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Fluminense

AS MÁQUINAS E O CASAL

texto: Marcello Pires | fotos: Ricardo Beliel


A Máquina Tricolor montada por Francisco Horta e recheada de craques como Rivellino, Paulo Cesar Caju, Carlos Alberto Torres, Edinho, Dirceu, Gil, Doval, entre tantos outros, é daqueles times que encantaram e foram eternizados na memória de todo apaixonado por futebol, seja ele torcedor do Fluminense ou não. Foi assim com o Santos, de Pelé; o Botafogo, de Garrincha; a Academia, de Ademir da Guia; o Internacional, de Falcão, tricampeão brasileiro; o Cruzeiro, de Tostão; e o Flamengo de Zico. Isso para citar os mais marcantes. Mas, nas Laranjeiras, há quem acredite que a verdadeira máquina a vestir as cores verde, branco e grená foi outra: o time tricampeão carioca e campeão brasileiro na década de 80.

A discussão gera polêmica, para alguns tricolores chega a ser inaceitável, mas o fato é que se levarmos em conta apenas os números e estatísticas, fatores preponderantes nos dias de hoje, a comparação não é nenhum exagero. Se, por um lado, os timaços que encheram os olhos entre 1975 e 1976 contavam com quatro tricampeões do mundo – Félix, Carlos Alberto Torres, Paulo Cesar Caju e Rivellino -, o escrete que começou a ser montado por Cláudio Garcia em 1983, passou pelas mãos de Carbone e Carlos Alberto Torres e teve os retoques finais de Carlos Alberto Parreira e Nelsinho marcou história pelos títulos, pela supremacia absoluta nos clássicos regionais e por uma das duplas mais carismáticas do futebol brasileiro, eternizada na sede das Laranjeiras em 2015, com dois bustos feitos em bronze, através de um crowdefunding (vaquinha virtual) que conseguiu levantar um valor total de R$ 197.572,00.

Pelé e Garrincha nunca perderam com a camisa da seleção, Pelé e Coutinho são considerados inigualáveis na época dourada do Santos e Romário e Bebeto talvez tenha sido a dupla mais badalada aos longo dos anos. Mas nenhuma outra foi tão marcante dentro e fora de campo quanto Assis e Washington, que assim que estrearam pelo Fluminense foram apelidados de Casal 20, seriado de TV da época, que tinha como personagens centrais Johathan e Jennifer Hart, protagonizados pelos atores Robert Wagner e Stefanie Powers.


Se na ficção a dupla investigava crimes pelo mundo e fazia o papel do mocinho, na vida real os atacantes do Fluminense não perdoavam as defesas e se tornaram os vilões mais indesejados pelos adversários. A ligação entre eles era quase sobrenatural e transcendeu as quatro linhas. É impossível descrever a trajetória de um sem lembrar dos feitos do outro. Se nas cerimônias de casamento nos acostumamos com a frase “até que a morte os separe”, no compromisso selado entre Assis e Washington essa promessa perdurou até o fim.

Nascido em 3 de janeiro de 1960, na cidade de Valença, no litoral sul da Bahia, Washington César Santos lutava contra uma doença degenerativa, a esclerose lateral amiotrófica (ELA), e morreu dia 25 de maio de 2014, em sua casa, em Curitiba. Fiel escudeiro de Washington em tantas batalhas ao longo da carreira, Assis sentiu o golpe e perdeu a fala durante o enterro do eterno amigo. “Desculpe, me desculpe, mas hoje não dá. Outro dia eu falo, mas hoje não consigo”. E, infelizmente, nunca conseguiu.

Internado dias depois, com problemas renais, Benedito de Assis da Silva não resistiu à falta do parceiro e deixou o torcedor tricolor órfão de vez da sua mais famosa dupla, no dia 6 de junho do mesmo ano, apenas 42 dias após o adeus do inseparável amigo. Autor dos gols contra o Flamengo que deram ao Fluminense os títulos estaduais de 1983 e 1984, o camisa 10 mais emblemático das Laranjeiras na década de 80 se eternizou como o carrasco rubro-negro e ganhou até uma música que a torcida tricolor canta até hoje nos Fla-Flus: “Recordar é viver, Assis acabou com você”.

A parceria, que começou timidamente no Internacional, em 1981, se apresentou para o cenário nacional no Athletico-PR entre 1982 e 1983, e se eternizou com a camisa do Fluminense, pode até ter se despedido desse plano no longevo 6 de junho de 2014, mas seguirá viva para sempre na memória e no coração de todo torcedor tricolor. Assim como as lembranças do toque sutil por debaixo do goleiro Raul e da cabeçada mortal que fez o argentino Fillol, campeão do mundo em 1978, brincar de estátua nas finais de 83 e 84, respectivamente, imortalizando Assis como o carrasco dos Fla-Flus, ou dos gols antológicos de Washington contra o Vasco, na vitória por 2 a 0, no estadual de 1987, quando colocou a defesa vascaína para dançar antes de balançar as redes do Maracanã, e diante do Flamengo, de voleio, dois anos antes, no empate em 1 a 1.


O legado deixado pela dupla, no entanto, vai muito além dessas doces lembranças contra os dois principais rivais. Além das nove taças que conquistaram entre 1983 e 1987, nas 160 vezes que pisaram juntos num gramado vestindo a camisa tricolor, foram 83 vitórias, 51 empates e apenas 26 derrotas. Um retrospecto respeitável para uma dupla que desembarcou no Rio de Janeiro numa fase de vacas magras apenas como uma aposta.

Assis se despediu do Fluminense em 1987, quando voltou ao Athletico-PR após cinco temporadas, 177 partidas e 54 gols. Já o camisa 9, que teve que se acostumar a escutar o famoso coro de “ão, ão, ão, na cabeça do Negão” sem seu fiel escudeiro, permaneceu por mais dois anos nas Laranjeiras antes de se transferir para o Guarani, após 301 jogos e 118 gols, que até hoje lhe mantém entre os 10 maiores artilheiros do Fluminense – Washington é o oitavo da lista.

Com tantos títulos conquistados, tantos craques marcantes e tantas histórias importantes, sinceramente o que menos importa nesta centenária jornada verde, branco e grená é qual é a verdadeira Máquina Tricolor. Sorte do torcedor que veste as cores do Fluminense de ter tido o privilégio de assistir a esses timaços em ação e de ter uma dupla eternizada no futebol pentacampeão mundial para chamar de sua.

FLUMINENSE 1980, COM A BENÇÃO DE JOÃO DE DEUS

por Paulo-Roberto Andel


Quarenta anos depois, o Fluminense de 1980 desperta saudades dos cinquentões em diante. E neste 30 de novembro, é o aniversário de um inesquecível time tricolor, campeão diante de adversários fortíssimos. 

Naquele tempo o Flu vivia uma crise. Não tinha dinheiro e vinha de três anos sem conquistas, algo até então raro na trajetória tricolor. Para piorar, fez uma péssima Taça Guanabara (naquele ano, uma competição separada do campeonato carioca). Por fim, perdeu seu treinador, Zagallo, que foi para o Vasco dizendo que queria ser campeão. 

Ao Tricolor, restou a reconstrução. Um time com vários jogadores jovens, todos formados nas divisões de base do clube, somados a dois reforços: Gilberto, excelente meio campista que veio do Atlético Goianiense mas tinha começado no Botafogo, e Cláudio Adão, um craque mas de futuro incerto depois de praticamente ter sido enxotado de Botafogo e Flamengo. Para liderar a equipe, ficou Edinho, craque de Seleção.

Paulo Goulart, Edevaldo, Tadeu, Edinho e Rubens Galaxe; Deley, Gilberto e Mário; Robertinho, Cláudio Adão e Zezé. O treinador, Nelsinho – uma fera de Madureira e Flamengo nos anos 1960. Mas é justo falar de Mário Jorge, jovem ponta-direita que jogou boa parte do campeonato no lugar do contundido Robertinho.

O Fluminense começou sua campanha longe das manchetes do favoritismo, mas a garotada foi ganhando espaço. Um ponto marcante da jornada foi a goleada por 4 a 0 sobre o Botafogo, devolvendo o placar do ano anterior e com uma atuação de gala de Cláudio Adão, autor de dois golaços. Depois o Flu empatou com o poderoso Flamengo campeão brasileiro (1 a 1) e virou em cima do não menos poderoso Vasco de Roberto, Guina, Paulo Cezar Caju e Pintinho (2 a 1). O Tricolor e o Cruz-maltino terminaram empatados no turno e foi preciso um jogo extra para a decisão do turno. Deu Flu na disputa de pênaltis, 4 a 1 com o brilho do goleiro Paulo Goulart nas cobranças, garantindo o time na final do campeonato.

No segundo turno, a equipe tricolor fez uma campanha irregular. Mesmo assim, não perdeu para os chamados três grandes, empatando com Flamengo e Botafogo em 2 a 2, mais o Vasco em 3 a 3. O Flamengo sonhava com a final mas o Serrano de Anapolina lhe impôs uma vitória histórica e o Vasco faturou o segundo turno. No final das contas, o Flu engoliu a seco mesmo foi diante do America, que o derrotou nos dois turnos. 

A partida final foi disputada numa tarde de chuva no Maracanã. A torcida do Fluminense repetiu o canto de João de Deus, cantado em boa parte da competição – era o tema de homenagem ao Papa João Paulo II, que veio ao Brasil naquele ano. O Vasco tinha um timaço mas era difícil encarar a garotada tricolor. Aos 22 minutos do segundo tempo, Edinho marcou de falta o gol que garantiu o título que quebrou a sequência rubro-negra no futebol carioca. O outrora desacreditado Cláudio Adão foi o artilheiro do campeonato, e Edinho foi o craque do começo ao fim, mas o Fluminense tinha muitos recursos: Mário e Zezé eram rápidos, com suas canhotas mortais e bons chutadores; Robertinho e Gilberto eram extremamente habilidosos e, para completar, o Brasil via um craque de grandes passes e lançamentos surgir no pedaço – Deley, fera! Foi o último campeonato de Cleber, tetracampeão carioca pelo Fluminense. 


Eram tempos de Maracanã lotado, clássicos para mais de cem mil torcedores, a monumental nuvem de pó de arroz e um maravilhoso time que encarou seus grandes rivais olhando de cima. O Canal 100 mostrava tudo antes das sessões de cinema. João Saldanha comentava, Jorge Curi e Waldyr Amaral narravam, as bancas de jornais ficavam alinhadas às segundas-feiras – cheias de gente espiando as manchetes do futebol carioca. E a decisão de 1980 também foi marcada pela despedida de dois ícones tricolores, que também são admirados por todo mundo até hoje: Cartola, a maior expressão da história do samba, que morreu no dia do título tricolor, e Nelson Rodrigues, cuja última crônica (ditada para seu filho, o jornalista Nelsinho Rodrigues) foi a da celebração da conquista – o maior dramaturgo da história do país morreria 21 dias depois da volta olímpica tricolor. 

Quarenta anos depois, o jovem e desacreditado Flu de 1980 é uma página eterna da história do clube. Uma equipe de enorme talento individual, muito empenho coletivo e um jovem craque de 25 anos que liderava o time de ponta a ponta, desarmando, marcando, arrancando para o ataque e fazendo gols: Edinho. Ele foi uma grande herança da imortal Máquina Tricolor e um dos maiores zagueiros da história, não só do Fluminense mas também de todo o futebol brasileiro.

Dos campeões de 40 anos atrás, há muitas imagens, mas a mais significativa é a do treinador Nelsinho à beira do campo no dia do título. Sereno, protegido da chuva por um capuz plástico no banco de reservas, ele mostrou ali a mesma categoria que desfilou antes nos gramados cariocas. Simples e tímido, mas de uma competência enorme. 

@pauloandel

JOGOS MARCANTES: ENTRE A FÉ E A REALIDADE

por Walter Duarte


Como no episódio bíblico sobre o confronto entre Davi e Golias e as suas representações da fé e o determinismo das diferenças, somos sempre chamados a reavaliar nossas crenças. O futebol nos traz a expectativa que nem sempre o elenco mais qualificado e abastado nas finanças vence o de menor recurso e desacreditado. Esse talvez seja um dos ingredientes da nossa paixão por esse esporte, o sentimento que o extraordinário e o imponderável possam nos surpreender. Quantas e quantas vezes observamos perplexos a zebra “passear” nos gramados, contrariando todos os prognósticos e subvertendo as frias tendências probabilísticas.

Venho, então, amigos a citar dois grandes jogos que marcaram os torcedores do Goytacaz e Fluminense, pelo desfecho e também pelas peripécias do destino. O Goytacaz debutou no Campeonato Carioca em 1976, fazendo boa campanha naquele ano, revelando jovens e promissores jogadores. Mas no seu caminho estava o Fluminense de Francisco Horta, o mentor intelectual da “máquina tricolor”. Rivelino, Doval, PC Caju, Gil, Pintinho e Cia, ditavam o ritmo de uma orquestra afinada e sedentos de arte. Uma potência futebolística inquestionável!

O resultado também foi histórico, um estrondoso 9×0 no Maracanã em uma quarta-feira, chuvosa e sombria, talvez um prenúncio de mau agoro para o Goyta. Estavam ali configurados os extremos de uma disputa técnica e uma realidade nua e crua. 


A velha máxima que não se pode brincar com a sorte, caiu como um raio naquele Goytacaz que iniciava sua trajetória nas disputas com os grandes da capital. O resultado apenas consolidou e iluminou o favoritismo tricolor para a conquista do campeonato daquele ano, e um encantamento que marcou gerações. Era prudente para o alvi anil Campista reavaliar o duro golpe, seguir adiante e reinventar-se na competição. Configurou-se tarefa difícil para o novo treinador Paulo Henrique, conhecido ex-lateral do Flamengo da década de 60 e da seleção, determinar “um estratagema” para levantar a moral e o psicológico da equipe para um novo embate. 

Uma nova oportunidade aconteceu e, desta vez, foi contra o Botafogo no mesmo cenário, o Maracanã. E o Goytacaz conseguiu eximir-se do trauma vencendo o jogo por 1×0, gol do centro avante Zé Neto, diante de incrédulos Botafoguenses. 

O tempo passou e ficaram evidentes os aprendizados com as derrotas acachapantes e as vitórias suadas, mas a marca daquele 24 de Abril de 1976, contra o Flu, nunca foi digerida. Até que em 19/03/1986, dez anos depois, o Goytacaz enfrenta a “nova máquina” desta vez protagonizada por Washington, Assis, Romerito, Ricardo Gomes… O treinador desta época pelo lado do tricolor era o experiente Nelsinho e pelo lado do Goytacaz o Denílson  “REI ZULU”, ex-volante e ídolo do Flu e da seleção de 66.


Existiu grande expectativa na partida no alçapão da Rua do Gás e o estádio ARIZÃO em Campos, o teatro de mais uma batalha entre o grande e o pequeno, entre o gigante Golias contra o “frágil”, porém impetuoso Davi. Sobre a “batuta” de Denílson, os torcedores desejavam reverter os prognósticos, tirando da cartola uma formação agressiva que viesse a surpreender o adversário com uma estratégia inteligente. Desta vez, com jogadores rodados como o Goleiro Jorge Luís (Cebolinha), o Zagueiro Kleber e o meia atacante Sena (Ex-Bahia, Vitória, Atlético de Madri…) Goyta entra em campo confiante. 

A partida começa e configura-se um jogo diferente pelo lado do Goytacaz. Um time compacto e vibrante se vê em campo, impondo o jogo e alheio à submissão de tantos jogos do passado. Uma transformação ocorre no estádio. A desconfiança de um novo fiasco que atemorizava os torcedores dá lugar a uma vibração nunca vista. Todos se juntam aquele time guerreiro como um Cavalo de Tróia, adentrando a cidadela para a conquistar o triunfo. 


Os gols surgem naturalmente e o Fluminense atônito e desfigurado em campo não consegue se impor e nada deu certo. Romerito perde dois gols límpidos com defesas milagrosas do Jorge Luís, rogando pragas indescritíveis em castelhano. Ao final da partida, a goleada é consolidada em 4×0, com gols de Sena, Leandro (2x) e Clóvis. 

Os Deuses do futebol estavam ali presentes e sopraram suas bênçãos naquele time que se agigantou e todos os pecados foram expiados daquela torcida sofrida que lotou o Arizão.  Denílson sai nos braços do povo sendo ovacionado pela vitória, depois de longos anos longe da sua terra natal. 

 

*** Dedico este texto ao meu saudoso Pai Sr. Walter. Torcedor do Fluminense e do Goytacaz que me ensinou a enxergar o futebol de forma inspiradora e apaixonante.

UMA MÁQUINA DE SONHOS

por Zé Roberto Padilha


O relógio do Mineirão, em uma época em que ainda se permitiam ostentá-lo nos estádios como no Basquete, a ajudar a torcida vitoriosa pedir o fim do jogo, e a adversária ir mais cedo para casa, marcava 44 minutos do segundo tempo. O placar apontava Cruzeiro 1 x Fluminense 1 pelo Campeonato Brasileiro de 1975. PC Caju, nosso camisa oito, foi batê-lo.

Mas ao notar mais homens de azul do que tricolores no interior da grande área, gritou para eu encostar e trocar passes na linha de fundo, junto a bandeirinha, até o tempo se esgotar. O empate fora de casa, a duas rodadas do fim do campeonato, já nos classificava para as semifinais. Esgotado por correr 89 minutos naquele gramado fofo, recusei o convite e me plantei na intermediária. Félix havia se machucado e meu compadre, o goleiro Roberto, que tinha a chance da sua vida, me pedira aos soluços no vestiário para não deixar o Nelinho desferir nenhuma daquelas bombas em sua direção. Para evitar seus chutes em meio às minhas funções, cheguei à exaustão.

A pressão do Cruzeiro era insuportável e certamente viria um contra ataque após a cobrança daquele corner. Não tínhamos um centroavante alto, Manfrine tinha apenas 1,76 e o Edinho, nosso melhor cabeceador, nem no ataque se aventurou. Mas PC, igualmente cansado, que parecia não ter forças sequer para alçar a bola na grande área, continuou a berrar:

– Encosta aqui ô Juvenil!

Mesmo começando a minha carreira e diante das ordens de uma velha raposa tricampeã mundial, resisti. E devolvi a dura lá de longe, quase na linha do meio-campo:

– Joga esta p…pro abafa!

Contrariado, PC bateu o córner direto. A bola fez uma curva incrível e enganou o goleiro Raúl, que caiu dentro do gol enroscado com ela. E um gol inesquecível, olímpico, garantiu de vez nossa presença nas semifinais ao lado do Internacional, do Corinthians e do próprio Cruzeiro.

Apenas dia seguinte, lendo a coluna de Nelson Rodrigues em O Globo, fui saber que um personagem da história tricolor fora o principal responsável pela minha precoce desobediência: o Sobrenatural de Almeida. Segundo o cronista-mestre, tratava-se da mesma criatura que na decisão de 1971, contra o Botafogo, ajudara o Marco Antonio dar um chega para lá no Ubirajara para que Lula empurrasse a bola para dentro do gol.

Como sonha todo indivíduo do sexo masculino no país do futebol, eu era jogador de um grande time, quase imbatível, cujo goleiro, Félix, era uma lenda tricampeã mundial. Nas laterais, dois modernos apoiadores: um mais forte, que chegava rapidamente à linha de fundo, chamado Toninho Baiano, e outro mais técnico, também tricampeão mundial, conhecido como Marco Antonio. Na zaga, um jogador experiente que chutava como poucos, o Silveira, ao lado de um fenômeno que surgia, aos 19 anos, para dar muitas alegrias ao futebol brasileiro: Edinho.

Zé Mário, um incansável cabeça de área, os protegia, deixando livres para a criação dois monstros sagrados: PC e Rivelino. No ataque, a explosão e o oportunismo do Búfalo Gil e, centralizado, como pivô, um habilidoso craque chamado Manfrini. Não havia banco, era um poltrona de couro que injetava durante as partidas, nesta máquina de jogar futebol e para desespero dos adversários, a vitalidade de Cléber e Carlos Alberto Pintinho, a velocidade de Cafuringa, a juventude de Erivelton e a magia e habilidade do ponta esquerda Mário Sérgio.

Neste paraíso da bola rolando, eu, tricolor apaixonado desde criança, ganhara de presente a camisa 11 e percorria, com ou sem bola, os quatro cantos do Maracanã, do Mineirão, do Serra Dourada ou onde quer que o Fluminense se apresentasse feliz toda vida. Vestia a camisa que era minha bandeira nas arquibancadas, trocava passes com meus ídolos e, ainda por cima, era pago para isto. Quando nos aproximávamos de mais um título, depois de levantarmos invictos a Taça Guanabara, o estadual de 75 e o Torneio de Paris, o relógio tratou de me despertar.

Decepcionado e contrariado, me levantei naquele dia pra lá de mau humorado, tomei meu café da manhã sem dar bom dia a patroa, que não tinha nada com isso, e saí para meu trabalho na Secretaria de Esportes de Três Rios. Ao passar pela sala me deparei com um pôster da Revista Placar pendurado na parede. Para minha alegria, ele mantinha a minha foto em meio a todas aquelas feras.

Que bom saber que o sonhado era recordado apesar de vir evitando, ao longo dos anos, maiores decepções ao não me debruçar sobre o passado. Que levou a maioria dos meus companheiros, desamparados e esquecidos, a viver contando suas histórias nos botequins de suas cidades de origem, retratinhos no bolso para provar cada passe ou gol marcado, onde acabaram embaçando o brilho de suas conquistas no lugar de procurar construir uma nova realidade. Sobreviver, sem aposentadoria, numa sociedade que ninguém nos preparou para buscar mais 20 anos de carteira assinada e pior: sem a cumplicidade de uma bola que carregamos 18 anos nos pés.

Afinal, mesmo no país do futebol, não passo de um sobrevivente comum, de carne e ossos fraturados, meniscos ausentes, tornozelos condenados, mas com direito a sonhos e recordações. Máquina, em nossas vidas, foi um apelido carinhoso de um inesquecível time de futebol que tive a honra de defender e posar pra fotografia quatro décadas atrás.

* Crônica do livro: Futebol: a dor de uma paixão. 3* Edição

O ÚLTIMO VOO DE CASTILHO

por André Luiz Pereira Nunes


Em 2 de fevereiro de 1987 faleceria aos 59 anos, Carlos José Castilho. O inesquecível goleiro do Fluminense e da Seleção Brasileira, vítima da depressão, atirou-se da cobertura do prédio de número 383, da Rua Bonsucesso, vindo a cair na área interna do edifício. Teve morte instantânea. Na ocasião, era treinador do selecionado da Arábia Saudita e se encontrava de férias no Rio. A esposa Vilma Lopes Castilho ainda tentaria evitar o trágico desfecho, mas não teve forças para segurá-lo. O incidente aconteceu por volta das 16h e a família não quis dar declarações à imprensa. Segundo alguns amigos, Castilho desejava rescindir o contrato com os árabes e voltar para o Brasil, mas teria que pagar uma alta rescisão em dólares, algo impraticável mesmo para ele, que vivia com absoluto conforto e tinha a vida, sob o ponto de vista financeiro, realizada.

Nascido em 27 de novembro de 1927, começou jogando peladas em São Cristóvão. Em 1945, começou a treinar no Olaria, o qual defendeu no campeonato da categoria juvenil. No ano seguinte, o pai do artilheiro Ademir Menezes o convidou para o Fluminense, comandado pelo folclórico Gentil Cardoso. Finalmente, em 1947, assinaria o seu primeiro contrato profissional. Daí para o estrelato não tardaria muito, pois em 1950 já fazia parte do elenco vice-campeão mundial da Seleção Brasileira que capitulou em pleno Maracanã diante do Uruguai na tragédia que ficou conhecida como “Maracanazo”. Como se sabe, Barbosa fora o goleiro titular. Muitos se perguntavam do porquê de Castilho, em pleno início de carreira, já ter sido chamado a uma Copa do Mundo. O motivo é claro. Ele simplesmente fechara o gol durante o Campeonato Carioca, de modo que o técnico Flávio Costa não teve como deixá-lo fora de sua lista.

Se sagraria campeão na temporada seguinte pelo Tricolor das Laranjeiras, então comandado por Zezé Moreira, o qual implantara na equipe um polêmico sistema de marcação por zona. O time marcava um gol e depois recuava, de maneira que o adversário pressionava e chutava inúmeras vezes. A torcida sofria horrores, mas debaixo das traves estava um arqueiro seguro, bem colocado e que ainda contava com a sorte, esse diferencial tão importante em uma partida de futebol. Treinava sempre com afinco. Não podia vacilar, pois o seu reserva era o excelente Veludo, também goleiro da Seleção Brasileira. Em 1952, defendeu pênaltis em oito partidas. Certa vez, por conta de uma atrofia no dedo mínimo da mão esquerda, teve que tomar uma difícil decisão. Ou engessava e ficava fora dos gramados por um ano ou se submetia a uma cirurgia para extrair o membro. Optou pelo mais prático, passando a preencher o vazio por dentro da luva com algodão.


Pelo Fluminense foi ainda campeão carioca em 1959 e 1964, além de vencedor do Torneio Rio-São Paulo, em 1960. Participou de quatro Copas do Mundo: 1950, no Brasil (vice-campeão), 1954, na Suíça (como titular), 1958, na Suécia (campeão), e em 1962, no Chile (bicampeão). Foi ainda campeão panamericano, em 1952. Vestiria no total a camisa da Seleção por 31 oportunidades.

Após encerrar a carreira, em 1966, passou logo a treinador. No ano seguinte já se sagraria campeão paraense pelo Paysandu. Teve uma breve passagem pelo Olaria e voltou a ser campeão, em 1969, pelo Paysandu. Dirigiu o Sport, Fortaleza e o Tiradentes. Em 1974, classificou o Vitória para o Campeonato Brasileiro. A seguir, foi campeão invicto pelo Tiradentes, voltando para o Paysandu. Em 1976, conduziu o Operário ao terceiro lugar no Campeonato Brasileiro, maior feito da equipe alvinegra de Campo Grande. Esteve no Internacional, no ano seguinte, retornando ao Operário, onde ficou até 1982, quando passaria a treinar o Grêmio. Mais uma vez foi para o Operário e, em 1984, se sagrou campeão paulista pelo Santos. Ainda pelo time da Vila Belmiro conquistaria seu último título, o do Torneio Início, em 1986. Transferira-se no mesmo ano para o Palmeiras e, em seguida, por indicação do amigo Telê Santana, ao futebol árabe.

Para se livrar da depressão, a última e enganosa bola da vida, Castilho deu o seu último mergulho. Provavelmente o grande árbitro deve ter levado em conta o dedo perdido, o intenso esforço a favor do esporte e o talento e a dedicação dentro e fora das quatro linhas.