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Futebol arte

Ignoram Almir

por Lucio Branco


Almir Pernambuquinho e Pelé

Almir Pernambuquinho e Pelé

O Brasil segue firme na tradição de recolher as suas melhores biografias ao quarto dos fundos e expor as piores sobre a mesa da sala. Se não as piores, aquelas que são reinventadas em nome de conveniências econômicas, políticas, ideológicas etc dominantes. A História é um livro escrito por quem tem mais tinta.

Nossas autoridades militares estão aí para ilustrar o tema. Seja batizando ruas, palácios e quartéis, ou manchando livros escolares, lá estão elas projetadas na memória coletiva da nação, montadas a cavalo, espadas em riste, comandando genocídios e outros hábitos do métier. Haver tantas estátuas ostentando a mesma pose heroica pelas cidades desmente o ditado de que “a praça é do povo”. A desmilitarização dos espaços públicos da nossa geografia urbana é bem mais que uma proposta de maquiagem terminológica, é uma urgência. Cumprir com isso seria um grande adianto em termos de justiça histórica.

Não se trata de uma tendência exclusivamente brasileira, é claro, mas essa vocação para louvar escroques (fardados ou não) poderia ser apontada como um traço adquirido muito nativo. Nosso “processo civilizatório” é tão opressivo que arraigou o exercício do mando como um dado que parece ter se integrado perfeitamente à “natureza” da nossa organização social. Ordem, disciplina e hierarquia, na sua inclinação mais verticalizada, estão sempre na ordem do dia por aqui. Alguma surpresa? Na contabilidade dos séculos, ainda somos mais colônia do que país independente. A tradicional relação entre muito poucos opressores e tantos outros oprimidos nos impôs o hábito de ver a vida por um ângulo deturpado. Talvez não seja exagero considerar que a história do Brasil é, em grande medida, a história do seu autoritarismo.

O conceito de “melhor” e “pior” da frase de abertura vai além do quesito moral. Refiro-me também ao aspecto dramático das biografias impostas e abraçadas pelo senso comum. Quanto à moral, só é aconselhável peneirar bem para ver quem sobra desde que Cabral aportou nas areias da Coroa Vermelha. Desde lá, os grupos indígenas sobreviventes tentaram indicar o caminho de como resistir a todas as invasões que vieram em sequência. Infelizmente, não houve muito sucesso ao longo desse processo interminável: aquela celebrada a todo 22 de abril dos últimos 515 anos foi só a primeira.

Esta introdução é necessária porque o personagem que intitula a crônica é de uma dimensão ainda não alcançada pelo seu próprio país de origem. Daí o seu relativo ostracismo. Nele, ao contrário do que se consagrou, as virtudes não eram poucas. A principal talvez seja a bravura, em geral, tão suspeitamente atribuída às tais estátuas e seus feitos bélicos. Estamos falando de Almir Morais Albuquerque, o Pernambuquinho, surgido no cenário nacional em 1957.

Não é novidade que o imaginário da nossa elite projeta nos anos JK a memória de um país que viveu o seu apogeu. A versão histórica oficial sustenta que uma onda de otimismo varria o país a partir do Rio de Janeiro nos seus últimos anos como capital da República. Epicentro de movimentos como a bossa nova e o cinema novo, a Guanabara contribuiria também para a idealização do período ao concentrar parte considerável da geração de jogadores mais brilhantes que o futebol brasileiro já conheceu. Não foi à toa que fomos campeões mundiais pela primeira vez, na Suécia, em 1958. (Está para ser melhor problematizado o atribuído “pacto democrático” que teria gerado tanto entusiasmo na rememoração daquela época, afinal, a sua ventilação é bem mais suposta que real: Nelson Rodrigues, por exemplo, tinha que apelar formalmente para não ter suas peças interditadas sob o governo que apoiava.)

Como uma nota destoante da era de ouro do futebol nacional (não pela sua qualidade técnica), temos a figura ambígua, sempre matizada de luz e sombra de Almir, o hábil ponta de lança que migrou do juvenil do Sport diretamente para o profissional do Vasco da Gama aos 19 anos. Com o seu repertório genial de dribles e arrancadas, ele também recorria a um outro, no qual não faltavam violência (física ou verbal), catimba, doping etc. Apenas ele? Essas práticas, apesar do maior controle atual, ainda são recorrentes. Almir foi um dos precursores (e, de longe, o mais contundente) na denúncia da venalidade da cartolagem, das confederações e da grande imprensa esportiva. O que sucedia no campo tinha origem, em alto grau, fora dele. É uma regra desde sempre no profissionalismo. A diferença é que ele interiorizava essa faceta mais sombria do seu meio numa entrega suicida que mais nenhum outro jogador ousou, antes ou depois. A ponto de converter isso no seu estilo de jogo. Cheio de nuances, o Pernambuquinho. Muito mais complexo que o estigma que lhe pregaram no nome.

Sobre ele há, impresso, Eu e o futebol, biografia originalmente publicada em capítulos pela Revista Placar do final de 1972 até o início de 1973. É o relato em primeira pessoa transcrito pelos jornalistas Fausto Neto e Mauricio Azedo que acabaram se vendo obrigados antes da hora a incluir, subitamente e quase em primeira mão, o seu ponto final: – não havia sido encerrada a publicação quando ele foi assassinado numa briga de bar em Copacabana. O motivo? A se confiar no testemunho de elevado teor etílico de Mario Prata, ocasionalmente presente à cena do crime, o ex-jogador tentava defender alguns membros do grupo Dzi Croquetes de uma agressão homofóbica. Essa versão casa com o que sempre esperavam dele os mais próximos: a valentia de Almir era motivada pela defesa daqueles que julgava em desvantagem, conhecidos ou não. Muito frequentemente, era provocado a promover o seu particular senso de justiça metendo a mão em oponentes sem avaliar estatura ou quantidade numérica. Um anti-herói trágico em estado permanente de catarse, digamos assim.

“Eu fui um marginal do futebol”, a confissão que abre as suas memórias, tem implicações que escapam ao moralismo de plantão da nossa crônica esportiva. Sua figura rompe com o lirismo vazio da mesma lógica cultural que insiste em reduzir a infinita humanidade de Garrincha a uma caricatura de bobo da corte.

A questão que me motivou a escrever estas linhas é a seguinte…

Almir é quase que totalmente ausente das telas de cinema. Causa angústia que uma persona tão imensa não tenha sido objeto da devida atenção da Sétima Arte. O fundamental Passe livre, de Oswaldo Caldeira, poderia ser citado por abordar, ao longo de alguns minutos, a trajetória do jogador. Mas aí já não vale tanto, afinal, o documentário, lançado em 1974, é sobre o craque Afonsinho, quando ainda atuava profissionalmente e lutava contra os dirigentes que procuravam sabotá-lo por ser ele dono do próprio passe. Almir comparece ali encarnando uma outra linhagem de jogador rebelde que também veio a enfrentar dificuldades na carreira. E, claro, o fato de ter morrido durante as filmagens acabou colaborado como o pretexto (que diria, necessário) para a sua aparição em cena.

A confirmar que o audiovisual não o ignorou completamente, houve um desses “Casos Especiais” no início dos 1980 sobre um personagem inspirado nele que não deu em muita coisa além de um processo movido pela família do jogador por uso indevido da sua imagem – mesmo que por sugestão – contra a emissora de TV que o exibiu. Quem assistiu garante que a associação era direta demais na caracterização do protagonista e na reconstituição dos episódios da sua vida.

De resto – se isso conta –, há um roteiro incompleto sobre ele escrito a quatro mãos por mim e meu irmão (que também assina o argumento). Incompleto porque a falta de horizonte acabou tomando conta da paisagem. As perspectivas nulas de uma produção mínima que viabilizasse o projeto comprometeram o nosso ânimo. Mas um dia o retomamos.

Por um tempo imaginei que uma coprodução anglo-brasileira poderia dar vida à cinebiografia do Pernambuquinho com um suposto atestado de maior conhecimento de causa. A Inglaterra, berço do não de graça intitulado “violento esporte bretão”, conta com uma torcida que cultiva abertamente o apreço pela violência campal. Não é exagero, é só uma questão cultural. Certa vez, num pub em Los Angeles, um amigo brasileiro pôde testemunhar as reações da colônia britânica local diante da transmissão de um jogo da Copa de 1998. Os gols que deram a vitória ao escrete da Rainha renderam bem menos brados e brindes que uma solada, em pleno ar, num rosto adversário. Mas tive que reavaliar a ideia. Se, entre nós, a desmemória é a constante, a dos europeus é, de um modo geral, o menosprezo pelo Terceiro Mundo. O mercado cinematográfico internacional reflete isso claramente. Mesmo com relação a uma potência como o futebol brasileiro que, apesar do 7 x 1, ainda é, pelo critério da contagem de títulos mundiais e de craques, mais “desenvolvido” que o das seleções do Velho Mundo. Quem o diz é a isenta perspectiva histórica, não eu.

Touro indomável, obra-prima de Martin Scorcese, narra a ascensão e a queda de Jake LaMotta, peso médio colecionador de títulos e problemas pessoais. Ao longo da vida profissional e particular, Almir também conheceu ascensões e quedas. E não foram poucas. Entrar e sair delas era a sua rotina. Sem ufanismo, considero que o craque brasileiro é, do ponto de vista dramático, e mesmo da ação esportiva, de maior apelo e interesse que o campeão norte-americano dos ringues. Almir transcende o realismo rasteiro com que costumam ser abordadas os maiores nomes do nosso futebol. Tanto pelo senso comum como pela nossa tradição cinebiográfica dentro do tema.

Entre tantos lances em campo protagonizados por seu destemor, há um que resume tudo. E é puro cinema…


O pênalti cavado por Almir e convertido por Dalmo é um momento ainda não reproduzido à altura pela verve humana

O pênalti cavado por Almir e convertido por Dalmo é um momento ainda não reproduzido à altura pela verve humana

Quem nunca jogou, mas pelo menos já assistiu a uma partida, conclui fácil que um dos chutes mais violentos é aquele cuja maior frequência é na “zona do agrião”, como cunhou Saldanha. Onde, sem pudor, o defensor desfere o bico para despachar a bola para o mais longe possível, afastando o perigo. Pelo Santos, trajando a mítica camisa 10 de um Pelé sem condições de jogo, Almir não hesitou em pôr à prova a sua integridade física, ou mesmo a própria vida, num gesto que foi o mais sublime holocausto. Algo impensável num jogador profissional. Em nome da vitória a qualquer custo na decisão que valeria o bicampeonato mundial interclubes contra o Milan, em 1963, ele decidiu interceptar, com a própria cabeça, o percurso percorrido entre a chuteira do zagueiro Maldini e a bola para garantir que a taça fosse em definitivo para a Vila Belmiro. Foi assim que um Maracanã lotado testemunhou a maior conquista do clube paulista em sua fase áurea. O pênalti cavado por Almir e convertido por Dalmo é um momento ainda não reproduzido à altura pela verve humana – apesar do flagrante fotográfico que ilustra este texto ser brilhante e bem mais eloquente do que qualquer frase dele. Mas não falo só de estética, o que já seria muito. Falo mesmo da impossibilidade de um gesto similar a esse se repetir em campo. É uma questão de verve também, não só de bravura.

Almir, o Pernambuquinho, é da estirpe dos que souberam como resistir ao referido “processo civilizatório” inaugurado pelo navegador comandante e a sua lusa gangue. O seu senso de sacrifício, sem pretensões messiânicas ou exemplares, nunca poderia ter sido negligenciado. Proponho uma campanha de reabilitação do seu nome, da sua imagem e da sua memória. Poderíamos lançá-la em conjunto com aquela outra, a da desmilitarização dos espaços públicos do país. Mil vezes mais o anti-heroísmo de Almir que o heroísmo de vitrine de um Duque de Caxias. Dar valor a quem tem valor de verdade é uma iniciativa igualmente valorosa.

Fica aqui a sugestão.

PS: O youtube retirou do ar o vídeo do primeiro tempo, na íntegra, da primeira partida decisiva entre Santos X Milan. Mas este aí já dá uma ideia do que o Almir fez naquelas duas noites de 1963. Os trompaços que ele aplica em Amarildo com menos de um minuto de jogo para vingar Pelé também pertencem ao Mito. (No vídeo, a saída de bola é aos 04:35.) Repito: Almir fez da vida real puro cinema.

FUTEBOL SÃO ONZE

por Lucio Branco


No muro, Barba, Cabelo e Bigode, personagens do documentário

No muro, Barba, Cabelo e Bigode, personagens do documentário

“No princípio era o Verbo”.

Meio pretensioso, e até desnecessário, admito, citar o Evangelho de S. João logo na abertura da minha primeira colaboração aqui no Museu da Pelada. Foi só para evitar a expressão “Pontapé inicial”, um clichê que soaria muito óbvio no primeiro parágrafo da estreia de uma coluna intitulada “Futebol Arte”. Em suma, preferi um clichê a outro.

Mas vamos lá…

Como é sabido, as vanguardas do início do século XX não escondiam a sua falta de apreço pelos museus. Os dadaístas, por exemplo, proclamavam a sua destruição imediata. É uma atitude que faz sentido no Velho Mundo. Aqui, ela parece bem menos recomendável. Cultivador da desmemória, o Brasil não fez a mais básica lição sugerida pela História: conhecê-la primeiro. E é justamente o que o Museu da Pelada faz, em tempos de progressiva mercantilização do jogo. O site resgata o seu passado e assume lugar na linha de frente da sua valorização como manifestação sociocultural de primeira grandeza. Realmente, os museus poderiam contribuir em ser, geralmente, bem mais do que depósitos de mofo a expor o já consagrado. Não é o caso deste Museu, o qual, antes de tudo, exercita a memória para compensar a atual aridez de novidades verdadeiramente relevantes no mundo profissional da bola.    

Curiosamente, no “país do futebol” o legado deixado por craques, times, clubes, etc mais antigos tem pouco espaço até mesmo na construção do imaginário popular. Faça o teste: pergunte a qualquer torcedor o que ele sabe sobre o seu time antes de ter começado a acompanhá-lo. Para não fugir ao tema, “Quem vive de passado é museu” é quase sempre a resposta automática. No caso, um ditado bem mais pretérito do que aquilo que ele acusa. E com o mesmo grau de legitimidade, por exemplo, que o ainda surpreendentemente vivo “Futebol é o ópio do povo”. Ou seja: nenhum. (Apesar do empenho em contrário das forças política e economicamente interessadas.)

Quando o Sergio Pugliese me convidou, há alguns dias, para colaborar com o site, não pude dar outra resposta senão “Agora!”. 

O primeiro contato entre nós partiu de mim, há mais de um ano, ao lhe apresentar o meu projeto de documentário em longa-metragem, Barba, Cabelo & Bigode, sobre a trajetória dos craques da bola e da consciência Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição. Os personagens/narradores do filme também já haviam marcado presença na sua coluna “A pelada como ela é”, por tanto tempo hospedada n’O Globo. Estava eu, então, em luta pelo financiamento coletivo (crowdfunding), para dar início às filmagens. Com certeza intuindo nossas afinidades no universo em questão (embora ele vascaíno e eu botafoguense), Pugliese foi monumental no incentivo. E, de lá pra cá, a coisa fluiu como deveria – escrevo logo após as últimas horas da segunda campanha formal de crowdfunding relacionada ao filme, agora destinada a sua finalização. A meta foi atingida e Barba, Cabelo & Bigode sai ano que vem. Confiem nisso.

Sem rodeios, o Pugliese fez a proposta: – “Relaciona aí futebol com cultura em geral: cinema, literatura, música etc, você sabe…”. A resposta veio no mesmo tom: – “Deixa comigo”.

Sustento que o association, ele próprio, é uma das inúmeras formas de expressão cultural que passou a trilhar um caminho próprio desde que aportou no Brasil. Acredito que isso é uma fatalidade sob o sol que nos ilumina: tudo se aclimata ao seu brilho. Garanto: determinismo zero na afirmação.

Mas não se trata de uma exclusividade nossa – cada país, região ou localidade no mapa-múndi responde pela espontaneidade e autonomia na importação de qualquer fenômeno cultural. A tão acionada antropofagia oswaldiana/tropicalista até poderia servir como chave de interpretação do que falamos aqui, caso o autor de O rei da vela e os posteriores baianos entendessem mais da modalidade que consagrou artistas bem mais populares que eles. (Uma ressalva: Gilberto Gil, autor do célebre verso “Prezado amigo Afonsinho”, demonstra saber do que fala no seu depoimento para Barba, Cabelo & Bigode.) As artes dialogam com o futebol porque têm com ele um nítido parentesco. Cinema, poesia, música e dança já estão ali desde o primeiro toque na pelota. Considerando a contribuição brasileira na renovação técnica, dinâmica e corporal do esporte, fica ainda mais evidente que é de estética que estamos tratando aqui.

Como este é um texto introdutório da minha colaboração com o site, adianto que escreverei sobre personagens e passagens da História do futebol que me parecem os de maior relevo, apesar de, na imensa maioria das vezes, a versão oficial desta não achar o mesmo. E, claro, sempre conforme a sua dimensão cultural, como o Pugliese pediu.

Para concluir, confesso: originalmente pensei em “Futebol são onze” para o nome da coluna. Depois, concluí que “Futebol Arte”, como me foi sugerido pelo Pugliese, era mais pertinente pela abordagem dela. Façamos justiça: o aforisma “Futebol são onze” é fruto da verve do Nei Conceição. Em meio às inúmeras perguntas do roteiro de Barba, Cabelo & Bigode, ele saiu-se com esse súbito insight. O Nei, um tímido que sabe falar muito com tão pouco, tem familiaridade com a transcendência. Essa sentença, creio, guarda um significado que vai muito além da sua circunscrição originalmente desportiva. Já a testei em mais de uma conversa alheia ao “violento esporte bretão” e não fui interpelado a respeito. Para mim, bastou como prova do seu inegável alcance metafísico.

Recomendo o uso.