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Flamengo

O MAIOR GRITO DE GOL DA HISTÓRIA

por Leandro Ginane


Terça à noite era o dia da pelada dos moleques. Jogavam em um campinho na Piedade, cinco na linha, um no gol. Ficava ali perto do Rei do Bacalhau. Campo de terra preta salpicada com uma espécie de purpurina cor de prata que pendia nas pernas dos garotos mesmo depois do escovão no banho. 

Se reuniam na pracinha quatro horas antes da pelada começar e ficavam ali jogando conversa fora até a hora de ir para o campo. Ritual que se repetia toda semana. Mas aquela terça foi diferente. Havia dois dias de um dos mais memoráveis Fla x Flus da história. Aquele do gol de barriga do Renato Gaúcho no finzinho do jogo. Esse mesmo, que ficaria marcado na memória daqueles moleques para sempre. Não pelo jogo em si, mas pela astúcia do João, tricolor mais chato da rua.

João presenciou no Maraca o gol épico marcado pelo craque tricolor. O detalhe é que em segredo, tinha deixado o jogo sendo gravado em fita cassete. Naquela época, as partidas eram transmitidas pela rádio Globo AM com narração do José Carlos Araújo, o Garotinho.

No dia seguinte, de alguma forma engenhosa, João conseguiu editar apenas o trecho da narração que descreve a hecatombe que estava prestes a acontecer no Maracanã. 

A partir daí, todos os dias religiosamente com início naquela terça dia 27 de junho de 1995, e durante os seis meses seguintes, ele repetiria a narração do Gol no mesmo horário, com o maior volume possível numa caixa de som presa entre a janela e a parede do prédio em que morava no primeiro andar. 

João obrigou velhos, crianças, bebês e todos os seus vizinhos a ouvirem no mínimo cento e oitenta vezes a mesma narração. Isto sem contar as vezes em que ele colocava a fita em loop com o grito do gol de barriga do Renato. Dizem até que ele é o responsável pelo surgimento de uma nova geração de tricolores nascidos nos meados da década de noventa ali pela região.

Fato é que esse som ficaria marcado na memória dos moleques da praça uma vida inteira, inclusive na minha, rubro-negro roxo, que hoje escrevo essas palavras 25 anos depois com a voz do José Carlos Araújo na cabeça.

FUTEBOL EM FAVOR DE QUEM?

por Marcelo Mendez


O dia amanhece em Santo André.

O sol de inverno que é quase quente, ilumina uma manhã em que as coisas da periferia apontam para um dia que seria quase normal se não fosse por uma razão secular que marcará a história de nossa geração; Temos uma pandemia alimentada pelo coronavírus batendo a nossa porta.

Está, portanto, proibido todo afeto que se possa ter. Você que está me lendo não pode mais abraçar seu amigo, quando o ver, não deve apertar sua mão, seu sorriso não poderá ilustrar a manhã de sol, porque agora é necessário usar uma máscara e tudo que se tinha como comum está em suspensão. Todavia, como já é sabido pelas Gentes do Brasil, teremos futebol no Rio de Janeiro.

Sim, caro leitor. Não terá Olimpíada, Eurocopa, Copa América, Champions League, NBA, mas o mundo em pandemia precisa mesmo de um Flamengo x Bangu para chamar de seu!

O futebol ser usado como propaganda de Governos populistas para encobrir fatos, para divulgação de práticas eleitoreiras não é uma novidade. A história está recheada de momentos em que as máquinas públicas voltaram seus esforços para tal fim. Muitas são as maneiras para se maquiar e se fazer isso. A diferença cabal é que agora não se maquia nada, tudo é as claras, na larga, sem pudor ou discernimento algum.

A diretoria do Flamengo, em acordo com a Federação Carioca de futebol, mais os protocolos (Termo cada vez mais insuportável e hipócrita de se ler) chegaram a conclusão de que sim, em detrimento aos milhares de mortos diários no Brasil, o mundo precisa ter um Flamengo x Bangu no Maracanã vazio em suas arquibancadas, tendo como vizinho, um hospital de campanha em que pessoas lutam pela vida, contra o Covid. A história se repete em forma de perguntas:

Qual é a razão para ter esse jogo agora? Com que animação serão comemorados os gols? Com quem? Para quem? Os artilheiros baterão cotovelos e calcanhares para respeitar as normas da OMS do distanciamento social? E vai mudar o que na nossa realidade, ou mesmo no futebol?

Caro leitor do Museu da Pelada, essas perguntas que faço foram respondidas em malabarismos intelectuais vergonhosos nos últimos dias. O Absurdo para justificar o inargumentável. Uma lástima. Se você que me lê aqui tentar responder dessa forma, vou respeitar o que pensas mas vou lamentar muito. Porque algumas coisas não tem respostas práticas ou instantâneas como esses pacotinhos de macarrão ruim. O tempo e a calma são necessários para formação de um discernimento e de um bom senso para que se entenda o que o momento histórico pede de nós

Decerto que não é de gols que estamos precisando.

ATACAR OU DEFENDER: EIS A QUESTÃO

por Marcos Vinicius Cabral


O esperado aconteceu: o time de Jorge Jesus venceu o Al Hilal e o de Jürgen Klopp o Monterrey.

É Flamengo contra Liverpool ou Liverpool contra Flamengo, como queiram, vão 38 anos depois, se enfrentar.

Não tem como negar o favoritismo dos Reds da terra de Lennon, McCartney, Harrison e Starr.

Para quem encantou até aqui, jogando em cima dos adversários, agredindo o oponente, marcando no campo rival, o recuo agora para uma retranca não seria nenhum acovardamento.

Não seria nenhum tiro no pé.

Ou seria?

Pelo contrário, é uma boa estratégia de guerra (como deve ser encarado esses 90 minutos) que não pode ser descartada.

Dos países que guerrearam na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria e Itália) e a Tríplice Entente (França, Inglaterra e Rússia), mudaram suas estratégias e planos de ataque de acordo com o adversário.

Portanto, sem um bom plano para derrotar o poder bélico de Van Dijk, Salah, Mané e Firmino, suicídio será se o Flamengo se lançar à frente, como fez no Brasileiro e Libertadores.


E se o fizer, oferecerá o espaço que o time mexicano do Monterrey, por exemplo, não deu numa das semifinais.

Assim como uma goleada não será nenhuma surpresa e desta vez, eles nos colocariam na roda.

Não me deixando cair nessa armadilha – a retranca – acho que não será essa tática adotada por Jesus.

Não, mil vezes não!

Por mais absurda que seja, às vezes, uma mudança de atitude nos permitiria a chance real e imediata de levar a taça do mundo para o Centro do Rio de Janeiro na avenida Presidente Vargas e ser exibida em cima do carro do Corpo de Bombeiros, sendo acompanhado pela procissão rubronegriana.

Mas para isso, ao meu ver, Jesus se inspiraria à moda de seu conterrâneo estrategista José Mourinho, pararia seu ônibus escolar à frente ao colégio e com as portas trancadas, todo fechado, esperaria o avanço dos meninos do Liverpool para tentar entrar nesse bloqueio e ir embora para casa.

Aliás, se Bruno Henrique e Cia. fizerem o que seus reservas com um a menos fizeram contra o Grêmio, em Porto Alegre, no returno do Brasileiro, em que venceu por 1 a 0, já está de bom tamanho.

E mais. Para a reedição deste confronto histórico, não hesitaria em colocar o polivalente Arão respirando o ar de Mané e o habilidoso Gérson aparando a vasta cabeleira de Salah, sacando como isso a avenida Filipe Luís para entrada de Renê.


Vale o sacrifício para anular os camisas 10 e 11 deles, considerados dois foras de série.

Com Rodrigo Caio e Pablo Marí fechados lá atrás, usaria a força e habilidade de Bruno Henrique para matar o jogo em contra-ataques fulminantes, produzidos pelo craque uruguaio Arrascaeta.

O treinador do Flamengo disse ser esse o jogo mais importante de toda a sua carreira como técnico, mas esqueceu de frisar que travará um embate maior ainda no seu interior, com o seu EU.

O que sobressairá dentro de si deste Flamengo versão 2019?

A teimosia, em continuar persistindo com mesmo jeito de jogar ou reconhecer a superioridade dos Reds, recuando e se fechando?

Ademais, ganhando ou perdendo, sendo ou não bicampeão, chegar até aqui foi resultado de trabalho, preparação e muita, mas muita humildade deste elenco que abriu mão de muita coisa para obedecer taticamente um Jesus, que realizou 38 anos depois o milagre de pôr o Flamengo nesta final.

“E EU VOS DECLARO CAMPEÕES DA LIBERTADORES”

por João Carlos Pedroso


Tive 12 anos de novo no sábado, 23. E fé, do jeito que só uma criança pode ter. O destino quis que passasse todo o tempo de um dos jogos mais importantes da história do Flamengo em um casamento na Bahia, marcado cruelmente para praticamente a mesma hora, num lindo cenário à beira mar, mas sem televisões e com sérias restrições de postura e comportamento – isso mesmo o noivo sendo um rubro-negro apaixonado mas em momento de mostrar maturidade e compromisso com outro amor, ao contrário dos outros 40 milhões de companheiros de sofrimento. Entre eles, eu!

Cheguei puro linho, calça e camisa – o manto sagrado, estilo vintage (década de 70, o 8 de Geraldo Assoviador às costas) guardado numa sacola. Uma rápida sondagem mostrava celulares potentes captando transmissões piratas de Flamengo x River Plate. Vimos os times entrarem em campo (Gabigol bolinando a taça, safado) os times se perfilando… mas aí todas se perderam, sinal cortado, coração partido.

Era nossa hora de se perfilar, para ver a noiva entrar em campo. O noivo à espera num arranjo que parecia um gol – juro, não é delírio, ele no meio daquilo esperando, eu com um olho nele e outro no celular, acompanhando tempo real… Até que apareceu Flamengo 0 x 1 River no alerta do telefone.

Olhei para trás e meus companheiros de torcida encaravam estarrecidos para um tablet que resistia bravamente transmitindo o jogo – com delay. Me recusei a ver, dispensei um fone de ouvido oferecido, me concentrei na cerimônia. Chorei um pouco, misturando emoção e medo, talvez. Mas as porcentagens maiores eram de emoção e empatia: bonito ver um noivo com cara de bobão recebendo a mulher de sua vida. Mas angústia estava lá.

Amigo casado, hora de festa. Flamengo começou o segundo tempo um pouco melhor. O tablet resistia numa mesa e me e recusava a acompanhar por ele, queria estar junto, torcer com delay era vibrar pelo que já aconteceu, energia desperdiçada. Queria jogar junto, carai!

Peguei meu celular, fui para o YouTube e botei na Tupi. A câmera fica no Garotinho e no Apolinho, não tem imagem de jogo, mas é “ao vivo”. Rejeitei definitivamente o tablet. Voltei aos 12 anos, radinho colado no ouvido, com rápidas pausas para checar o semblante cada vez mais preocupado de Washington Rodrigues, o jornalista que rompeu a quarta parede ao ser técnico de seu clube de coração e o decoro ao mergulhar na banheira do vestiário numa comemoração.

O tempo passava e o coração apertado. Estava numa festa, gente e música, muita comida – e alguns torcedores descarados reunidos diante do tablet marcha lenta. Eu já era um pária naquele evento, mas consegui me isolar ainda mais: quando faltavam uns dez minutos para o fim do jogo, me escondi atrás de uma estátua de papagaio (o lugar da festa se chamava “Barraca do Lôro”) e entrei em outra dimensão, a dos meus 12 anos, em 1974, o ano em que mais torci por futebol na vida – o ano do primeiro estadual conquistado na era Zico (ele entrava no time desde 71, mas…) já com Júnior, na época na lateral direita. 

Eu regredi, sim. Mas na verdade ia e voltava no tempo, conforme a necessidade apertava. E abraçava todos os credos. Rezei forma convencional, criei algumas orações originais naqueles poucos minutos. Lembrei do meu pai, zagueiro do Flamengo e que me passou tanto amor, pela vida e pelo clube. E do meu filho, hoje um homem de 22 anos e que no título de 2009 “batia” escanteios da arquibancada (ainda) nos jogos mais difíceis. Rezei para os dois, também.

E então aconteceu. No meio da narração confusa e picada, quando já estava quase em lágrimas (“isso não vai ser assim, não pode ser assim”) José Carlos Araújo gritou “goooooooooooooooool do Flamengo”. Surtei, saindo do meu esconderijo aos pulos e esgotando todo os palavrões acumulados em anos de vida pacata e ordeira, para espanto da incrédula turma do tablet, que só “viu” minha profecia mais de 20s depois. Peguei a camisa do Fla da bolsa e coloquei nas costas.


Eu quase foquei de vez na prorrogação, em parte satisfeito e totalmente exausto, já de volta ao meu esconderijo.  Mas aí, quando tirei o telefone do ouvido para respirar um pouco, vi o Garotinho se esgoelando e Apolinho COLOCANDO A FAIXA! Gol de novo, milagre realizado e eu novamente sabendo antes de todo o mundo.

Mesmo escaldados, meus colegas de sofrimento voltaram a não acreditar na minha euforia solitária e só vibraram quando a tola objetividade das imagens garantiu que era fato. Eu arranquei do corpo o linho branco e vesti o manto. Campeão. Como se fosse pela primeira vez…

Ps: Só soube que os gols eram do Gabriel um bom tempo depois. Até porque requisito coautoria neles.
Ps1: O noivo vibrou como um louco, tirando dos ombros a “culpa” de trocar o Flamengo pela mãe de seus futuros filhos. A noiva agradeceu que o Flamengo esperasse o fim da cerimônia para marcar seus gols.
Ps2: Sempre fui medium, só nunca desenvolvi, segundo minha mãe.

Ps3: Obrigado, Raoni e Carol (os noivos), pela experiência única e inesquecível.
 

REDENÇÃO POPULAR

por Leandro Ginane


Há séculos a baixa auto estima do brasileiro é uma característica que acompanha a grande maioria da população. Desde a colonização portuguesa, que passa pelo genocídio indígena e o fato de o Brasil ter sido o último país na América do Sul a decretar o fim da escravatura, o Brasil carrega consigo as consequências decorrentes da repressão dos colonizadores sobre os povos mais pobres.

Curiosamente, o football criado na Inglaterra como um esporte restrito à elite, trouxe para o brasileiro um frescor de auto-estima, principalmente nas periferias que passaram a usar o futebol como objeto de projeção social, além de servir como um caminho para desaguar as durezas da vida.

A projeção social proporcionada pelo futebol que contribui com a auto-estima do povo sofreu duros golpes ao longo dos anos, a começar pela final perdida em casa para o Uruguai em 1950 por dois a um. De lá pra cá, o Brasil se estabeleceu como o país do futebol, ganhou três copas do mundo, teve Pelé reconhecido como melhor jogador de todos os tempos e seus jogadores ficaram famosos pelo gingado e o improviso, a malemolência típica da capoeira e dos terreiros do samba. Mas em 82, com uma seleção que encantava o mundo, o Brasil sofreu uma das suas piores derrotas, a derrota na final para a Itália de Paolo Rossi.

Foram vinte e quatro anos sem uma conquista de Copa do Mundo, que veio apenas em 94 com um time que herdou muito pouco da lendária história do estilo brasileiro, trazia com ela apenas os talentos individuais de seus jogadores, em especial Bebeto e Romário. Esse título, tão aguardado por mais de duas décadas que chegava no ano em que Senna morreu, mostrou para o mundo que era possível vencer sem jogar bem. Em 2002, com mais um título nas mãos, a seleção se tornou a única pentacampeã do mundo. Novamente dependendo de talentos individuais, mas havia então uma confiança brasileira que era aliada a um momento de prosperidade e maior igualdade social.

Essas conquistas baseadas em táticas defensivas promoveu uma profunda e lenta transformação no estilo de jogo brasileiro. Técnicos antiquados e jogadores truculentos se destacaram, enquanto o futebol europeu se desenvolvia, até a mais terrível derrota do futebol brasileiro em 2014, em casa, por 7 a 1, para a Alemanha. Esse vexame expôs a fragilidade de um modelo de jogo ultrapassado.

Em 2019, onde a seleção já amarga 17 anos sem ganhar uma Copa do Mundo e ainda insiste em modelos defensivos, surge uma manifestação popular sem precedentes justamente no momento em que o povo vive um ano trágico com a redução das políticas sociais.


Uma festa rubro-negra em comemoração ao título da Libertadores e do Campeonato Brasileiro do Flamengo conquistados no mesmo final de semana, que teve início antes do jogo decisivo, No embarque, o povo abraçou o time e o levou até o aeroporto em uma grande mobilização popular.

O que aconteceu a partir daquele instante pode ser o início do resgate da alegria e auto estima popular proporcionado pelo verdadeiro futebol brasileiro, que se torna muito mais importante que o título em si, quando observado em um contexto mais amplo.

Embalados pelo funk, o mar de amor que se formou em volta do time Mais Querido do Brasil promoveu uma festa com centenas de milhares de pessoas que hoje não conseguem mais frequentar o Maracanã devido seu alto preço. A comemoração seguiu pelas ruas do Rio de Janeiro e serviu para lavar a alma do povo e renovar a esperança em meio a tanta miséria social.

Resta saber quais serão as consequências dessa mobilização popular no cenário esportivo, social e, principalmente, na periferia e nas favelas.