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Fluminense

O BUROCRATA

por Zé Roberto Padilha


Zé Roberto Padilha

Segundo nosso ancestral do Google, burocracia “é um sistema em que há excessiva formalidade ou rotina de trâmites”. Mais do que toda a banca de comentaristas do Linha de Passe, Aurélio Buarque de Holanda acabou definindo como ninguém a atuação do mais novo burocrata do futebol brasileiro: Marquinhos, do Fluminense.

Sei do quanto é complicado para quem trilhou o mesmo caminho, jogou na mesma posição e vestiu a número 11 tricolor analisar um companheiro de profissão. Mas também fiz jornalismo e, ao seu final, o juramento de “não seja Hipócrates” para não omitir qualquer opinião. Ontem, após Botafogo 3 x 1 Fluminense, ouso afirmar: não há um jogador mais burocrata que ele. Superou Márcio Araújo, que pelo menos marca, e sepultou, de vez, a passagem de Guiñazú por aqui. Que era brabo. E argentino.


Revi a partida mais tarde para não cometer injustiça, e pude constatar todas as qualidades que o credenciam para, após encerrar sua carreira, ingressar em uma repartição pública. Foram 18 passes para o lado, dez para trás e nenhuma jogada pela linha de fundo. Nenhum chute a gol. E não abriu mão da maior de todas as funções burocráticas de quem assume o carimbo da sua instituição: levantar a bola sobre a área em cobrança de faltas. “Deixa que é minha, levanta os braços e afasta os meninos!” No máximo, bater um escanteio correndo o risco de encontrar a cabeça do Richarlison. E ainda ser abraçado e sair de campo aplaudido. 

Sornoza, Nenê, William Arão, Camilo, Conca, Mancuello, até o Pimpão, realizam a mesma função que ele mas aparecem dentro da área como jogador surpresa. Daí marcam gols e realizam assistências. Marquinhos tem puxado o freio de mão ao se aproximar da área porque gol é para os que se afastam do balcão e se arriscam a perdê-lo. Melhor ficar na sobra, pode ter contra-ataque, quem vai cobrir a subida dos laterais e a ausência do patrão?


Seu Lineu da Grande Família. Gente boa, bom de grupo, aplicado, jamais traiu a Nenê e detém a confiança de quem lhe confiou até a braçadeira para cuidar em campo dos meninos. Porém, se como seu antecessor tive cuidados, como jornalista nem tanto, deixei por último o meu lado torcedor tricolor: “Poxa, Abel! Se gosta tanto dele, ou liberte-o do balcão de atendimentos com hora marcada, aproxime-o da grande área, ou coloque-o na comissão técnica ao lado do Leomir!”. Vai ser bom para todo mundo, principalmente para esta sagrada instituição chamada Fluminense FC que tem carimbado seus títulos mais pela ousadia e improvisos do que pela falta de ambição dos seus jogadores.

DIGA ESPELHO MEU

por Zé Roberto Padilha


Zé Roberto

Acabara de chegar das Paineiras onde melhorava meu tempo na subida dos 5 km. Todo feliz por chegar ao lado do Pintinho e do Edinho, morava no Humaitá e perguntei orgulhoso ao meu espelho em 1972: “Será que existe um ponta esquerda que corra mais do que eu?” Ele respondeu: “Sim, seu nome é Dirceuzinho e joga no Coritiba.”

Não desisti. Continuei a treinar forte, tomar vitaminas, dormir cedo e era sempre o primeiro da fila nos exercícios físicos. Certo dia, dois anos depois, alcancei em 1974 na planilha de Carlos Alberto Parreira 3.120m em 12 minutos do Teste de Cooper. Muitos jogadores do elenco tricolor sequer alcançaram a marca dos 3 km. Me sentindo um queniano, retornei ao espelho, já morando na Rua do Catete, e ele novamente baixou minha bola: “Sim, Dirceuzinho, já no Botafogo, alcançou 3.475m. Recorde brasileiro entre jogadores de futebol.”

Aí veio nosso primeiro duelo num clássico vovô, e ele aconteceu por todos os lugares do campo, onde a bola estivesse. Até a primeira metade da década de 70 o camisa 11 enfrentava o camisa 2, Garrincha com a 7 enfrentava Joãos com a 6, e o 9 ficava entre a zaga dos números 3 e 4, esperando que o 10 viesse detrás e decidisse a partida. Eram vários duelos à parte, em locais específicos dentro de uma mesma partida de futebol. E era estranho para mim, e para o Dirceuzinho, diante de tamanha correria, duelar em locais nunca antes defrontados. “O que será que este ponta esquerda está fazendo por aqui?”


Dirceuzinho na seleção

Peladeiros nas derrotas, polivalentes nas vitórias. Deste jeito, fomos buscando com nossos pulmões espaços no futebol-arte. Acabamos sendo motorzinhos da mesma máquina de jogar futebol, eu em 75, ele em 76. Nossa missão era a mesma: cobrir o Marco Antonio, depois o Rodrigues Neto, e liberar o PC, o Rivellino e o Edinho para atacar os adversários. Fomos bicampeões cariocas. Mas as seguidas contusões não me permitiram mais tentar alcançar seu tempo, sua bola: fui para Recife defender o Santa Cruz, ele alcançou a seleção brasileira. Desta vez o espelho bateu o martelo em Boa Viagem, era um reflexo bonito de frente para o mar: “Dirceuzinho, realmente, fora bem mais longe do que eu!”


Já não era mais meu adversário. Era seu fã. Cada convocação sua alimentava dentro de mim um estímulo que nos ajudou a continuar a profissão diante da perda dos meniscos, dos tornozelos fraturados, de uma hérnia inguinal rompida. Se não machucasse tanto, pensava no cotidiano do departamento médico, poderia continuar me espelhando, buscar seus feitos como buscava seus tempos, quem sabe, um lugar melhor na história do futebol brasileiro.

Um tempo depois, o espelho se quebrou. Dirceu José Guimarães, nascido como eu em 1952, precocemente, nos deixou. Hoje, ao acordar e escovar os dentes, por instante vi refletido, infelizmente esquecido, o tamanho da sua importância para o nosso futebol. Três Copas do Mundo, terceiro melhor jogador do planeta em 1978. Daí peguei a caneta e tratei de lhe fazer justiça, pois em matéria de gratidão e respeito a sua obra, pensei, ninguém vai ser mais rápido do que eu. Que saudades, parceiro!

AGORA SIM, PROFESSOR

por Zé Roberto Padilha


Fui treinador de futebol durante oito anos. A metade em Xerém, comandando as divisões de base tricolor, América FC-TR, Ariquemes FC e Entrerriense FC. Não fomos mal, conquistamos quatro títulos (Carioca Infantil 87, Juvenil 89, Estadual de Rondônia 93, e Divisão Intermediária do RJ, em 94,) mas acabamos mal: depressão profunda herdada após participar do octogonal decisivo de Carioca de 95.

Mesmo sabendo do tamanho da nossa folha salarial, um abismo em relação aos adversários, não era fácil perder sábado sim, domingo também do Flamengo, na Gávea de 6×1 (Romário, Edmundo e Sávio), de 5×0 para o Vasco em São Januário (Carlos Germano, Gian, Ian, Pimentel, Waldir e Leandro Ávila), 4×2 para o Botafogo, que se tornaria campeão brasileiro daquele ano, do Túlio, e 3×0 nas Laranjeiras para o Fluminense de Renato Gaúcho, que acabou campeão carioca no centenário do Flamengo. Quase protagonizei as cenas de Ricardo Gomes, a pressão disparou, baixei hospital e passei a ser mais um hipertenso que levou meu orgulho de atleta a conviver com um remedinho pela manhã, outro à noitinha.


Último agachado da direita para a esquerda, Zé Roberto fez parte da Máquina Tricolor

Era treinador mas meus jogadores me chamavam de professor. Não era. Mas curtia demais as preleções. Se pudesse, adiava a partida para ficar ali no vestiário repassando ensinamentos às nova gerações, afinal, meus treinadores foram Pinheiro, Telê, Zagalo, Parreira, Antoninho, Paulo Emílio, Didi, Carlos Froner, Claudio Coutinho, Sebastião Lazarone, Evaristo Macedo, Jouber Meira, Jair da Rosa Pinto, Paulo Henrique… seria um desperdício, diante de um privilégio desses, não dividir tamanha sabedoria. E tinha a parte política, que é a minha outra paixão, falar sobre cidadania, participação, respeito àquele pessoal da arquibancada que pagou ingresso e decidiremos no domingo se serão mais felizes, ou não, em razão dos resultados alcançados.


Zé Roberto dando sua primeiro aula

E pensei comigo ao procurar um novo espaço na sociedade: na próxima encarnação vou ser professor. Após me formar Jornalista, vi o anúncio de uma pós-graduação em História, Política e Sociedade na UCP que nos tornaria um “especialista”. E fiz vestibular para História na Unirio. Fui estudando, fazendo a conta e pensei: se não for reprovado em nenhuma matéria, pego o diploma com 67 anos e… quem sabe?

Bem, na ultima quarta-feira, realizei meu sonho: dei no Colégio Walter Francklin, em Três Rios, para meus amigos acolhidos no CapsAd, aos 64 anos, 9 meses e 1 dia, minha primeira aula de História do Brasil. Era sobre o descobrimento, mas o que descobri mesmo foi que para alcançar um novo mundo ainda neste mundo não basta apenas imaginar o que há após o Cabo da Boa Esperança. Temos que alçar nossas caravelas da vontade, singrar os mares com a força da determinação, com qualquer idade, e alcançar o país que habita dentre dos nossos sonhos. Se for no Brasil, e nesta encarnação, podemos até colaborar em sala de aula para que alcance, de verdade, a sua independência.

A TARDE EM QUE RIVA SENTOU NO BANCO

por Zé Roberto Padilha


Riva e Zé Roberto no banco de reservas

Tinha mesmo que estudar História. No mínimo, para agradecer. Ela sempre foi gentil comigo ao conceder-me um lugar privilegiado na trajetória do futebol-arte há algumas décadas praticado no país. Com a 11 coadjuvante, então, com os olhares das arquibancadas e das cabines voltados à genialidade dos camisas 10 que nos cercavam, pude perceber um espetáculo que poucos viram de perto. Algum estudioso do nosso universo esportivo, com pós na UFRJ, mestrado na PUC, poderia afirmar que Roberto Rivellino, no auge da sua forma, capitão da máquina tricolor, sentou uma tarde no banco de reservas?

Pois é, não só vi esta incoerência da bola, como sentei ao seu lado nesta tarde e tratei de pedir a um fotógrafo que registrasse. Muita gente poderia não acreditar. Aproveitei aquela cena inusitada, cortei um pedaço do cadarço da chuteira para imitar o seu bigode, já que dar o elástico e chutar daquele jeito há muito já havia desistido. O treinador autor da proeza? Jair da Rosa Pinto, o Jajá, que os cronistas esportivos afirmam ter sido um dos melhores jogadores de todos os tempos. 


Jair da Rosa Pinto

Naquela época, ser um ex-jogador de futebol como ele o credenciava a iniciar uma nova carreira esportiva. Ainda não havia a patrulha corporativa do CREF exigindo uma formação teórica que acabou afastando das divisões de base treinadores que formaram gerações de campeões, como Pinheiro, Neca, Célio de Souza, Andrade, Gilson Gênio e Rubens Galaxe. A discussão é para dias de debates, simpósios, mas se as preleções de Carlos Alberto Parreira e do Coutinho eram escutadas no mais absoluto respeito, com overlaping de um lado, concordâncias verbais do outro, bastava um deles colocar as chuteiras e participar dos dois toques que as risadas ocorriam a cada canelada. Ao contrário, as discordâncias gramaticais de Jair da Rosa Pinto desapareciam, transformavam ironias em admiração quando atuava entre nós. Um domínio absoluto da bola e nenhum passe errado. E ainda profetizava: “Façam o que eu faço, não o que eu digo!”.

Bem, entre um treinador teórico como Paulo Emílio, campeão da Taça Guanabara, e um gênio da bola, Didi Folha-Seca, que iria nos dirigir no Campeonato Brasileiro de 75, a Máquina Tricolor um breve período ficou sob o comando do Jajá. E logo no primeiro compromisso fora de casa, Sampaio Corrêa x Fluminense, no Maranhão, ele fez o que nem Zagallo ousou: colocou Roberto Rivellino no banco de reservas. Procurado pelos repórteres, justificou: “Estou testando uma nova formação tática!” 


Francisco Horta (Foto: Reprodução SportTV)

O resultado? 1×1. Após a partida, nosso supervisor, Domingos Bosco, comunicou o ocorrido ao Presidente Horta, que ficara no Rio de Janeiro. Irritado, o eterno presidente tricolor nem deixou quicar do outro lado da linha: “Demita este Jajá daí mesmo!”. Jair da Rosa Pinto nem desembarcou no Galeão, seguiu sua vida ocupando seu merecido lugar na história do nosso futebol, e quando os repórteres procuraram o presidente na ocasião ele justificou a sua demissão: “É para testar uma nova comissão técnica!”. Quanto a Rivellino, limitou-se a sorrir ao meu lado. Sua genialidade estava acima dos testes submetidos pela incoerência humana.

QUE PAIXÃO É ESTA?

por Zé Roberto Padilha


Um Whisky antes, um cigarrinho depois. Esta era a receita do cinema brasileiro da década de 70, de Roberto e Reginaldo Farias, para se alcançar uma paixão que se colocava no meio do filme. A música era a Bossa Nova e a garota a ser conquistada era a de Ipanema. A outra paixão, o futebol, aparecia antes na tela como aperitivo. Era o Canal 100, de Carlos Niemeyer, e as jogadas, cadenciadas e esculpidas, pareciam passar em câmera lenta para acompanhar a trilha sonora. De repente….

O dá-lhe Ô, O dá-lhe Ô!! O dá-lhe Ô, O dá-lhe Ô!!

De repente, este grito se tornou mais forte por toda a cidade de Três Rios. Bares adotaram as cores rubro-negras, embaixadas foram inauguradas e vários ônibus partiram antes das 17h para o Maracanã em meio a uma enorme euforia. O filme que passava naquela quarta-feira tinha Flamengo antes, durante e depois. E eu me perguntava: de onde veio esta súbita comoção? Do gramado para a sociedade impossível, porque o nível técnico por lá emanado despencou. Seu craque maior, Diego, saiu do Brasil quando a 8 lhe cabia e, tal como Nenê, recebeu a camisa 10 na volta para reger músicos à altura da sua batuta. E se não veio do gramado, de onde eclodiu esta paixão?


O dá-lhe Ô, O dá-lhe Ô!! O dá-lhe Ô, O dá-lhe Ô!!

O torcedor ganhou com a Internet uma poderosa ferramenta de confronto, não de interação social. Facebook e WhatsApp têm colocado fogo alto nos debates políticos e esportivos, e jogado banho maria sobre postagens ao amor e ao idealismo. Se enviam mensagens à mulher amada poucos compartilham, mas se sacaneiam um tricolor, debocham de um vascaíno, alcançam milhares de seguidores. Sendo assim, no lugar da camisa Lacoste, da calça jeans da Fórum e uma pitada no pescoço de Azarro, o traje da conquista foi substituído pela camisa do Flamengo sobre uma calça ou bermuda surrada. A namorada? Que espere o resultado depois.

O dá-lhe Ô, O dá-lhe Ô!! O dá-lhe Ô, O dá-lhe Ô!!

Sou saudoso. E não saudosista. Como tricolor carrego um enorme orgulho de ter defendido um ano esta nação. Mesmo assim, tenho o direito de sonhar que no CD do carro do meu filho vá tocar Tom Jobim. Que seja poupado da musica da Anitta, não da presença da morena ao lado, mas que ouça um dia Chico Buarque de Hollanda. E que numa quarta-feira à noite da Libertadores da paixão, leve minha futura nora para jantar à luz de velas, e esquecer, nem que seja por uma partida, refletores midiáticos que transformaram Trauco em Junior, Rômulo em Adílio e Diego em Zico.