem e partisse sereno. O majestoso Barbosa teve o maior prêmio que um homem pode ter, foi amado de perto até seu último minuto nesse mundo.

Garrincha que ao lado de Pelé é o maior de todos que já chutaram uma bola, teve um percurso diferente de Barbosa. Do mundo do futebol ele teve tudo e mesmo com suas pernas arqueadas sustentou “sozinho” o peso de uma Copa do Mundo, ninguém em mundial algum jogou como Garrincha em 62.

Mané, o resumo perfeito da alegria no campo de jogo, teve um final conturbado frente ao único adversário capaz de pará-lo, as perplexidades da vida e seu fardo.

Não lhe faltou o amor da família, não lhe faltou o reconhecimento do povo e nunca faltou a devoção da torcida do Botafogo, ainda assim Garrincha, a alegria do povo, parte cedo e amargurado aos 49 anos de idade.

Um carregou o rosário de expiações dentro de campo e outro fora dele. Parece completamente inverossímil, mas mesmo os melhores jogadores de futebol são compostos de carne, osso e alma, e nesse particular igual a todos nós meros mortais. É injusto, pode ser? Mas é como é a vida.

Garrincha nunca foi só alegria, como Barbosa não foi só tristeza, o carnaval e o futebol são assim um pé na ilusão e na magia, e outro no drama e na aspereza.

Dois homens eternos, dois dos arquitetos do amor do povo brasileiro pelo esporte que explica e expõe no seu melhor e no seu pior, parte da identidade nacional.

Os queridos e eternos Barbosa e Garrincha são o ciclo perfeito de dor e alegria que representa o palco iluminado e o bastidor solitário do futebol. 

Dois gigantes que descansam sob seus imensos legados, Manoel Francisco dos Santos e Moacir Barbosa Nascimento, a quem sou profundamente grato de nascer após a eles e ser sabedor de suas fantásticas histórias! 

Títulos Barbosa:

Vasco da Gama

Campeonato Sul-Americano de Campeões: 1948

Campeonato Carioca: 1945, 1947, 1949, 1950, 1952 e 1958

Torneio Início do Campeonato Carioca: 1948

Torneio Rio-São Paulo: 1958

Torneio Municipal de Futebol do Rio de Janeiro: 1947, 1948

Torneio Quadrangular do Rio: 1953

Torneio de Santiago do Chile: 1953

Torneio Octogonal Rivadavia Corrêa Meyer: 1953

Santa Cruz

Torneio Início de Pernambuco: 1956

Seleção Brasileira

Copa Roca: 1945

Copa Rio Branco: 1947, 1950

Copa América: 1949

Individual

Terceiro Melhor Goleiro Brasileiro do Século XX

 

Títulos Garrincha:

Torneio Quadrangular Interestadual: 1954

Taça Brasil-Colômbia: 1954

Torneio Internacional da Costa Rica: 1961

Torneio Pentagonal do México: 1962

Copa Ibero-Americana: 1964

Torneio Rio-São Paulo: 1962, 1964

Taça dos Campeões Estaduais Rio-São Paulo: 1961

Campeonato Carioca: 1957, 1961, 1962

Torneio Início: 1961, 1962, 1963

Corinthians

Torneio Rio-São Paulo: 1966

Copa Cidade de Turim: 1966

Seleção Brasileira

Copa do Mundo FIFA: 1958, 1962

Taça Bernardo O’Higgins: 1955, 1959 e 1961

Taça Oswaldo Cruz: 1958, 1961 e 1962

Superclássico das Américas: 1960

Prêmios individuais

Melhor jogador da decisão da Copa Interstadual de Clubes: 1962

Melhor jogador do Campeonato Carioca: 1957, 1961 e 1962

Bola de Ouro da Copa do Mundo da FIFA: 1962

Equipa das estrelas da Copa do Mundo da FIFA: 1958, 1962

Segundo Maior jogador Brasileiro do Século XX IFFHS (1999)

Quarto Maior jogador Sul-americano do Século XX IFFHS (1999)

Oitavo Maior jogador do Mundo do Século XX IFFHS 1999

Décimo Terceiro Maior jogador do século XX pela revista – France football: 1999

Vigésimo Maior jogador do século XX pela revista Inglesa World Soccer: 2000

Sétimo Maior Jogador do Século XX pelo Grande Júri FIFA (2000)

Seleção de Futebol do Século XX

Bola de Ouro Dream Team: Melhor Ponta Direito da História – segundo esquadrão

DRIBLE DE GREGO

por Rubens Lemos


Meu caro amigo, você que me honra desperdiçando seu precioso tempo em alguns minutos nesta coluna. Quem é, de fato, o algoz e quem expõe pavor na expressão corporal? A foto é de 1963, do primoroso jornalista Oldemário Touguinhó, do Jornal do Brasil. Nela, Garrincha está em alegria plena. Executaria o mais lindo dos fundamentos do futebol, Garrincha que dele foi pai: o drible.

Sim, amigo, que vive a angústia da pandemia e se arranja, feito eu, em deliciosas imagens dos verdadeiros monarcas da bola brasileira: o drible é a supremacia irreverente e absoluta de um homem sobre outro sem violência e com esbanjamento do verbo improvisar. Reverencio o driblador. Reverenciava, porque hoje não existe mais.

E o gol, Rubens Lemos, não seria o mais importante enquanto você se perde em delírios, se entrega a devaneios? O gol, o golaço, o gol espírita, o gol de bunda, é, no futebol, o peso do martelo das sentenças dos homens. O gol é inflexível, inegociável, definidor.

Peço compreensão a um romântico. O drible é a flor da mulher amada, mesmo que não aceite o ramalhete. O drible consegue unir na fração do segundo, o cérebro e os pés pela ponte da inteligência sagaz, da artimanha vocacional, da chacota de um programa do Chacrinha (mais novos, pesquisem Chacrinha na Wikipedia).

Sou fervoroso defensor do compartilhamento na vida fora dos gramados e defensor intransigente do individualismo dentro das quatro linhas.

O que me fez adorar o futebol foram os dribles dos meus craques de infância, amigos de rua, Tércio e Didica, dois ungidos pelo poder de passar por dentro de irrecuperáveis iguais a mim.

Amo o drible. Amo Garrincha. Que driblava sem intenção de humilhar e humilhando. Amigos, Garrincha, em três minutos contra a Rússia em 1958, fez o jogo pender ao lado direito, deixando companheiros e adversários perplexos com o baile no pobre lateral Kusnetsov, que entrou em colapso emocional no intervalo.

Garrincha pairava sobre os estádios, campinhos e várzea nas ventanias sudoestes, pessoalmente ou em forma de fantasma anarquista. Durante e depois de Garrincha, todos os laterais-esquerdos do mundo entravam em campo amedrontados, quase a pedir um segurança armado por 90 minutos. Seriam dois humilhados: o jogador e o jagunço.

O mais belo entre os dribles de Garrincha está no replay de Brasil 2×1 Espanha na Copa do Mundo que Mané ganhou sozinho tal Maradona em 1986 e Romário oito anos depois. Mané está na linha lateral pela direita do ataque canarinho. Recebe, embalado em papel machê, o passe de Didi, o criador.

O marcador da Espanha, de suntuoso nome, Echeberría, parte com a fúria taurina de um Bodacious, o mais violento. Garrincha recebe a bola e cria sua câmera lenta pessoal. Na recepção a Echeberría, resolve avacalhar a cena.

Dá um toque, o perseguidor derrapa como trem sem condutor. Echeberría não consegue freio. Garrincha, ao primeiro bater na bola, toureiro, afasta o corpo, gira-o à frente do campo e segue enfileirando espanhóis ao sabor de Paella. Echeberría virou joia de quinta categoria.

Então, meu amigo de diálogo, monótono por formatação, senti uma piedade plena do pobre homem de camisa 2. O sorriso de Garrincha prenuncia a humilhação habitual e dominical de seus inúteis perseguidores: Coronel (Vasco), Jordan (Flamengo) e o malvado e mirrado Altair, do Fluminense.

O drible tragicômico. Eis o que descreve a fotografia. Falando como se oradora fosse, versão mulher de Demóstenes, retórica impecável da Grécia antiga. Demóstenes, o grego, nunca soube o que era um drible de Garrincha, capaz de entortar pórticos e colunatas milenares.

GUALICHO

por Valdir Appel


Em 1967, Mané Garrincha já não era o mesmo.

Sem clube, sem oportunidade, desacreditado.

Mas, um pedido comovente dos jogadores vascaínos, liderados por Brito, nosso capitão, convenceu os dirigentes e o técnico do clube, a dar uma nova oportunidade ao genial ponta-direita.

Terça-feira.

Mané chegou com seu andar torto.

Trajando camisa aberta no peito, bermuda e chinelo de dedo.

Nos vestiários, vestiu seu agasalho de plástico escuro.

A chuva lá fora nos tirou o gramado, e o treino foi transferido para o ginásio.

O espaço menor aproximou o grupo.

As ordens de Gentil Cardoso eram passadas ao pé do ouvido.

O cone com o desenho da cruz e malta não teve o costumeiro uso.

O megafone ficou largado, oscilando junto ao corpo do técnico.

Lado a lado corríamos.

Manquitolando, Mané Garrincha faz par com Brito.

As bochechas enormes, as pálpebras caídas, os ombros pesados, denunciavam o seu pesadelo.

O plástico de seu esquente, derretia o excesso da noite mal dormida na sua rotina noturna – madrugada de doses de traçado, ao som da voz rouca de sua amada Elza nas boates de Copacabana.

O início dos trabalhos no clube para a necessidade de descanso do craque, era um pesadelo. Muito cedo para fazê-lo entrar em forma.

E, naquela manhã, não seria diferente. O espaço menor não diminuía o tempo de esforço.

Mais voltas para compensar os limites do ginásio e quebrar o pouco da resistência que sobrava ao Anjo Torto.

Naquela manhã, corríamos em silêncio.

Um pouco pelo tempo fechado e escuro, que nos manteve contidos.

As brincadeiras sem graça foram substituídas pelo sopro de cada um para o atleta cansado.

Sopro de respeito, de reconhecimento e de vida, injetado com vigor, para reerguer o mito Gualicho*.

Após as insuportáveis e intermináveis voltas, a ordem de parar nos jogou ao chão. Em círculo, para a sessão de ginástica, e suas longas sequências de exercícios localizados.

Mané puxou, com dificuldade, uma perna para abraçá-la. Depois a outra.

Estava ao lado do pássaro ferido, e não pude disfarçar a lágrima que desceu pela minha face.

Mané já não esperava a volta do adversário para driblá-lo de novo.

A vida já o driblara.

Só que ele ainda não sabia.

 

*Gualicho- Apelido do Garrincha antes da fama. Gualicho, cavalo argentino ganhador de Grandes Prêmios no Brasil, nos anos 50.

 

O ANJO TORTO

por Valdir Appel


Ele viajou em seu confortável Impala, levando um enteado e mais dois garotos oriundos dos juvenis do Vasco, para a cidade serrana de Cordeiro, distante aproximadamente 200 quilômetros do Rio de Janeiro, para disputar um amistoso contra uma seleção local, e que marcaria a sua estreia com a camisa da cruz de malta. 

No caminho, fez discretas paradas em botecos de beira de estrada para molhar o papo e limpar a poeira do gogó.

Ao chegar, foi recebido pelo centroavante Bianchini, que o conduziu à residência do seu sogro. 

Disposto a impressionar, o anfitrião mostrou uma garrafa de cachaça envelhecida em tonel de carvalho, guardada a sete chaves, e que só seria aberta no dia em que pisasse em sua residência uma das três celebridades que tanto admirava: governador Carlos Lacerda, Pelé e Garrincha.

– Pois então, chegou a hora de abrí-la! – disse o visitante que, munido do copinho especial para doses, não se fez de rogado e repetiu várias vezes a marvada. 

Concordou com o anfitrião: a cachaça era realmente deliciosa! 

Porém, Mané preocupou-se em permitir aos garotos que o acompanhavam apenas o consumo de refrigerantes. 

Um barbeador elétrico foi providenciado também, para o craque fazer a barba de alguns dias.

Já o ônibus do Vasco, que levava um time composto de alguns titulares, juvenis e jogadores em teste, comandado pelo “Queixada” Ademir Menezes, foi direto para o estádio. 

Nos vestiários, a curiosidade e a expectativa pela estreia do ponta não era só dos dirigentes e torcedores: os próprios jogadores, principalmente os mais jovens, acompanhavam com interesse todos os movimentos do ídolo. Ficaram surpresos, principalmente pelo fato dele vestir somente calção, meias e chuteiras, além da camisa, desprezando ataduras e o suporte que todo atleta usava. 

Foi um sufoco para o time entrar em campo, todos queriam ficar próximos do homem das pernas tortas. Não havia alambrados, apenas uma mureta de madeira, separando o publico dos jogadores. Policiais fizeram um cordão de isolamento para que os dois times chegassem ao centro do gramado. Mesmo depois de iniciado, o jogo foi interrompido algumas vezes por causa da invasão de apaixonados torcedores que queriam uma foto ou simplesmente tocar naquele que já fora o maior ponta direita do mundo.

Na primeira bola que Garrincha recebeu, ele a dominou e parou em frente ao marcador. Hipnotizou-o, ensaiou a saída, e arrancou para a direita, sem a bola. O lateral o acompanhou. Mané voltou e verificou que o ponta esquerda adversário recuara em socorro do lateral, roubando a bola que ele havia deixado para trás. 

A torcida explodiu numa vaia!

– Xi! Mexeram com o homem! – comentou o meia vascaíno Paulo Dias com os companheiros.

E como mexeram! Daí pra frente, foi um espetáculo que ele jamais repetiria com a camisa do Vasco: dribles, arrancadas, passes perfeitos e um gol de falta, numa exibição magistral durante aqueles inesquecíveis 90 minutos. 

Por mais incrível que possa parecer, Mané Garrincha, antes de se imortalizar com a camisa 7 do Botafogo, tentou a sorte no Vasco da Gama. Uns dizem que ele não ficou por causa das pernas tortas e de um desvio na coluna; outros, que ele não levou chuteiras e por causa disso foi impedido de treinar.

Coube ao Vasco, em 1967, atendendo ao pedido de um grupo de jogadores liderados pelo capitão Brito, a missão de tentar recuperar a “alegria do povo”, já no ocaso da carreira. O último clube de Mané fora o Corinthians, onde jogara sem brilho. 

Totalmente dependente da sua companheira Elza Soares, a única pessoa que lhe foi fiel, varava as noites e madrugadas acompanhando seus shows e bebendo em demasia. 

Mané chegava em São Januário bem cedo para os treinos, com os olhos tristes e fundos, e revelando, no andar cansado e desanimado, sua impotência para vencer os vícios. 

Praticava exercícios leves que pouco ou nenhum resultado traziam ao seu corpo debilitado pelo excesso de peso. Nós percebíamos a sua boa vontade e a inutilidade dos seus esforços. Todos torciam por ele, mas ninguém acreditava mais no seu futebol. 

O Vasco desistiu dele ou ele desistiu do Vasco? Nunca fiquei sabendo. Mas ele nos reservou uma surpresa. 

No ano seguinte, foi o Flamengo quem lhe deu uma derradeira oportunidade. E foi justamente contra o Vasco, que ele presenteou os torcedores e admiradores com o seu ultimo grande show.

Era uma quarta-feira, de noite estrelada, propícia para a prática do futebol. 

O Maracanã, seu palco preferido, estava decorado a caráter. Quase 90 mil pagantes assistiram, incrédulos, suas arrancadas, sempre pela direita, em cima de um impotente lateral esquerdo, Eberval, que pedia ajuda de Fontana e Brito, que eram driblados em fila, provocando na platéia momentos de puro êxtase.

Os locutores das rádios passavam tanta emoção e vibração na narração daqueles momentos materializados como um milagre, que milhares de torcedores sem ingresso, que escutavam o jogo do lado de fora do Maracanã, colocaram abaixo um dos seus portões. Aos empurrões, alcançaram as ladeiras do estádio, pularam as catracas e chegaram as arquibancadas para poder ver o que parecera (até então!) improvável: a ressurreição de Garrincha.

A metamorfose durou menos de 45 minutos. Seus joelhos sentiram as jogadas mais duras da nossa zaga. Os torcedores, de pé, ovacionaram sua saída de campo. Um público silencioso e triste viu um segundo tempo sem graça, e o fim da magia deixar pra sempre o maior estádio do mundo.

Foi a única vitória contra o nosso maior rival que eu não comemorei.