por Paulo Oliveira
Mauro Gordo é sempre o primeiro a chegar, vestido com sua roupa de gala: o tênis kichute, amarrado como sapatilhas de bailarina; um surrado short preto; e a camisa do Flamengo, cujas cores, adquiridas em dezenas de lavagens, passaram a ser rosa e cinza. Às costas, nenhum número, pois pode se transformar em qualquer jogador que tenha pisado no solo sagrado do Maracanã com o místico manto rubro-negro. Seus dois pares de meiões não combinam com nada – um é verde; o outro, laranja. Não raras vezes utiliza uma meia de cada cor.
Diariamente, Mauro repete o mesmo ritual: a mãe prepara uma mamadeira de café com leite, que ele sorve em poucos goles. Na hora da ave-maria, pega a bola dente-de-leite, confere os nós dos cadarços, faz o sinal da cruz e parte em direção ao seu território. Será assim até os seus 20 anos, quando perceber que a maioria dos colegas deixou o bairro, o centro velho do Rio.
Nada tira sua concentração enquanto atravessa as ruas Costa Ferreira e Senador Pompeu, nas imediações da Central do Brasil. Fisionomia fechada, a bola debaixo do braço, imagina belas jogadas e como serão os gols que pretende marcar.
Ao chegar no Largo dos Estivadores, verifica a posição dos gelos-baianos do estacionamento que vira campo de futebol todas as noites e nos finais de semana. Em seguida, abre um largo sorriso e deixa a bola correr. Tem cerca de uma hora, antes da turma chegar, para treinar.
Treino básico: embaixadinhas. Sob a luz fraca dos velhos postes do bairro, tenta bater seu recorde. Uma, duas…, a bola foge do controle. De novo e de novo, várias vezes, não consegue passar de três embaixadas com a perna esquerda.
A outra, cega, não serve para nada.
O treino termina quando surgem os primeiros amigos: Banana, Manteiga, Dido, Paulo, Albino, David… Mauro cumprimenta um a um, torcendo para que pouca gente apareça. Paraibinha, Mauro Preto, 32, Sérgio…
– Vam’bora, vam’bora, vamos tirar o time – tenta apressar os outros, sem sucesso.
O sofrimento aumenta a medida que chega mais gente: Lula, Marcos Bu, Celso, Durão, Chope, Jason, Xinha. Já são mais jogadores do que o campo comporta – seis na linha e um no gol de cada lado.
Longa é a agonia do mais assíduo jogador do Larguinho, onde funcionava um mercado de escravos no passado. Ele vê a chance de atuar no primeiro racha se apagar.
– Quem quer tirar o time comigo? – insiste.
Quando Banana e Albino, os artilheiros do Águia Dourada, começam a escolha, Mauro Gordo, resignado, puxa de dentro da camisa, preso ao pescoço, um apito de plástico, pronto para virar o juiz. Para quem se acostumou a ser o último selecionado, não é tão ruim apitar e ganhar o direito de comandar o time de fora.
A luz fraca somada à miopia impede a boa atuação do árbitro. Ele é logo expulso. Cabisbaixo, deixa o campo e senta-se na soleira da serraria do seu Jorge, mudo. Porém, as primeiras gotas de chuva, mudam seu humor.
O primeiro jogo termina dez minutos depois – é isso ou quem fizer dois gols primeiro.
Mauro entra com disposição, pega a bola, coloca onde imagina ser o meio do campo. Em seguida, corre para a “banheira”, desprezando a regra do impedimento, sem validade mesmo nas peladas. Os primeiros passes caem teimosamente na perna direita, obrigando-o a fazer uma manobra complicada, que consiste em girar no eixo do próprio corpo, deslocando 90 quilos, na tentativa da perna boa entrar em ação. Por mais que se esforce, demora muito e é desarmado.
Sem jeito, olha para o chão, se prepara para pedir desculpas aos companheiros, mas não dá tempo. Percebe pela algazarra dos adversários que o seu time acaba de levar o primeiro gol.
A chuva aperta, a sarjeta começa a encher. A água já iguala a parte da calçada com a do asfalto, a poeira da rua se transforma em lama. Hora de Mauro colocar em ação a arma secreta. Ele recua até o meio-campo, espera o passe. Domina com o pé esquerdo, baixa a cabeça e, como um búfalo, invade a parte enlameada. É o único a enfrentar o lamaçal sem se preocupar com uma queda, enquanto os inimigos o cercam à distância.
O tiro disparado com violência passa entre os chinelos usados como traves. Gol com direito a comemoração diante de uma torcida imaginária. Mauro age como se fosse um Zico, um Adílio, um Júnior; como se fosse os três ao mesmo tempo.
A mesma tática é usada com sucesso pela segunda vez, dando a vitória para a sua equipe. Mauro sai triunfante. Para ele, a batalha acabou.
Quando o jogo acaba, puxa do bolso do short uma caderneta e um cotó de lápis. Vai para debaixo da cabine do zelador do estacionamento e registra os tentos assinalados ao lado da data da partida. É o controle da artilharia, a prova que marcou mais de cem gols no Larguinho.
Ao voltar para casa, a irmã tenta convencê-lo a tomar um banho antes de dormir, mas o artilheiro está cansado. O corpo desaba no sofá da sala e o centroavante dorme, embriagado com o cheiro da lama.