por André Felipe de Lima
Os cartolas do Fluminense definitivamente não sabiam o que estavam fazendo naquele longínquo ano de 1979. Nenhum torcedor, em sã consciência, aceitou a cessão, por empréstimo, de um garoto baixinho chamado Arturzinho por módicos 800 mil cruzeiros ao Operário, de Mato Grosso. O rapaz jogava o fino, mas, mesmo assim, cederam o seu passe por uma quantia considerada na época comum a um perna de pau, o que, convenhamos, não era o caso do jovem Artur, sobretudo para quem o viu jogar. O ex-goleiro Carlos Castilho, maior ídolo da história do Fluminense, que dirigiu Arturzinho no Operário, assim o definia: “Ele é muito talentoso, sabe colocar-se em campo e desequilibra qualquer jogo com seus dribles curtos.”
Seu futebol de passes precisos e, claro, muitos gols começou a chamar a atenção quando defendeu o clube mato-grossense. Em setembro de 1979, o Operário tido como imbatível no estado tinha como treinador Castilho, que, por sua vez, depositava toda fé no brilhante Arturzinho, um jovem e confiante craque que acreditava em um futuro promissor. “Cheguei disposto a vencer. Sempre reserva no Fluminense, jurei a mim mesmo que aqui mostraria o meu futebol. Mostrei. No Brasileiro, vou dar tudo. Quero voltar ao Rio um dia, mais respeitado e com meu lugar garantido no Fluminense. Com ajuda do seu Castilho e do Operário, vou conseguir.” E conseguiu. Anos depois, defendendo o Bangu, entraria para a história do clube, como um dos maiores ídolos de todos os tempos, no mesmo patamar de Domingos da Guia e de Zizinho.
Artur dos Santos Lima é o que se pode definir como um verdadeiro cigano do futebol brasileiro, mas, acima de tudo, um genuíno cobra. Nasceu no Rio de Janeiro, no dia 13 de maio de 1956, e começou a jogar bola no futebol de salão do São Cristóvão. O caminho seria, contudo, árduo. Tentou cinco vezes passar por uma peneira no Bangu, comandada pelo ex-treinador Mendonça, zagueiro do Alvirrubro na década de 1950 e pai de outro craque dos anos de 1980: o também Mendonça, ídolo botafoguense.
Arturzinho jogou apenas 20 minutos e até agradou, mas foi dispensado. Com inabalável ânimo, arriscou a sorte na Portuguesa da Ilha do Governador, permanecendo no teste durante cinco minutos. O bastante para ouvir o seguinte de um cartola, cujo nome ignorava: “Você aí, magricela: pode sair. E não precisa voltar.”
Desistir, nunca. Afinal, Arturzinho era filho de Amaro Pio de Lima, de quem herdou a paixão pelo futebol.
O velho motorista de caminhão reservava as manhãs de domingos para o culto à boa e velha “pelada”, ora vestindo a surrada camisa do Independente, ora a do Aliança, dois clubes tradicionais do bairro do Caju, na zona portuária do Rio de Janeiro. Exatamente naquela região da cidade é que Artur, garoto obediente e estudioso, deliciava-se com o seu único brinquedo: uma bola.
Dona Anita, mãe do garoto, costumava frisar que o velho Amaro encantava-se com o futebol de Arturzinho, que dividia a atenção dos zelosos pais com os irmãos Almir, ex-ponta-esquerda do Campo Grande, do Vasco, com passagem pelo futebol equatoriano, e o caçula Alair, um rubro-negro convicto, igualmente à mãe.
O que, talvez, Amaro não percebesse é que Arturzinho estava longe de ser igual ao ex-zagueiro Pavão, um jogador viril, que defendeu o Flamengo nos anos de 1950 e com quem Amaro insistia comparar o filho bom de bola. Pavão era o ídolo de Amaro, mas Arturzinho era fã mesmo de outro rubro-negro, esse, ídolo incontestável do Flamengo: Dida.
Arturzinho sentia-se o Dida. Em cada pelada disputada nas ruas do Caju jogando pelo Redentor, time organizado pelo velho Amaro, o menino ensaiava um drible do Dida. Acreditava, piamente, ser o Dida.
Foi nessa época que Nestor, vizinho da família Lima, bateu um papo com seu Amaro e conseguiu dele a autorização para levar Arturzinho para um treino no futebol de salão do São Cristóvão. Amaro não se opôs e o clube conquistou um novo craque das quadras.
Adílio, ídolo rubro-negro e que também começou no futebol de salão, recordou os tempos em que o time infanto-juvenil do Flamengo enfrentava Arturzinho e o time de quadra do São Cristóvão: “Ninguém o chamava pelo nome. Ele era o Motorzinho, um endiabrado.”
Em 1975, já morando no bairro de Senador Camará, no subúrbio carioca, Arturzinho decidiu que faria voos mais altos. Fez teste para o time juvenil do Fluminense. Passou, com a aprovação do ex-zagueiro Pinheiro, ídolo do clube nos anos de 1950, que se encantara com os dribles curtos daquele menino.
A rotina era pauleira. Diariamente, acordava às 5h30 e embarcava em um trem lotado até a estação da Central do Brasil. Antes de pegar um ônibus rumo ao estádio das Laranjeiras, fazia de um pastel e um caldo de cana seu indefectível café da manhã. Indo e voltando para casa, gastava quatro horas diárias somente com o transporte. Igualmente a alguns meninos que amam jogar bola, seu desejo, como contou ao repórter Hideki Takizawa, era singular: concluir os estudos, fazer sucesso como jogador e comprar uma casa para os pais.
Devagar, se vai ao longe. O primeiro técnico a escalá-lo entre os cobras da Máquina Tricolor foi Mário Travaglini, em 1976. Com os meias Pintinho e Paulo César Caju machucados, o treinador decidiu dar uma chance ao rapaz, no jogo contra o Americano. E não se arrependeu. Foram de Arturzinho os passes para os gols de Gil e Doval na vitória de 2 a 0. Saiu de campo consagrado.
Em 1977, assinou o primeiro contrato, com um clube que mantinha craques, como Rivelino e Cléber, na mesma posição do então menino Artur, que se conformava com a reserva. No ano seguinte, o salário melhorou, saltando de 10 mil para 15 mil cruzeiros mensais. O dinheiro o ajudou a comprar uma Kombi para o pai trabalhar.
ADEUS, FLU… VIVA O REI ARTUR!
Arturzinho, quando entrava em campo, era um assombro. Mesmo assim, entrando e saindo treinador, nada de chance concreta para firmá-lo no time titular do Fluminense. Deu um basta. Chamou o então técnico Zé Duarte para uma conversa reservada e pediu que o dispensasse do clube. Pedido aceito, arrumou as malas e seguiu para o Operário, de Mato Grosso. No período em que lá esteve, sentiu uma de suas maiores dores na vida: a morte do pai, em 1980, dois dias antes do Natal.
O baixinho Arturzinho, que mede 1,62m de altura e foi campeão com o Operário, marcando gols decisivos e inserindo o clube entre os cinco melhores colocados do campeonato nacional de 1979, tão cedo não voltaria ao Fluminense, como almejava. Seu destino estava reservado a ser ídolo, mas de outros clubes. Destacar-se-ia primeiramente no Bangu, onde seria tratado como rei, e, logo depois, no Vasco.
Chegou ao clube de Moça Bonita em 1982, após tornar-se herói do Operário e com uma passagem relâmpago pelo Internacional, de Porto Alegre.
A estada no Sul foi, no entanto, complicada. O clima frio fez com que Arturzinho embarcasse a esposa Vera Lúcia, sempre doente, de volta para o Rio de Janeiro antes do término do contrato do jogador com o clube gaúcho. Do Inter, onde disputou pouco mais de 10 jogos, sem marcar gols, Arturzinho regressou ao Operário, após ter o passe trocado pelo do jogador Washington.
Mas foi no Bangu que conheceu a glória. Glória de rei. De Rei Artur.
Tornou-se ídolo incontestável no Alvirrubro suburbano, conduzindo o Bangu às finais do campeonato estadual em 1983, sempre reverenciado pela crônica esportiva carioca como o melhor jogador do torneio, rodada após rodada. É o sétimo maior artilheiro da história do Bangu, com 93 gols.
Suas atuações, sobretudo contra o poderoso Flamengo dos anos de 1980, são consideradas inquestionáveis antologias nas páginas da história do Bangu.
Em um jogo memorável, realizado no feriado de 7 de setembro de 1983, o Bangu goleou, por 6 a 2, no Maracanã, o time que contava, entre outros, com Leandro, Júnior, Marinho, Adílio e Mozer. Arturzinho esteve fenomenal. Marcou quatro gols no goleiro Abelha e entrou, definitivamente, no rol dos maiores ídolos da história do clube. Com inteira e irrevogável justiça.
Ainda nos tempos de Bangu, o religioso Arturzinho mostrou um louvável perfil humanitário ao comandar o grupo de jogadores que decidiu, em 1983, doar 10% dos “bichos” ganhos após os jogos para a creche das presidiárias da penitenciária Talavera Bruce, em Bangu.
Em 1984, ficara difícil para Castor de Andrade mantê-lo em Moça Bonita. Antônio Soares Calçada, presidente do Vasco, botou na mesa 400 milhões de cruzeiros pelo passe de Arturzinho, que formou com Roberto Dinamite e Mauricinho um excelente ataque durante o campeonato brasileiro de 84, que só tombaria diante do Fluminense, de Romerito, Branco, Assis e Washington, na decisão do torneio.
Pelo cruz-maltino, também fez partidas memoráveis naquele campeonato nacional. Uma delas, contra o Tuna Lusa, quando marcou quatro dos nove gols da goleada de 9 a 0. E o mais impressionante: estava com o tornozelo bastante inchado. Após o apito final do juiz, a torcida invadiu o campo para carregá-lo, triunfante, pelo gramado de São Januário. O craque já se acostumara à apoteoses do gênero.
No mesmo ano, Arturzinho seguiu para o Corinthians, que pagou 380 milhões de cruzeiros pelo passe do craque.
O jogador ajudou a levar o time paulista à final do campeonato paulista, mas perdeu o troféu para o Santos. Foi uma passagem apenas razoável pelo Timão.
Regressou ao Bangu, em 1985, quando o clube alvirrubro acabara de perder a final do campeonato brasileiro para o Coritiba. Arturzinho era a esperança do Bangu para o fim do jejum de títulos. A principal meta foi conquistar o tão ambicionado campeonato carioca, entalado na garganta dos banguenses desde 1983, mas, novamente, o Bangu se deu mal, e Arturzinho acabou perdendo espaço no clube.
O caldo entornou de vez com a péssima campanha do time na Taça Libertadores da América, em 1986, com o craque veementemente criticado pela torcida e cartolas. Desprestigiado, Arturzinho foi emprestado ao Botafogo, no segundo semestre de 86. Tempos difíceis aqueles. O dinheiro escasseou e, para manter, a família e os filhos, Arturzinho cortou um dobrado. As portas de muitos clubes estavam fechadas. Exceto uma.
O Bangu era a sua casa. Ali, em Moça Bonita, mesmo com a má fase entre 85 e 86, sentia-se à vontade. Todos no clube, especialmente o misto de cartola e banqueiro do jogo do bicho, Castor de Andrade, decidiram dar uma nova [e merecida] chance ao ídolo.
Com tanto carinho, Arturzinho decidiu, no começo de 1987, que poderia dar a volta por cima no clube suburbano. Mas não foi tão fácil assim. Pelo menos, no primeiro semestre daquele ano. O tratamento era o mesmo do ano anterior, com Arturzinho sendo marginalizado e ficando cinco meses fora do time, proibido até de treinar com os companheiros.
A sorte só mudaria com a chegada do técnico Pinheiro, o mesmo que o revelara no juvenil do Fluminense, em 1975, e que insistiu para que o Bangu renovasse o contrato de Arturzinho. Em apenas cinco jogos, o craque mostrou-se indispensável ao time. “Por ser tão querido, nunca pensei que sofreria tanto em Moça Bonita.”
O que Arturzinho talvez não percebesse é que há situações que somente os “reis” podem suportar.
Seu futebol de rei da bola para que o Bangu chegasse à final da Taça Rio, em junho de 1987, derrotando o Botafogo por 3 a 1, com dois gols do próprio Arturzinho. “Eu precisava dessa conquista”, disse o craque ao repórter Milton Costa Carvalho, quando estava de joelhos, no vestiário, diante de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, agradecendo à santa pelo título conquistado.
Arturzinho vinha sendo questionado pelo fato de ser ídolo, mas sem comparecer com gols nas decisões pelo Bangu. Se o problema era esse, redimiu-se e calou a boca dos críticos. O rei recuperara, enfim, o trono.
Após sua grande jornada no Bangu, peregrinou por diversos clubes no Brasil [Botafogo, Fortaleza, Paysandu e Itinga da Bahia] até retornar à Moça Bonita, em 1991, mas por pouco tempo. Logo seria negociado com o Vitória, da Bahia, onde estreou no dia 18 de março de 1992. No clube baiano, foi considerado o cérebro do time campeão estadual de 1992. O título foi pouco para Arturzinho, que também conquistou a artilharia da competição, com 24 gols. Pelo Vitória, Arturzinho entrou em campo 83 vezes e marcou 52 gols.
Um craque do porte dele, merecia vestir, com muita frequência, a camisa da seleção brasileira. Mas isso aconteceu apenas uma vez, no dia 21 de junho de 1984, em Curitiba, durante um amistoso contra o Uruguai. O Brasil derrotou a “Celeste Olímpica” por 1 a 0, com um gol de Arturzinho. A única reminiscência de um dos melhores jogadores de sua época com o manto canarinho.
A história de Arturzinho nos campos de futebol é uma síntese de amor ao esporte e de superação de desafios. Foram várias vezes em que o Arturzinho “rei” perdera a coroa, sendo, às vezes, tratado injustamente com desprezo por seus antigos “súditos”.
O ponto final da maravilhosa carreira de Arturzinho como jogador de futebol aconteceu no Olaria, em 1996. Hoje, o ídolo da torcida do Bangu é técnico. Uma trajetória iniciada no Vitória, um ano após pendurar as chuteiras.
E a estreia foi alvissareira. De cara, sagrou-se campeão baiano e da 1ª Copa do Nordeste, em 1997. À frente do América de Natal, em 1998, seria novamente campeão da Copa do Nordeste. O nome do treinador Arturzinho passou a figurar como um dos principais do futebol no nordestino. Em 2000, retornou ao Vitória para ser novamente campeão baiano. Estava consolidada a nova trajetória na vida de Artur dos Santos Lima, o inesquecível “rei” Artur… do “reino” de Moça Bonita.
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Foto: Reprodução da revista Placar/ Abril, assinada por Ignácio Ferreira