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Folha Seca

A LENDA DA FOLHA SECA

por Péris Ribeiro


Em um belo dia de certezas, quando pedi-lhe uma definição que me soasse especial sobre o seu misterioso chute – bem mais famoso, por sinal, por criarem em torno dele toda uma aura de sedução e glamour -, Mestre Didi apenas fitou-me bem nos olhos. Para relatar-me em seguida, compassando suavemente as palavras:

– Era como se fosse uma folha de outono, sabe? Descaindo ao sabor do vento. Desgarrada; destino incerto …

Ante tal definição – um tanto poética, outro quê com acentuado tom filosofal -, o que pude fazer foi viajar no tempo. E, só então, consegui reciclar aquela época. A época, e a própria história. E, mais um pouco: como a lenda, de repente se iniciou.

Hoje, há bem pouca gente que se lembre. Mas, tudo começou em um Fluminense x América, pelo Campeonato Carioca de 1955. Numa disputa de bola com Ivan – centro-médio clássico, mas viril no combate direto. E campeão do Torneio Rio-São Paulo, dois anos depois, como jogador do próprio Fluminense -, Didi acabou levando a pior. Saldo do lance: tornozelo direito avariado.

Como consequência, o nosso Didi acabou por se ver obrigado a curtir o estaleiro por um bom tempo. Tempo exato, no entanto, para que, entre o tratamento na enfermaria das Laranjeiras e a volta progressiva aos treinos, acabasse por descobrir uma maneira diferente no ato de chutar a bola. Um jeito que não sacrificasse a sua recuperação, numa região ainda magoada pelo bico da chuteira do centro-médio americano.

Observador engenhoso, que gostava de estudar os fatos até nos mínimos detalhes, o que Didi sacou logo é que poderia estar realmente criando um chute diferente. Na verdade, um estilo revolucionário de bater na bola. Ainda mais, porque tal chute era executado com a parte externa do pé direito – em torno da chamada linha dos três dedos. Mas  o que o deixava empolgado de verdade, era o trajeto que havia conseguido conceber, tão logo detonava o chute.

É que a bola, como que encantada, desandava a descrever curvas e rotações diferentes em pleno ar. Para, logo em seguida, desenhar uma semi-paráboladescaindo com força, incerta e cheia de graxa, num dos ângulos do gol, bem junto às traves. Tudo isso para desespero de Castilho, Veludo, Adalberto e Jairo – justo a fina-flor, em termos de goleiros, lá no Fluminense. E que se revezavam, treino após treino, na ingrata tarefa de testar aquela típica invenção made in Didi.

Finalmente, já tida como pronta e acabada, eis que a grande novidade acabou por ser testada oficialmente diante do pobre Julião, jovem goleiro do Bonsucesso. Um crioulo imenso, que ora fechava o gol; noutro dia, era capaz de papar os frangos mais inacreditáveis. Homéricos mesmo. E que naquela tarde, no estadinho da rua Teixeira de Castro, pensava, a cada chute de Didi, estar vendo coisas do outro mundo. Ou, no mínimo, “que andava variando da cabeça”, debaixo de um sol de mais de 40 graus que latejava em sua moleira. Ainda mais naquele caldeirão de fogo, que atendia por Zona da Leopoldina do Rio de Janeiro.

Um pouco mais de tempo passado, e eis que lá estava a estranha novidade a ganhar notoriedade de vez. Até mesmo, como arma mortal. Só que acabou por visar o seu passaporte, rumo ao sucesso internacional, em duas vias distintas. Em 1957, quando garantiu a ida do Brasil à Copa do Mundo da Suécia, no 1 a 0 diante do Peru, em um Maracanã superlotado. E em 1958, já em gramados escandinavos, quando provocou o desempate em 2 a 1, na eletrizante semifinal diante da França – que vencemos por 5 a 2.

Quatro dias depois, com o Brasil campeão do mundo pela primeira vez, e com o próprio Didi, majestoso, consagrado com todas as honras como o inspirado maestro do nosso time e o Maior Jogador daquela Copa inesquecível, era da vertiginosa Folha -Seca que ele voltaria a falar com imenso carinho.

E, talvez em pleno transe da grande festa, até se lembrasse em detalhes de como tudo havia começado.

Por exemplo: daquele Fluminense x América, e do tornozelo direito avariado na disputa de bola com Ivan; do espanto do pobre Julião, a ver coisas do outro mundo, no acanhado estadinho da rua Teixeira de Castro, a cada Folha – Seca que descaía no seu gol; e, finalmente, de Abbes, goleiro da França, quatro dias antes. A testar, sem sucesso, o poder de fogo de um chute que questionaria a física e a lógica, na intricada geometria do futebol.

A LENDA DA FOLHA-SECA

por Péris Ribeiro


Em um belo dia de certezas, quando lhe pedi uma definição que me soasse especial sobre o seu misterioso chute – bem mais famoso, por sinal, por criarem em torno dele toda uma aura de sedução e glamour -, Mestre Didi apenas fitou-me bem nos olhos. Para relatar-me em seguida, compassando suavemente as palavras:

— Era como se fosse uma folha de outono, sabe? Descaindo ao sabor do vento. Desgarrada; destino incerto …

Ante tal definição – um tanto poética, outro quê com acentuado tom filosofal –, é que pude fazer foi viajar pelo tempo. E só então, é que consegui reciclar aquela época. A época, e a própria história. E, mais um pouco: como a lenda, propriamente dita, de repente se iniciou.

Hoje, bem pouca gente se lembra. Mas tudo começou em um Fluminense x América, pelo Campeonato Carioca de 1955.

Numa disputa de bola com Ivan – centromédio clássico, mas viril no combate direto. E campeão do Torneio Rio-São Paulo, dois anos depois, como jogador do próprio Fluminense –, Didi acabou levando a pior. Saldo do lance: tornozelo direito avariado.

Como consequência, o nosso Didi acabou por se ver obrigado a curtir o estaleiro por um bom tempo. Tempo exato, no entanto, para que, entre o tratamento na enfermaria das Laranjeiras e a volta progressiva aos treinos, acabasse por descobrir uma maneira diferente no ato de chutar a bola. Um jeito que não sacrificasse a sua recuperação, numa região ainda magoada pelo bico da chuteira do centromédio americano.


Observador engenhoso, que gostava de estudar os fatos até nos mínimos detalhes, o que Didi sacou logo é que poderia estar realmente criando um chute diferente. Na verdade, um estilo revolucionário de bater na bola.

Ainda mais, porque tal chute era executado com a parte externa do pé direito – em torno da chamada “linha dos três dedos”. Mas o que o deixava empolgado de verdade, era o trajeto que havia conseguido conceber, tão logo detonava o chute.

É que a bola, como que encantada, desandava a descrever curvas e rotações diferentes em pleno ar. Para, logo em seguida, desenhar uma parábola, descaindo com força, incerta e cheia de graxa, num dos ângulos do gol, bem junto às traves.

Tudo isso para desespero de Castilho, Veludo, Adalberto e Jairo – justo a fina flor, em termos de goleiros, lá no Fluminense. E que se revezavam, treino após treino, na ingrata tarefa de testar aquela típica invenção made in Didi.

Finalmente, já tida como pronta e acabada, eis que a grande novidade acabou por ser testada oficialmente diante do pobre Julião, jovem goleiro do Bonsucesso. um crioulo imenso, que ora fechava o gol e, noutro dia, era capaz de papar os frangos mais inacreditáveis. Homéricos mesmo.

E que naquela tarde, no estadinho da rua Teixeira de Castro, pensava, a cada chute de Didi, estar vendo coisas do outro mundo. Ou, no mínimo, “que andava variando da cabeça”, debaixo de um sol de mais de 40 graus que latejava em sua moleira. Ainda mais naquele caldeirão de fogo, que atendia por Zona da Leopoldina do Rio de Janeiro.

Um pouco mais de tempo passado, e eis que lá estava a estranha novidade a ganhar notoriedade de vez. Até mesmo, como arma mortal. Só que acabou por visar o seu passaporte, rumo ao sucesso internacional, em duas vias distintas. Em 1957, quando garantiu a ida do Brasil à Copa do Mundo da Suécia, no 1 a 0 diante do Peru, em um Maracanã superlotado. E em 1958, já em gramados escandinavos, quando provocou o desempate em 2 a 1, na eletrizante semifinal diante da França – que vencemos por 5 a 2.


Quatro dias depois, com o Brasil campeão do mundo pela primeira vez, e com o próprio Didi, majestoso, consagrado com todas as honras como o grande mestre do nosso time e o maior jogador daquela Copa inesquecível, era da vertiginosa folha-seca que ele voltaria a falar com imenso carinho.

Talvez, em pleno transe da grande festa, até se lembrasse em detalhes de como tudo havia começado. Por exemplo: daquele Fluminense x América, e do tornozelo direito avariado na disputa de bola com Ivan; do espanto do pobre Julião, a ver coisas do outro mundo, no acanhado estadinho da rua Teixeira de Castro, a cada folha-seca que descaía no seu gol; e, finalmente, de Abbes, goleiro da França, quatro dias antes. A testar, sem sucesso, o poder de fogo de um chute que questionaria a física e a lógica, na intricada geometria do futebol.

VIDA LONGA

por Ruy Castro

Não se passa um dia sem a notícia do fechamento de um estabelecimento tradicional: um sebo particularmente rico de livros em francês, um café que vivia cheio de gente, um hotel que já hospedou uma seleção campeã do mundo (a do Uruguai, em 1950), uma banca de jornais que servia cafezinho aos clientes e até uma poderosa loja de artigos esportivos no quarteirão mais caro de Ipanema. Por trás de cada história, a fuga da clientela e do dinheiro e a quebradeira a que levaram o país.


Ao mesmo tempo, não se sabe do fechamento de farmácias, bancos e templos evangélicos, nem de lojas de colchões, de móveis de carregação ou de artigos de casa e vídeo. Por sinal, são elas que ocupam os espaços onde até há pouco se abrigava aquele comércio tão simpática e necessário. Não que essas novas lojas, tão arrogantes, não possam existir. Mas quem precisa de quatro farmácias da mesma rede num único quarteirão? Em outros países, as prefeituras controlam esse abuso.

Por isso, quando se sabe que uma livraria no Rio está completando 19 anos não é caso apenas de soprar velinhas, mas de soltar foguetes. É o que acontece hoje, dia do aniversário da Folha Seca, na rua do Ouvidor, coincidindo com o de são Sebastião, padroeiro da cidade. Quando Rodrigo Ferreira a abriu, em 1998, sua proposta era audaciosa: uma livraria “carioca”, especializada em livros sobre o Rio, música popular e futebol. Desde quando um país em eterna crise comporta tanta especialização?

Mas Rodrigo se impôs e sua presença injetou a felicidade naquele trecho da Ouvidor, entre 1º de Março e Travessa do Comércio. Surgiram botequins, restaurantes, rodas de samba e de choro, tornando-o um dos quarteirões mais deliciosos do velho Centro.

Não se entende mais o Rio sem a Folha Seca. Vida longa a essa livraria, que faz tão bem à cidade.


Texto publicado original na Folha de São Paulo em 20 de janeiro de 2017.