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Flamengo

NEM TUDO ESTÁ PERDIDO

por Zé Roberto Padilha


Na quarta, em meio a um equilibrado Campeonato Carioca, em que Botafogo e Vasco estão mostrando que terão dificuldades em subir, e o Fluminense tentará se manter, caso não invista, eis que surge o desequilíbrio.

O outro patamar.

Se apresenta um time de futebol diferenciado. Capaz de nos lembrar da Máquina Tricolor, da Academia do Palmeiras, do Expresso Cruzmaltino, do Botafogo e Santos que eram a base das nossas maiores seleções.

Se apresenta aquele que vai buscar o título maior do futebol brasileiro e mundial.

O que o Flamengo mostrou, quarta à noite, contra o bom time do Madureira, há muito não assistíamos. Uma exibição de almanaque, onde a técnica apurada, os deslocamentos incessantes, a vontade de jogar bola aliado a um enorme entrosamento não nos deixou sequer levantar para ir a geladeira buscar uma latinha.

Bola e jogadores, apaixonados, pareciam saudosos uma dos outros e se entregaram, de corpo e alma, a 90 minutos de puro êxtase.

Mais que uma exibição, foi um sopro de esperança no desacreditado futebol brasileiro.

Espero que o Tite tenha assistido a partida. Se colocar o Daniel Alves na lateral, o Neymar no lugar do Diego e naturalizar o Arrascaeta, o maestro, basta trocar as vestes rubro-negras pela amarelinha.

Deixe, por favor, aqueles Firminos, Fernandinhos, até mesmo Jesus quietos por lá. Há muito não estão identificados com a gente. Mal falam português, não jogam ao nosso lado como Gabigol, Everton Ribeiro e Bruno Henrique.

Daí não teremos apenas uma grande seleção de volta. Daquelas que dá vontade de ir a Teresópolis assistir ao treino, colecionar figurinhas, até voltar a pedir autógrafos.

Mais do que favorita para buscar outro título mundial, teremos novamente o orgulho de ser o país que pratica, forma e exporta o melhor futebol do mundo.

Parabéns, Flamengo.

UM DOS MAIORES JOGOS DE TODOS OS TEMPOS

por Luis Filipe Chateaubriand


O dia era 20 de Janeiro de 1982, uma segunda-feira, feriado no Rio de Janeiro.

O cotejo era Flamengo x São Paulo, um embate que tinha tudo para ser sensacional!

E foi!

O São Paulo formou com: Waldir Peres; Getúlio, Oscar, Dario Pereira e Marinho Chagas; Almir, Renato e Éverton; Paulo César (Ricardo), Serginho e Mário Sérgio.

O Flamengo foi de: Raul; Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Chiquinho (Victor), Nunes e Lico.

Era o jogo de abertura do Campeonato Brasileiro, e calhou dos dois timaços estarem no mesmo grupo.

No primeiro tempo, domínio total do São Paulo.

Serginho recebe uma bola da direita, próximo, a entrada da área, dribla o marcador rubro-negro e, de frente para o gol, conclui no canto esquerdo de Raul.

São Paulo 1 x 0.

Ainda era pouco, pois o tricolor paulista dominava completamente o jogo.

Até que Renato, conhecido como “Pé Murcho”, recebe a bola na área pelo lado direito, faz um fuzuê com os vermelhos e pretos, toca por cima, já para o gol vazio, mas Serginho ainda chega para concluir.

São Paulo 2 x 0.

E assim, o Flamengo, então Campeão do Mundo, foi para o vestiário tomando um “banho de bola”.

Mas nenhum time é Campeão do Mundo à toa…

O segundo tempo começa com um Flamengo aceso, esfuziante, querendo jogo.

Rapidamente, Zico vem pela meia direita, tabela com Lico, recebe na entrada da área do lado direito e emenda para o gol.

São Paulo 2 x 1 Flamengo.

Pouco depois, Andrade pega uma bola na entrada da área e chuta rasteiro, para empatar o jogo.

São Paulo 2 x 2 Flamengo.

E, faltando cerca de dez minutos para terminar o jogo, Junior vai à esquerda da área e cruza na cabeça de Zico, que conclui para o gol.

São Paulo 2 x 3 Flamengo.

Em resumo, tivemos um time que, sendo Campeão do Mundo, foi completamente dominado no primeiro tempo, mas se mostrou presente, com brilho e competência, no segundo, mostrando porque era o melhor.

Brilhante!

Épico!

Histórico!

Quem viu aquele Flamengo jogar, viu, quem não viu, não sabe o que perdeu.

Luis Filipe Chateaubriand é Museu da Pelada!

MEU CLÁSSICO INESQUECÍVEL

A maior parte dos gloriosos 123 anos Vascaínos, foi e é vivida de perto pelo querido amigo Ulisses Lopes. Debutou no estádio em 1936 e nunca mais se afastou do clube amado.

A primeira vez que Flamengo e Vasco se enfrentaram em terra foi em 1922, e dos 411 jogos realizados até então, Seu Ulisses perdera apenas 30. Quando alguém com esse currículo diz que o maior Vasco X Flamengo em sua opinião foi o de 1949, quem sou é para discordar?

Uma noite felicíssima ao Vasco e muito triste para o Flamengo, menos pela derrota e mais pela injustiça ao super craque Jair da Rosa Pinto.

O texto que segue é carregado de amor ao Vasco e pimenta ao Mengo.  Aos torcedores do Flamengo como eu, se preparem são cenas fortes. Aos torcedores do Gigante da Colina, desfrutem! (novamente…)

por Ulisses Lopes


Time do Vasco naquele dia. Em pé: Eli, Jorge, Augusto, Danilo, Barbosa e Sampaio. Agachados: Nestor, Maneca, Ademir, Ipojucan e Mário.

1949

Vasco 5 x 2 Flamengo

“É a única desgraça que levo 

porque fui campeão de tudo.

Só faltou uma Copa do Mundo.”

Jair da Rosa Pinto 

(Falando da Copa de 50)

O Vasco é que aniversariava naquele 21 de agosto de 1949 e eu é que fui presenteado. Nos meus oitenta e tantos anos de torcedor a Cruz de Malta me proporcionou muitas alegrias, mas nunca como naquela tarde.

Não havíamos conquistado nenhum título, apenas tínhamos aplicado mais uma goleada no Flamengo. O que então acontecera de especial, se eles não nos venciam há cinco anos e o chocolate já se tornara rotina? É que, cansados de perder, a Gávea inteira se mobilizara para quebrar a escrita.

Durante toda a semana, a imprensa esportiva vestira vermelho e preto conferindo ao Flamengo a condição de favorito. A euforia era tanta que o técnico Kanela, numa entrevista, chegou a garantir que venceriam ainda no primeiro tempo. Delirava!

Time para vencer ele tinha, mas para garantir a vitória, e ainda de véspera, não. Além de Jair da Rosa Pinto, que havia levado do Vasco, Kanela contava com um grande goleiro o paraguaio Garcia, tinha o fantástico Zizinho, Jaime, Modesto Bria e o bom ponteiro Esquerdinha (meu antigo colega de colégio).


O goleiro Garcia não alcança o chute de Maneca, aos 27 do primeiro tempo. Gol do Vasco

 Assim que a bola rolou parecia que o sonho de Kanela iria se realizar. Com menos de um minuto Augusto marcou contra e nove minutos depois levamos o segundo. Logo em seguida, num lance inacreditável, Jair perdeu o que seria o terceiro gol, com o qual acreditavam matar o jogo.

 Porém, ao término do primeiro tempo o placar já apontava dois a dois e com três gols na segunda etapa, o Vasco fechou mais uma goleada. Para empulhar a torcida, diante de toda a papagaiada que haviam feito durante a semana, escolheram Jair pra Judas. Queimaram sua camisa e mandaram-no embora da Gávea.

Jair não merecia tamanha injustiça. Vencer o Vasco de 1949 era coisa admissível só na teoria. Campeão invicto naquele ano, cedeu apenas dois empates em vinte jogos. Ganhou dezoito. Marcou oitenta e quatro gols, uma média superior a quatro por partida e teve em Ademir o artilheiro do campeonato com trinta e um gols marcados.

Contra um time desses, como acreditar que aquele gol perdido na metade do primeiro tempo, se convertido, pudesse selar a sorte da partida? Quando o inglês Mc Pherson deu o apito final, o gramado foi tomado pelos torcedores e permaneceria assim por muito tempo.


O golaço de Nestor, aos 16 minutos do segundo tempo!

Foi a única vez que pisei a grama de São Januário. Mal contendo a emoção de estar ali, pus-me a esquadrinhar o campo, palmo a palmo. Revivendo um lance em cada pedacinho do gramado, insinuei-me num replay de fantasia.

 Sob uma das traves me vejo Barbosa saltando para tirar a bola do cantinho da coruja. Na entrada da área gozo com a cara do atacante Gringo, boquiaberto com o chapéu aplicado por Ipojucan. Paro no grande círculo e revivo os passes açucarados com que o Príncipe Danilo punha Maneca, Nestor e Ademir na cara do gol a todo instante.

Nem dou conta do tempo que passa. A noite desce. Apagam-se os refletores. Vôo na canção de Orestes ao ver a lua iluminando o gramado, chão das estrelas da colina histórica. Retiro-me feliz.

Banido da Gávea, Jair foi para São Paulo onde iria brilhar, conquistando nada menos que oito títulos (no Santos, Palmeiras e Seleção Brasileira). A camisa queimada na inesquecível tarde de 1949 não fez falta alguma ao bom Jajá. Nem a camisa, nem o Flamengo…


Ficha Técnica – Vasco 5 x 2 Flamengo.

Campeonato Carioca de 1949 – Primeiro Turno.

Data: 21/08/1949.

Local: São Januário.

Vasco: Barbosa; Augusto e Sampaio; Eli, Danilo e Jorge; Nestor, Maneca, Ademir, Ipojucan e Mário. Técnico: Flávio Costa.

Flamengo: Garcia; Juvenal e Job; Valdir, Bria e Jaime; Luisinho, Gringo, Zizinho, Jair e Esquerdinha. Técnico: Togo Renan Soares (o Kanela).

Árbitro: MacPherson Dundas.

Gols: Augusto (contra) 3′, Gringo 6′, Danilo 17′ e Maneca 27′ do 1º tempo; Maneca 8′, Nestor 16′ e Ipojucan 32′ do 2º tempo.

Expulsão: Esquerdinha.

CENTENÁRIO DO BIGUÁ, O PRIMEIRO ‘DEUS DA RAÇA’ RUBRO-NEGRO

Biguá foi, antes de Leandro surgir, o maior e o melhor lateral-direito da história do Flamengo. Para o craque dos anos de 1940, não havia bola perdida e sobravam fãs, como Carlito Rocha, o memorável cartola botafoguense, que um dia apertou-o contra o peito e disse: “Pena que no futebol haja poucos iguais a você”

 por André Felipe de Lima


Biguá, 100 anos de um dos maiores mitos da história do Flamengo (Acervo André Felipe de Lima)

Torcedores rubro-negros na faixa dos 40 anos cresceram vendo o zagueiro Rondinelli, o que marcou, de cabeça, o gol do título estadual de 1978 sobre o Vasco, como o “Deus da raça” do Flamengo. Mas, na década de 1940, um outro defensor rubro-negro, o ex-lateral-direito Biguá, merece a primazia sobre o apelido. Mário Rodrigues Filho[1] foi um dos que reconheceram a disposição de Biguá: “Era tido como um índio. Se não fosse o cabelo de boneca japonesa seria tomado por preto. Era baixo, atarracado, de pernas grossas, de poltrona. Mas, tocando no chão, subia feito uma bola de tênis. Quando se enfurecia parecia um daqueles indígenas dos poemas de Gonçalves Dias. Ou melhor, um apache ou sioux de fita americana, de machado em punho para escalpelar um pale face” [pele branca – referência a luta dos indígenas nos EUA]. Moacir Cordeiro — assim se chamava Biguá — nasceu em Irati, interior do Paraná no dia 22 de março de 1921. Tinha personalidade. Foi marcador implacável, mas não era técnico. Ao lado de Modesto Bria e Jaime de Almeida formou uma eficiente linha média do Flamengo dos anos de 1940. Para o extraordinário ponteiro esquerdo Félix Lostau, de La máquina do River Plate dos anos de 1940, Biguá foi o seu melhor marcador[2].

Filho de Manoel Cordeiro e de Maria Julia Cordeiro, italiana de nascimento, Biguá era o caçula de oito irmãos. O pai, Biguá perdeu quando mal completara um ano de vida, da mãe, despediu-se em 1936.[3] Tinha dois anos quando ele, com a mãe e os irmãos, mudaram-se para Curitiba. Com oito anos, ingressou na escola. Fora matriculado no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, na rua Silva Jardim. Atraíam-no mais a bola de meia no recreio e a merenda que lápis, caderno e livros. Enquanto Biguá não queria muito com os estudos, seu colega de colégio, Jackson, o mesmo que se tornaria ídolo do Atlético Paranaense, dedicava-se tanto à bola de meia quanto ao conhecimento.

A professora Carmem Silva não deixou Biguá esmorecer e acabou ajudando-o a concluir o curso primário. Com a morte da mãe, em 1936, coube à Dídimo, o terceiro da série de irmãos de Biguá, cuidar do caçula. Para evitar que o garoto parasse os estudos, tratou de matriculá-lo imediatamente no Instituto Santa Maria, na rua 15 de novembro. A permanência por lá foi curta. Durou até o final de 1936. Biguá era um aluno relapso e, por conta disso, sofria castigos e reprimendas incessantes. Como Biguá não queria saber de escola, Dídimo levou-o para trabalhar na Casa Gueiros, que também ficava na rua 15 de novembro.[4]

O menino Biguá começara como office boy, recebendo um salário de 100 mil réis por mês. Mas a bola era sua vida. Em 19337, o “caboclinho” já defendia o time infantil do Atlético Paranaense. Sempre como “half” direito. Durante aquele primeiro contato oficial com o futebol lhe “batizaram” com o  apelido “Biguá”, por ser bravo em campo, igualmente a um outro jogador do mesmo nome, veterano no futebol local.


Ao lado do amigo Mário, no Água Verde: o começo da carreira no Paraná (Reprodução: A Vida do Crack)

Com 17 anos, Biguá queria jogar bola, mas o irmão mais velho e tutor do rapaz não queria mais vê-lo correndo atrás de bola. Os dois brigaram feio e Biguá abandonou o emprego e, o que foi pior, a casa onde morava com o irmão, na rua Tiradentes, centro curitibano. A decisão de Biguá preocupou todos os familiares, que só se acalmaram quando souberam, que o rapaz refugiara-se na casa de Juracy, sua outra irmã a quem chamava desde pequenino de “Caleca”. À casa da irmã chegou com uma trouxa de roupas e ouviu dela um sermão. Juracy o aceitaria mas sob uma condição: que fosse obediente e trabalhador. Passaram-se alguns dias, conseguiu um emprego em uma fábrica de móveis, como lixador, recebendo cinco cruzeiros por dia. O futebol? Impossível abandoná-lo. Biguá, em dias de jogo do Atlético, saía do trabalho mais cedo.[5]

Mesmo com o salário melhorado para 8 cruzeiros diários, Biguá decidiu abandonar o emprego e seguiu para o alistamento militar no 5º Regimento da Base Aérea de Curitiba. Permaneceu na caserna durante 23 meses ganhando a miserável quantia de 56 cruzeiros mensais. Nem mesmo estando nas esferas militares conseguia esquecer a bola. Em 1940, Biguá era figura certa no time da Base Aérea. Seu companheiro de time era o então tenente Luiz Gastão Lessa Bastos, que chegaria a major e, tempos depois assumiria a direção de atletismo do Flamengo.

Naquele mesmo ano em brilhava no time dos “milicos”, Biguá seguiu para o Água Verde. Não demoraria ser o titular da lateral direita.

Em 1939, Biguá tentava se firmar no time de profissionais do Savóia, clube que depois mudaria o nome para Água Verde. Mas o esforço parecia ser em vão.

O rapaz era tão bom de bola que o Coritiba insistiu com os dirigentes do Savóia que o emprestassem para um amistoso contra o Corinthians[6]. O Coxa derrotou o Timão por 1 a 0 e Biguá, jogando de médio esquerdo, parou o ponta Lopes, que era da seleção brasileira. Prestando serviço militar na base aérea de Curitiba, Biguá foi convidado, em 1941, pelo então tenente Gilberto Aquino para jogar no Rio de Janeiro.

Aquino prometeu-lhe apresentá-lo ao técnico do Flamengo, Flávio Costa. Como tinha medo de avião, Biguá embarcou num trem rumo ao Rio enquanto Aquino seguiu de avião para então capital federal. Ao chegar ao Rio, Aquino recebeu-o na estação D.Pedro II e hospedou-o em sua residência na Ilha do Governador. Somente uma semana depois Biguá fez seu primeiro passeio pela cidade em direção à rua Campos Sales. Mais precisamente rumo ao campo do América FC, onde já jogava o amigo Cecílio, companheiro de Curitiba e titular do Alvirrubro carioca.

Influenciado por Cecílio, Costa Velho, técnico do time da rua Campos Sales, pediu para que Biguá calçasse a chuteira e vestisse o uniforme para um treino. Velho olhou para o rapaz, que media pouco mais de 1 metro e 55 centímetros e almejava ser zagueiro, e disse: “Não dá”. Biguá perguntou a Cecílio se poderia voltar no dia seguinte, o amigo respondeu: “Não, Biguá, não volte. O homem disse que você não é de nada.”[7]

Acompanhado pelo seu “padrinho”, o brigadeiro Aquino, Biguá seguiu para a Gávea, onde foi aceito e teve o registro confirmado pela Federação Metropolitana de Futebol no dia 4 de outubro de 1941. “Fiquei vários dias aguardando a chance para treinar. Enquanto isso, ficava batendo bola com Yustrich. Levei dias, já morando na concentração, indo de manhã e de tarde para esperar minha oportunidade. E Yustrich ia pegando meus chutes.”[8]

Reportagem de José Luiz da Silva Pinto[9], de 1951, confirma a dificuldade de Biguá para afirmar-se no Flamengo. “Ninguém fazendo fé nele. Aliás ninguém podia mesmo acreditar que aquele rapaz viesse a dar alguma coisa no futebol, com aquele ar desengonçado, aquelas pernas incríveis”. Segundo o texto de Silva Pinto, o então técnico do Flamengo na época, Flávio Costa, lançou Biguá somente três meses após ele aportar na Gávea. Mas Biguá não teve vida fácil no início no rubro-negro. Os médicos constataram um problema de nascença no tornozelo do jogador. Ele não esmoreceu e, após um treino espetacular, Flávio Costa mudou o conceito equivocado sobre aquele rapaz, com traços nitidamente indígenas. E era assim que a torcida passou a tratá-lo carinhosamente: “Índio”.


Com o notório massagista Johnson, do Flamengo (Reprodução:A Vida do Crack)

Com a contusão do titular Jocelyn, Biguá estreou entre os titulares no dia 26 de outubro de 1941 contra o Madureira. O Flamengo saiu de campo com o placar favorável [2 a 0]. “De repente veio a chance. Jocelino [na verdade, Jocelyn] e Artigas machucados, Flávio me escalou na equipe reserva para enfrentar o Fluminense. A ala esquerda do tricolor era Pedro Nunes-Hércules. Perdemos por 3 x 2, mas no jôgo seguinte eu estava entre os titulares, enfrentando o Madureira. Aí não saí mais e tive uma emoção muito forte no outro Fla x Flu, o famoso da Lagoa, quando empatamos por 2 x 2 e o Fluminense foi campeão.”[10]

Em 1942, Biguá viveu um drama. Após um exame, ouviu do médico do Flamengo Nilton Paes Barreto que não poderia mais jogar futebol, caso insistisse poderia morrer a qualquer momento, inclusive dentro do campo. O sopro no coração configurara-se sombria perspectiva para Biguá, que vivia o ápice da carreira. Logo após o trágico vaticínio do médico, Biguá, aos prantos, dirigiu-se à concentração disposto a arrumar as malas para tomar um trem rumo à Curitiba. Ação impedida pelo amigo Jaime de Almeida. A imprensa ignorava o que estava acontecendo nos bastidores do clube. Questionava os motivos que levaram Biguá a não entrar em campo contra o América, jogo que teria o clube Alvirrubro como vencedor [2 a 1].

O ESCRITOR E O CRAQUE

Mário Filho, o primeiro a chamar Biguá de “índio”, relatou um episódio que teria acontecido durante uma viagem de ônibus em que estavam ele, Biguá, e o escritor José Lins do Rego, rubro-negro fanático.

Rego preocupara-se com a situação de Biguá e decidiu levá-lo a um cardiologista renomado, o médico Genival Londres. O escritor acreditava piamente que o craque de nada sofria. Biguá, não. “Se o médico escutou o sopro é porque havia o sopro, o sopro estava lá dentro”. Paciente, Zé Lins retrucou: “Qual sopro qual nada, Biguá. Se você tivesse sopro não estaria conversando aqui comigo, estava era debaixo da terra, há muito tempo.”

Biguá ficou meio ressabiado, mas, como acreditava que Zé Lins também era “doutor”, pediu ao escritor: “Por quê o doutor Zé Lins do Rego não me escuta o coração?”. Pacientemente, Zé Lins teve de explicar que era “doutor” em outra coisa. Biguá ficou cabisbaixo e pensou ser seu caso perdido. “Quer dizer que é o só um palpite que o senhor tem?”. Dali em diante Biguá não chamava mais o Zé Lins de “doutor”. Era Zé Lins e pronto. Mas a psicologia do “doutor-escritor” funcionara. Afinal, se Biguá pulava, saltava, cabeceava e chutava petardos de fazer inveja a um tanque de guerra, logo a história de sopro não passaria de um susto.

O médico, segundo Mário Filho, prescreveu um exame singular para acabar de vez com aquele papo de “sopro”. Biguá seguiu à risca as recomendações médicas. Zé Lins sempre por perto, espreitando-o e interferindo quando necessário, recorreu novamente a sua “psicologia”, com todo o enlevo oriundo de um romancista ímpar, convencendo o médico de que Biguá saltava mais alto que o teto do consultório. Batata. O doutor Genival levantou-se, e convencido disse: “Zé Lins, se é como você conta, o Biguá pode jogar futebol”. Concluído o incomum “exame”, para Biguá restou-lhe o alívio de um inocente.


O cronista Mario Filho foi o primeiro a chamá-lo de “Índio” Biguá (Reprodução:A Vida do Crack)

Aos poucos Biguá afastou a depressão e convenceu-se de que poderia continuar jogando bola. Ignorou o parecer médico e permaneceu no Flamengo.[11]

Permaneceu para a alegria de muitos torcedores, especialmente uma senhora, cujo nome nunca se soube qual, mas cuja história foi revelada pelo cronista Mário Filho: “Biguá conquistou simpatias, não faltou quem quisesse protegê-lo. Uma senhora, certa vez, obrigou o marido a chamar Biguá. Biguá veio, desconfiado. A senhora disse, com voz maternal: ‘Olha aqui Biguá, se o Flamengo ganhar, você venha buscar uma camisa de seda’. O Flamengo ganhou, Biguá não se esqueceu da promessa, acabando o jogo, como quem não quer nada foi colocar-se dentro do raio visual da torcedora. A senhora percebeu Biguá, chamou-o outra vez, apertou-lhe a mão. Biguá sentiu cócegas de uma nota bem dobrada, agradeceu, saiu correndo para o vestiário. Lá, abrindo a mão, ele viu uma cédula de vinte cruzeiro. ‘Eu se fosse você — Jurandir [goleiro do time] abriu a boca — voltaria e pediria o resto’. ‘Se eu voltar sou capaz de ficar sem o peru [o “bicho” pago por fora aos jogadores após cada partida]. E com o peru, eu já posso mandar o monograma’.”

DUELOS INESQUECÍVEIS COM O AMIGO VASCAÍNO CHICO

Biguá era simples e até ingênuo. E foi essa simplicidade que o fez querido na Gávea e até em outros clubes e torcidas e adversárias. Nunca houve um senão em relação a sua passagem no Flamengo. Nem mesmo um gol contra que deu a vitória [e o título do primeiro turno] ao Vasco, 2 a 1, em São Januário, no dia 16 de setembro de 1945, abalou a imagem de Biguá. Para o torcedor do Flamengo, o jogador era quase um Deus, e aquele jogo foi o momento mais emocionante em toda a carreira de Biguá, não pelo gol contra, evidentemente que não, mas sim pelo dia em que percebeu o quanto representava para o torcedor do Flamengo.

Biguá teve a inglória missão de marcar o ponta-esquerda Chico. Em jogo estava o título do turno e meio caminhando andado rumo ao “tetra”. Entre 1942 e 53, como destacou a revista Placar, em 1978, Biguá e Chico travaram duelos memoráveis.


Com Esquerdinha e o cartola Gilberto Cardoso no intervalo de um jogo no Maracanã, em 1952 (Reprodução: Esporte Ilustrado)

Aquele jogo contra o Vasco poderia coroar a extraordinária geração formada por Biguá, Pirillo, Zizinho, Vevé, Modesto Bria… um timaço cantado em sambas de Wilson Batista e reverenciado sem nenhuma parcimônia por Ary Barroso nas transmissões radiofônicas. Mas o jogo que Biguá imaginara ser sua maior tragédia na carreira foi lembrado por ele e Chico como uma final incomum. A partida estava próxima do fim. No placar, um a um. De repente, o atacante vascaíno Lelé avança. Biguá, de costas para o gol, observa Chico. Lelé chuta com violência. A bola explode na trave e, no rebote, acerta a nuca de Biguá. A bola regressa caprichosamente para o arco do Flamengo. O craque cai e é contido pela rede das traves. Um gol contra que tirou o “tetra” do Fla e deixou Biguá tonto e sob um choro compulsivo. Logo ele, tão querido pela turma da Gávea, seria o algoz do próprio time…

“A própria torcida do Vasco não festejou o gol com muita alegria, em respeito ao drama que eu vivia. E a primeira mão que se ergueu para me ajudar foi a do meu grande adversário, Chico. Ele me levantou, me abraçou com carinho, me consolou”. Recordações de Biguá, publicadas pela revista Placar, que reavivaram a memória do ex-ponta vascaíno. “Eu fui lá ajudá-lo, disse-lhe que erguesse a cabeça, porque ele não tinha culpa nenhuma. A dor de Biguá me feria. Naquele momento, chorei junto com ele. Naquela época o futebol tinha rivalidade dentro do campo, assim mesmo, se respeitando os adversários”.

O mais emocionante viria depois, fora do estádio:

“Eu não sabia como sair do campo. No vestiário, com companheiros me consolando, eu só pensava na hora de sair e encarar a minha torcida. Queria que o mundo acabasse. Disse que não ia sair. Aí veio o querido José Lins do Rêgo, pegou no meu braço e disse: — Você vai sair comigo, Biguá. — Saí e quando vi estava no meio da torcida do Flamengo, todos gritando Biguá, Biguá, Biguá. Fui carregado para fora do estádio e confesso que chorava como uma criança.”[12]

Biguá era mesmo duro na queda. Como descreveu à revista Placar[13], o craque não se intimidou com as ameaças de jogadores do São Paulo dias antes de o clube paulista enfrentar o Flamengo:


No fim da carreira, antes de um jogo com o São Cristóvão. Na foto, além de Biguá, o juiz Mário Vianna e um jogador do clube da rua Figueira de Melo não identificado (Reprodução: Revista Grandes Clubes)

“Uma vez, em São Paulo, o Pardal disse que ia me quebrar a perna, instigado por Leônidas [da Silva], que queria me ver com medo. Mas eu não corri. E disse a ele que o esperaria para uma forra no jogo do Rio. Engraçado: na véspera desse jogo, sem ter chovido ou feito frio, Pardal amanheceu com um terrível ‘resfriado’.”

Até o surgimento de Leandro no time campeão mundial, em 1981, Biguá era considerado o maior lateral-direito do rubro-negro carioca de todos os tempos. Os que o viram jogar, afirmam que Biguá foi o primeiro lateral a defender e apoiar o ataque. Uma ousadia condenada pela maioria dos treinadores da época, mas que, de certa forma, foi herdada pelo próprio Leandro, nos anos de 1980, e por Leonardo Moura, também ídolo do Flamengo nos anos de 2000.

Titular absoluto nas equipes do Flamengo que conquistaram o primeiro tricampeonato carioca para o clube em 1942, 43 e 44. Quem o admirava era o zagueiro Domingos da Guia, que já em final de carreira no Corinthians convidou Biguá para trocar a Gávea pelo Parque São Jorge. Quase aceitou. Prevaleceu a paixão pelo Fla. “E no dia em que o Corinthians jogasse contra o Flamengo, como é que eu ficaria?”.

Na seleção carioca, Biguá também era o dono da lateral-direita. No escrete nacional, teve poucas oportunidades e nunca conseguiu se projetar como merecia.

Após a estupenda conquista rubro-negra, em 1944, o Flamengo começou a perder espaço para o Fluminense e, sobretudo, para o Vasco, com o poderoso Expresso da vitória. Em novembro de 1945, no final da temporada, Biguá confrontara-se com mais um drama de saúde, não tão preocupante como o sopro no coração, de 1942, mas que poderia colocar um ponto final na carreira do jogador: o médico do Flamengo, o ortopedista Paulo de São Thiago, identificou um cisto no calcanhar esquerdo de Biguá considerado grave para a medicina da época. “É uma lesão rara e muito grave porque conduz à fratura. E neste caso, uma vez fraturado o osso, o tratamento, por melhor que fosse, não poderia nunca fazê-lo retornar à vida de profissional de futebol.”


A despedida, um chute sem força para arquibancada, as chuteiras para Carlinhos e o abraço de Carlito Rocha (Reprodução: Revista Grandes Clubes)

Biguá foi operado no dia 21 de novembro daquele ano, no Hospital da Beneficência Espanhola. O médico raspou o cisto ósseo e retirou um fragmento do osso da perna esquerda para enxertá-lo na cavidade onde antes havia o cisto. O craque ficou três meses no estaleiro, mas sua recuperação foi considerada excepcional.

Em 1951, já sem o futebol de outrora, Biguá foi perdendo o posto de titular no Flamengo. Naquele estágio, o melhor seria pedir à diretoria do Flamengo que o liberassem para que não amargasse definitivamente a reserva. Biguá estava desolado, não queria deixar a Gávea, mas, com o passe livre, tinha como opção o clube que o revelou, o Água Verde. Voltaria para sua cidade natal e descansaria. Mas tudo mudaria com uma notícia alvissareira: o retorno de Flávio Costa ao Flamengo, que se preparava para uma excursão à Europa, cujo retorno para o clube foi incalculável.  O Rubro-negro venceu 10 jogos e Biguá fora deslocada para a zaga, formando dupla com Pavão.

No ano seguinte, durante embate contra o Vasco em jogo do primeiro turno do campeonato estadual, Biguá sofreu uma ruptura dos ligamentos do joelho direito que custou-lhe três meses fora dos gramados. Leone substituiu-o na lateral-direita e não mais deixou o posto. Em 1953, o amigo Jaime de Almeida substituiu Flávio Costa, que fora para o Vasco, e deu nova chance à Biguá para que recuperasse a posição. Mas tudo se complicaria para Biguá com a chegada de Fleitas Solich à Gávea. “Eu vinha querendo desistir. O Solich começou a perseguir os veteranos. Acabei brigando com ele por causa do [Modesto] Bria e resolvi parar.”[14]


Ser “capa” de revistas esportivas era algo constante para Biguá (Reprodução: O Globo Sportivo)

Do banco de reservas, Biguá chorou ao ver os mais jovens conquistarem o campeonato estadual de 53. O jogo de despedida de Biguá, contra o Botafogo, no dia 3 de novembro de 1953, foi uma das passagens mais bonitas da história do Flamengo. Pegou uma bola e chutou para torcida guardá-la como emblema daquele dia inesquecível. A torcida aplaudiu-o efusivamente. Após uma volta olímpica no gramado do Maracanã, o craque entregou suas chuteiras ao novato meia Carlinhos, o futuro “Violino”, como seria chamado ao longo da década de 1960. Após Biguá “passar” a chuteira para Carlinhos, o craque tentou chutar uma bola para a arquibancada, mas foi tão sem força que a pelota caiu na geral. De tão emocionado, Biguá correu em direção ao primeiro túnel que viu. Era o do Botafogo. Carlito Rocha, o folclórico cartola alvinegro, apertou-o contra o peito e disse: “Pena que no futebol haja poucos iguais a você”.

Carlinhos honrou a história de Biguá e fez a mesma coisa com Zico, em 1970. A tradição continuou com o “galinho”, que passou a chuteira para o jovem promissor Pintinho, em 1989. Pintinho? Pois é… dele a torcida sequer lembra a fisionomia. O tradicional hábito foi esquecido[15].

Biguá disputou 380 jogos oficiais pelo Flamengo. Venceu 225 e empatou outros 75. Marcou apenas sete gols. Não foi somente nos campos que o lateral tornou-se famoso. Era um pé-de-valsa, diziam. Como descreveu a revista Placar, em edição de 1978, Biguá foi um frequentador assíduo dos bares e dancings da antiga Lapa, que não dispensava uma boa roda de bate-papo regada a chope nos bares da antiga Galeria Cruzeiro.

‘SOFRIA MUITO MAIS ENFRENTANDO O VASCO’


Biguá “campeão”. Isso era normal na carreira do craque (Reprodução: O Globo Sportivo)

Biguá casou-se com uma mineira de Carangola que morava em Porciúncula. “Pois é. Fui a um baile na Tijuca e conheci a Lourdes. Depois fui até Carangola e quando voltei o Ari Barroso, com aquele jeito só seu, foi dizendo: — Conheceu a família em Minas, tem que casar. Como eu era fã dos concursos de danças, o Ari tentava me convencer que tinha que casar. E, finalmente acabei casando em 51.”[16]

Com o dinheiro conquistado com o futebol, Biguá comprou uma casa e terrenos em Curitiba[17]. Investimentos que, bem administrados, poderiam garantir-lhe um futuro tranquilo. Mas isso não aconteceu. Em dezembro de 1957, o jornal Diário Carioca publicou que Biguá estava tão mal financeiramente a ponto de se candidatar a um emprego de gari na Prefeitura do Rio de Janeiro. A informação, que um amigo do jogador garantia ser verídica, causou constrangimento ao jogador e ao jornal, que acabou desmentindo o suposto pedido que seria feito ao vereador Couto de Sousa. No começo daquele mesmo ano, o Flamengo cedeu um espaço em sua sede para Biguá empreender uma mercearia que se chamava “Tricampeão”. O negócio durou pouco tempo.

Mas Biguá tinha amigos de fé. Foi um presente de Gilberto Cardoso, ex-presidente do Rubro-negro, um bar/ mercearia na sede do Morro da Viúva, no bairro do Flamengo, que ajudou Biguá a se manter, com dificuldades, durante muitos anos. O ex-craque foi também funcionário do antigo INPS [Instituto Nacional de Previdência Social], no final dos anos de 1960 e começo dos 70, como chefe da seção de Leitura de Microfilmes da Dataprev, a Central de Processamento de Dados na Previdência Social.

O ex-lateral viveu seus últimos anos em uma pensão. Completamente incógnito caminhava pelas ruas. Poucos, mas muito poucos mesmo o reconheciam. Em março de 1984, um susto: Biguá, por ser sonâmbulo, rolou da escada da casa de uma sobrinha, em Porciúncula, no interior do estado do Rio, e teve a clavícula quebrada. “Mas foi só um susto. Eu sofria muito mais quando estava enfrentando o Vasco.”


No traço do genial e inveterado rubro-negro Otelo Caçador (Acervo André Felipe de Lima)

Em dezembro de 1988, outro susto, infelizmente com desfecho trágico: internaram-no no Instituto Nacional do Câncer, no Centro do Rio de Janeiro. Após 30 dias de sofrimento, no dia 9 de janeiro de 1989, Biguá perdeu a luta para um câncer no cérebro e para a diabete. Morreu pobre, abandonado pela maioria dos “amigos” e esquecido pela torcida para a qual tanta alegria e orgulho de ser rubro-negro proporcionou. Ao seu lado, apenas a esposa Lourdes Machado Cordeiro, com quem Biguá morava no bairro do Flamengo, na zona sul da cidade. Em seu enterro, no Cemitério São João Batista, havia poucos e genuínos companheiros, como o eterno rival e compadre Chico, Flávio Costa, Ademir de Menezes e Modesto Bria, que assim o definiu, em depoimento ao escritor Edilberto Coutinho: “Era ele quem sacudia a galera. Era um ídolo”. A mais pura verdade.

Uma vez perguntaram a Biguá sobre o que ele sentia por vestir a camisa do Flamengo. A resposta foi singela e inocente, bem ao estilo que conquistou a torcida rubro-negra: “Se eu fosse rico, jogava de graça no Flamengo”.

[1] RODRIGUES FILHO, Mário. O Negro no futebol brasileiro. Editora Mauad: Rio de Janeiro, 2003, p.267.

[2] ALVES, Ivan. Uma nação chamada Flamengo. Edição Europa: Rio de Janeiro, 1989, p.160.

[3] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, BARBARIZ, Irapuan, e PINHEIRO, Mauro. “Biguá, sua família, seus amores“. Revista Vida do crack, ano I, nº 2, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, junho de 1953, p.7.

[4] Idem, p.14.

[5] Ibidem, pp. 20-1.

[6] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2.

[7] Idem.

[8] Ibidem.

[9]O fenômeno Biguá”, publicada em O Globo Sportivo, no dia 22 de setembro de 1951, p. 14.

[10] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2.

[11] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, BARBARIZ, Irapuan, e PINHEIRO, Mauro. “Biguá, sua família, seus amores“. Revista Vida do crack, ano I, nº 2, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, junho de 1953, pp. 41-4.

[12] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2. Nota do editor: O jogo contra o Vasco, naquele dia 16 de setembro de 1945, valeu pelo campeonato carioca. Berascochea, aos 10 minutos do primeiro tempo, marcou para o Vasco. Zizinho empatou aos 25 minutos do segundo tempo e Biguá, dez minutos depois, garantiu a vitória vascaína com um gol contra.

[13] A.D.. “Biguá”. Editora Abril/ Revista Placar, seção “Álbum“, edição nº 07, São Paulo, 1º de maio de 1970, p. 34.

[14] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2.

[15] Como sinaliza Ruy Castro em seu livro “Flamengo: o vermelho e o negro“, Ediouro, 2005.

[16] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2.

[17] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, BARBARIZ, Irapuan, e PINHEIRO, Mauro. “Biguá, sua família, seus amores“. Revista Vida do crack, ano I, nº 2, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, junho de 1953, p.66.

‘FILHO’ DE SÃO JOSÉ E AMOR ETERNO DO FLAMENGO

Dequinha, o mais completo volante da história do Flamengo, completaria mais um ano neste dia 19, quando se reverencia um dos mais populares santos da Igreja Católica. Conheça mais detalhes da biografia deste craque excepcional

 

por André Felipe de Lima


Dequinha, um craque incomparável

“Flamengo joga amanhã/ vai haver mais um baile no Maracanã/ o mais querido tem Rubens, Dequinha e Pavão, eu vou pedir pra São Jorge…”. Quando compôs a letra deste samba, talvez o genial sambista Wilson Batista não imaginaria que aquele time do Flamengo tricampeão carioca em 1953, 54 e 55, cantado por ele em prosa e verso, fizesse do clube rubro-negro o mais querido do Brasil. Se hoje, quem está na faixa dos 60 anos vibra, chora e se descabela pelo time de coração agradeça aos ídolos que conquistaram o “tri” mais famoso da história do clube da Gávea. Reverenciem os goleiros paraguaios Garcia e Chamorro; a turma de trás, com Servílio, Pavão, Tomires, Jadir, Joubert e Jordan; ao cerebral meia Dequinha e à rapaziada do ataque, com Rubens [o Doutor Rúbis] Evaristo de Macedo, Joel, Duca, Benitez [outro paraguaio], Dida, Esquerdinha, Índio e Zagallo. Reparem, há apenas um na meia cancha. E como não é mistério para os que entendem o mínimo de futebol, quem joga no meio-campo é o “craque-cabeça” do time, o que, em tese, pensa mais. O que percebe no gramado o que nenhum outro jogador enxergaria. Pois esse craque foi José Mendonça dos Santos, o Dequinha, um centromédio que jogou todos os 84 jogos do Flamengo nas três campanhas que moldaram o segundo “tri” do Mengão[1]. Provavelmente um recorde inigualável nos tempos atuais. Feito memorável para constar em qualquer listinha de Guinness que pipocam por aí.

Dequinha carregava o piano, mas também jogava muito. Capitão do time, não dava refresco aos adversários e deixava qualquer zagueiro — que jogava ao seu lado, é claro — muito tranquilo. Errar passes ou meter a sola não era praxe da cartilha do meia, também capaz de lançamentos de longa distância. Como frisamos, o cara pensava por ele e mais alguns do time. Uma espécie de herdeiro do estilo de Danilo Alvim, do Vasco, que se preparava para pendurar as chuteiras quando Dequinha começava a calçá-las no Flamengo.


Em setembro de 1982, a revista Placar inaugurou uma série dos “Times dos sonhos” dos principais clubes brasileiros. O primeiro deles, o Flamengo. No escrete de todos os tempos do Mengão está, como volante, o intocável Dequinha

Equilíbrio da linha média de 55, Dequinha teve Jadir, na direita, e Jordan, na esquerda — o mesmo que Garrincha considerava como seu marcador mais leal — como companheiros ideais. No entanto o grande parceiro de meio de campo era Rubens. Ambos formaram uma dupla que estava na ponta da língua de qualquer torcedor que ousasse escalar um escrete. Só Zezé Moreira, na época treinador da seleção, ignorava os dois craques rubro-negros.

A FAMÍLIA DE DEQUINHA

Certa vez Luiz Gonzaga dos Santos, um caboclo da cidade de Caraúbas, no Rio Grande do Norte, muito jovem ainda, resolveu deixar o canto de terra que lhe vira nascer, indo integrar-se à vida de outra cidade do estado potiguar: Mossoró. Lá, passou a trabalhar numa fábrica e casou-se com Isaura Freire. Tiveram nove filhos, dentre os quais quatro [sendo três meninas] que morreram ainda nos primeiros meses de vida.

O primogênito fora batizado com o nome de José dos Santos Mendonça. A partir do segundo filho, o casal fizera uma promessa: dali em diante todos os filhos seriam batizados com o nome do santo do dia. Sendo assim, no dia 19 de março de 1929, dia de São José, nascera mais um rebento. Como o filho mais velho do casal chamava-se José, não houve outra alternativa: batizaram o novo filho como José Mendonça dos Santos[2]. E foi assim, sucessivamente, após o nascimento dos irmãos de Dequinha. Vieram Francisco, Antônio e — não houve jeito — Maragarido, este nascido no dia de Santa Margarida.

Quando Dequinha tinha apenas 12 anos, sua mãe, aquela quem lhe dera o apelido que o marcaria para sempre, falecera. Não houve explicações plausíveis para o adoecimento de Isaura apenas o fato de ela ter ficado acamada após comer uma manga à noite. Dois anos após a tragédia familiar, o pai de Dequinha casou-se novamente. A felizarda foi Severina Ramos dos Santos. Do enlace nasceu mais um irmão de Dequinha, João Simeão dos Santos.

INFÂNCIA DE UM MENINO LEVADO

Dequinha era um menino levado. Foi assim até a adolescência. Quando não quebrava vidraças, caçava passarinhos e saía no tapa com os outros moleques de sua idade. Às vezes, no meio da briga, até mordia alguns deles. O próprio reconhecera isso, em entrevista[3] de 1954. “Eu fui um verdadeiro demônio! Não compreendo, até hoje, como pude ser um garoto tão danado!”. Volta e meia um pai de um menino que apanhara de Dequinha batia à porta de Seu Luiz, que, inconformado com a postura do filho, descia, à velha moda sertaneja, o couro no menino. O curioso é que era bom aluno. Estudava na escolinha improvisada do seu Domingos, algo comum até hoje, nos rincões mais distantes do Brasil. Volta e meia matava aulas para jogar bola, ou mesmo a incomum sinuca com bola de gude, “esporte” inventado pela turma do Dequinha. Era realmente incorrigível.

Seu curso primário foi concluído em 1942, quando atingira os seus 13 anos, tendo ficado a espera, por todo o ano de 1943, de que seu pai conseguisse meios de mandá-lo a novo colégio, onde cursaria o ginasial. Enquanto isso, o jovem tirava o máximo proveito de suas horas de folga, urdindo travessuras continuadas. Os dias e os meses se sucediam, sem que o sr. Luiz Gonzaga pudesse proporcionar ao filho o necessário para prosseguir nos estudos, apesar dos esforços desenvolvidos nesse sentido, de vez que sua situação financeira não era das melhores. Em vista do que ocorria, Dequinha foi encaminhado a uma oficina mecânica, onde deveria iniciar a aprendizagem do ofício, para garantia de seu futuro.[4]


Sem dúvida, Dequinha foi o jogador mais badalado pela torcida do Flamengo na primeira metade da década de 1950

Foi trabalhar na oficina de Tertu Ayres, em Mossoró, em 1944. Recebia 30 cruzeiros de salário mensal. Quem o ensinou os ofícios foi Waldir, seu chefe e mestre da oficina e que o levou para trabalhar em outra oficina, na qual conheceu Sabino e Manoel Andrade, seus dois novos amigos. Já contava 16 anos e sequer guardou o mínimo resquício daquele menino levado que fora. Tornou-se responsável e trabalhador. Um exemplo para os rapazes de Mossoró. “Graças a esses amigos, consegui obter uma progressão sensível em meus salários, que de 150 cruzeiros passaram a 240 mensais”, disse Dequinha, que ficou na oficina, logo em Mossoró também, até setembro de 1947. Seguia o jovem para Natal, no Rio Grande do Norte, em busca de crescimento profissional[5].

Pensara em ingressar na Marinha[6], mas o pai não via a ideia com bons olhos. “Tive vontade de entrar na Marinha. Aquela farda me enchia os olhos. Ficava enciumado quando via a marujada entrando nos navios para conhecer novas terras. Ainda mais que tinha colegas mecânicos na Marinha”. O pai de Dequinha é quem o impediu de ingressar na força armada. “O ‘velho’ deu o contra. Não consentiu de maneira nenhuma. Eu pensei que jamais conheceria o estrangeiro, mas o Flamengo me deu essa satisfação.”

DE MOSSORÓ À NATAL

A primeira vez que Dequinha calçou um par de chuteiras foi em 1946, defendendo o Atlético F.C., de Mossoró. Atuava como ponta-esquerda. E com o clube, disputou o campeonato da cidade, sua primeira competição. Em julho do mesmo ano, seguiu para o ABC. F.C., da mesma cidade, clube em que permaneceu até fevereiro de 1947, quando seguiu para o Potiguar. De onde embarcou num pau de arara e rumou para Natal[7], o que seus familiares, sobretudo o pai de Dequinha, definiam como uma “ridícula aventura”[8].


Uma visita ao pai, Luiz Gonzaga, ao lado de irmãos, parentes e amigos de Mossoró

Chegando a Natal, Dequinha hospedou-se em casa de sua tia, D. Belinha Mendonça, que passou a desempenhar em sua vida o papel de uma segunda mãe. Em busca de um trabalho na nova cidade, Dequinha encontrou, casualmente, o amigo Cezário, com que jogara no Potiguar, de Mossoró. Comovido com a situação do jovem, Cezário encaminhou-o ao ABC, de Natal, com cujo clube Dequinha conquistaria seu primeiro título na carreira, o campeonato da cidade, em janeiro de 1948. Vicente Farache, então técnico e presidente do ABC, apostara em Dequinha, que, embora não fosse profissional, era tratado como tal. Tinha casa, alimentação e uma parruda ajuda de custos de 600 cruzeiros mensais. Gostavam tanto de Dequinha que Antônio Farache, irmão de Vicente, presenteou Dequinha com um relógio de ouro caríssimo[9].

Com as incursões do ABC em Pernambuco e no Ceará, Dequinha despertou a cobiça de grandes clubes, como Fortaleza, Ceará, Sport e Santa Cruz. Mas a proposta que mais encantou o então jovem craque partiu de Rubem Moreira, cartola do América, da capital pernambucana, em dezembro de 1948. Sua “fuga” do ABC estremeceu a relação de Dequinha com todos no time potiguar. “Pela madrugada, eu deveria embarcar no avião que me levaria ao destino, mas os diretores do ABC já haviam suspeitado de tudo, naturalmente levando em conta a presença dos emissários do clube pernambucano e que estiveram à minha procura. Diante do rumo que tomaram as coisas, vi-me obrigado a confessar o meu arrependimento, prometendo aos meus bons e inesquecíveis amigos dr. Vicente e Sr. Antônio Fracahe, que jamais pensara em deixá-los.” Dequinha desistira do América na última hora, mas o assédio dos clubes não cessara. Em fevereiro de 1949, o Sport convidou Dequinha para passar o carnaval em Recife. A ideia ia muito além de uma festa momesca. Dequinha seguiu para a Mossoró a fim de rever a família e depois partiu para a capital pernambucana, em sua primeira viagem de avião[10].

Ao chegar em Recife, Dequinha hospedou-se nas dependências do Sport, na Ilha do Retiro. Seus primeiros treinos agradaram. Tinha tudo para permanecer no rubro-negro, mas nem o técnico Viola e tampouco os cartolas do clube falavam em contrato. A indefinição incomodara Dequinha, que decidiu atender a um convite de seu conterrâneo, Julio Gezo de Carvalho, que o apresentou a Novamuel, um ex-jogador argentino que defendeu Vasco e que passara a treinar o América de Recife. Negócio fechado. Dequinha trocaria o Sport pelo novo clube e receberia 7 mil cruzeiros de “luvas” e um salário mensal de 800 cruzeiros, durante um ano de contrato. E o resultado durante a primeira temporada foi muito bom, com o América terminando o campeonato estadual de 1949 na terceira colocação[11].

O VERMELHO E O NEGRO NA VIDA DE DEQUINHA


Linha média espetacular: Jadir, Dequinha e Jordan

A performance de Dequinha, que media 1,66m de altura e calçava 41, empolgou Rubem Moreira, que sempre diz-se torcedor do Flamengo. O cartola avisara ao jovem que um dia jogaria pelo time carioca. O assunto esfriou, Dequinha nunca deu muita bola para o vaticínio de Moreira, mas as coisas mudariam em junho de 1950, quando o cartola embarcou para o Rio de Janeiro e levou a tiracolo Dequinha. Bastaram dois treinos para que o técnico do Flamengo, Gentil Cardoso, indicasse a contratação do jovem craque nordestino. O Flamengo autorizou Moreira a negociar o passe de Dequinha com o América, em Recife. O clube da Gávea pagou mil cruzeiros e o negócio foi fechado.

O rapaz, que não fumava e não bebia nada alcoólico, não acreditava que estava na então capital federal, vestindo a camisa do Flamengo e ganhando 4 mil cruzeiros mensais mais 18 mil de luvas, sob um contrato de um ano. Ficaria ainda melhor quando, meses depois de chegar à Gávea, seu contrato seria renovado para dois anos e o salário quase dobrara, saltando para 7 mil mensais[12].

Por coincidência, Dequinha estreou sob o comando do treinador Cândido de Oliveira contra um outro América, porém carioca, no dia 17 de setembro de 1950, jogando no lugar de Hermes, na meia-esquerda e não de centromédio, onde vinha treinando. O jogo terminou 2 a 2. Flávio Costa, quando assumiu o comando do time foi quem percebeu que Dequinha deveria recuar um pouco mais. E o melhor centromédio da história do Flamengo começava a despontar.

“No princípio eu não gostava do Rio. Foi tudo muito difícil para mim. Antes de chegar a treinar no Flamengo, adoeci. Estava com o fígado arrebentado. Também não poderia treinar mesmo, pois já cheguei ao Flamengo contundido. O dr. Gilberto [Cardoso], que, nesse tempo, era o o chefe do Departamento Médico do clube, era quem me animava. E já estava com vontade de voltar. Imaginem que, com três mêses de Flamengo, eu ainda não tinha dado um treino. Dr. Gilberto, porém, mesmo sem me ver jogar, tinha confiança em mim e não me faltou com sua atenção. Até comida especial era feita para mim, por ordem dêle. Por isso eu não posso pensar, nem de leve, em sair do Flamengo, enquanto o dr. Gilberto Cardoso estiver no clube”, disse Dequinha à Gazeta Esportiva[13], em 1954.


O Flamengo vai à Europa em 1951. Dequinha foi um dos destaques da excursão. Na foto, além dele, estão Biguá (no detalhe entre o juiz e Modesto Bria), Bria, um auxiliar da arbitragem, Esquerdinha, Dequinha, Índio e, com o rosto praticamente encoberto, Bigode

Apesar das boas atuações em 1950, Dequinha deparou-se, porém, com uma oposição: o novo técnico do Flamengo, Flávio Costa, que, embora apreciasse o futebol arte de Dequinha, deu a posição de centromédio para o veterano Modesto Bria. O rapaz de Mossoró só teria uma nova chance de brilhar durante a vitoriosa excursão do Flamengo à Europa, em 1951. E não a desperdiçou. Jogou uma barbaridade para nunca mais sair do time titular.

Era uma das promessas para o campeonato carioca de 51, como salientou o repórter Vasco Rocha[14]: “Este ano será dele […] Deverá ser, segundo as previsões otimistas dos entendidos […] uma das revelações deste ano para alcançar pleno apogeu em 52 […] E surgirá como um médio de excepcionais recursos como distribuidor, como preparador de ataques, como coordenador da ofensiva e como controlador da ação defensiva, salientando-se pela sua habilidade no controle da pelota, pela sua maestria na finta e pela eficiência do passe […] Dequinha se tornará, dentro em pouco, afirma-se, o elemento-base para a formação da equipe rubro-negra”. Vaticínio melhor, impossível. Dequinha provou que era craque e foi à Copa de 1954, na Suíça, mas não jogou. Pela seleção brasileira, foram apenas oito jogos, com quatro vitórias e dois empates. Naquele ano, já não ganhava apenas um salário de 7 mil cruzeiros mensais, mas um total de 20 mil mensais, entre luvas e salário.

As folgas de Dequinha no Rio eram na praia, no cinema ou ouvindo bolero e tango. A primeira coisa que fazia ao acordar era ligar o rádio. Mas divertia-se com os dias em que tinha de ficar na concentração com os companheiros de time, ora jogando sinuca, ora gargalhando com as piadas contadas pelo zagueiro Pavão. “São impagáveis”, contou à Gazeta Esportiva, em 1954, Dequinha, cuja preferência literária era José Lins do Rego, rubro-negro dos mais altivos e que participava do dia a dia do clube, chovesse ou fizesse sol. O craque tinha uma predileção na bibliografia de Zé Lins, a obra “Água mãe”, que narrava a vida de um jogador de futebol, do apogeu à miséria. “É uma lição”, descreveu Dequinha[15].

No dia 25 de setembro de 1959, uma sexta-feira, Dequinha sofreu uma grave contusão durante um treino do Flamengo. Após um dividir uma bola com Henrique Frade, teve a perna esquerda fraturada. Fora o acidente mais grave na carreira de Dequinha. Fratura dupla na perna direita. Após meses fora dos gramados, foi sendo esquecido pelos cartolas do clube, embora o craque sempre negara qualquer mágoa com o Flamengo. A prova do descaso seria inequívoca [ou mera coincidência].

Logo após recuperar-se da gravíssima contusão, Dequinha recebeu passe livre. Essa foi a deixa para que Marinho, ex-companheiro de Flamengo e que auxiliava Paulo Amaral no Botafogo, levasse-o, em 1960, para o clube de General Severiano, onde foi submetido a um rigoroso treinamento para recuperar a forma física. Em um jogo contra o Olaria, Dequinha voltaria a pisar o gramado do Maracanã[16].

Difícil foi encerrar a carreira. Com o manto rubro-negro, o craque disputou 374 jogos, dos quais venceu 234 e empatou 70, assinalando oito gols. No Botafogo, percebera que nunca chegaria a tanto. Ficara poucos meses no Alvinegro. Insistiu no Campo Grande, de 1960 a 1962, mas percebeu que deveria parar por ali. Tentou ser treinador, mas contentou-se com a função de auxiliar de Fleitas Solich, “o feiticeiro”, no Flamengo. Permaneceu na Gávea até 1969 e enveredou por clubes sem expressão. Tinha bagagem para treinar clubes grandes, afinal foi o cérebro do Fla tricampeão, mas a timidez que demonstrava foi sempre um grande empecilho para que juntasse dinheiro.


Flávio Costa faz um afago em Dequinha no vestiário. Treinador sábio cuida de seus craques como se de um filho amado cuidasse

O erro, segundo o próprio ex-jogador, foi insistir pela longa permanência no Flamengo. Como jogava no clube pelo qual torcia fervorosamente, tal paixão teria lhe impedido de aceitar propostas de outros clubes ou de ter melhores salários porque sempre cedia ao “choro” dos cartolas na hora em que renovava os contratos. Dequinha chegou a ostentar uma frota de ônibus no Rio, mas não tinha o mesmo talento com que liderava a meia canha rubro-negra para administrar negócios. Nos idos de 1950, amealhou um bom patrimônio. Foram dos apartamentos em Laranjeiras, zona do sul do Rio, cinco lotes de terreno em São Paulo e Estado do Rio de Janeiro, comprados do pai do ponta-direita Joel, com quem jogava pelo Flamengo. Além dos imóveis e terras, também comprou uma caminhonete com a qual ele mantinha um serviço de lotação entre a Central do Brasil e o Leblon. Recebia com este empreendimento cerca de 10 mil cruzeiros mensais, que completava o orçamento do futebol.

Quando morreu, no dia 2 de fevereiro de 1997, era funcionário aposentado da Prefeitura de Aracaju, onde trabalhou na Secretaria de Esportes.

Fã dos intérpretes Ângela Maria e Orlando Silva e dos locutores de futebol Oduvaldo Cozi e Rui Porto, Dequinha era reverenciado pela imprensa de sua época como jogador. Assim escreveram, em 1954, para a revista Vida do crack[17], sobre o grande Dequinha: “É um prazer ver-se aquele nordestino a bailar na cancha, deitando cátedra, arrebatando aplausos, E, hoje, simplesmente, o Deca da torcida rubro-negra. Tratamento carinhoso que reflete perfeitamente o desvelo, o carinho, a gratidão dessa torcida tão apegada do “mais querido do Brasil”. Muito educado, querido por todos e avesso ao álcool, Dequinha fora ilibado exemplo dentro e fora dos campos. Por isso tornou-se um dos maiores ídolos da história do Flamengo e ícone de uma época que fez do clube da Gávea o mais querido do Brasil… para sempre.

 

[1] SANDER, Roberto. O segundo tri do Flamengo. Artigo publicado na revista especial Campeonato Carioca 1906 – 2006: 100 anos, editada pelo Jornal dos Sports, S.D. 2006. p. 47.

[2] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “Assim surgiu a família de Dequinha“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 7-11.

[3] Idem. “Assim surgiu a família de Dequinha“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 12-13.

[4] Ibidem, p. 13.

[5] Ibidem. “Os primeiros passos na vida prática“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 18-9.

[6] RANGEL, Oriovaldo. “Dequinha queria a Marinha, ‘embarcou’ no futebol“. A Gazeta Esportiva Ilustrada, São Paulo, 2ª quinzena, novembro de 1954, nº 28, pp. 18-20.

[7] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “Em 1946 calçou as primeiras chuteiras“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 20-2.

[8] ROCHA, Vasco. Dequinha, o crack de Mossoró. Reportagem publicada pela revista O Globo Esportivo em 15 de setembro de 1951, pp. 10-1.

[9] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “Viagem a Natal — Início de uma nova vida“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 23-5.

[10] Idem, p. 28

[11] Ibidem. “Fugiu de Natal para o E.C. Recife e acabou ficando no América“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 31-2.

[12] Ibidem. “O Flamengo recebe Dequinha de braços abertos“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 41-4.

[13] RANGEL, Oriovaldo. “Dequinha queria a Marinha, ‘embarcou’ no futebol“. A Gazeta Esportiva Ilustrada, São Paulo, 2ª quinzena, novembro de 1954, nº 28, pp. 18-20.

[14] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “O Flamengo recebe Dequinha de braços abertos“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 41-4.

[15] RANGEL, Oriovaldo. “Dequinha queria a Marinha, ‘embarcou’ no futebol“. A Gazeta Esportiva Ilustrada, São Paulo, 2ª quinzena, novembro de 1954, nº 28, pp. 18-20.

[16] CHERMAN, Isaac. “Desprezado pelo Flamengo… brilha no Botafogo“. A Gazeta Esportiva Ilustrada, São Paulo, 2ª quinzena, agosto de 1961, nº 190, pp. 20-1.

[17] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “Dequinha“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, p.4.