por Mário Moreira
“QUEM QUER POSAR DE MAIS CONHECEDOR QUE OS OUTROS NÃO É BOM JORNALISTA”
Houve um tempo, acredite, em que o nome Sérgio Cabral só evocava coisas boas: futebol, Carnaval, música popular… Culpa do brilhante jornalista, escritor e pesquisador que completa 81 anos neste 17 de maio. Cabral pai é um dos mais importantes jornalistas brasileiros, com passagens por veículos como Última Hora, Jornal do Brasil, Jornal dos Sports, O Globo, O Dia e, claro, do Pasquim, do qual foi um dos fundadores. Hoje, infelizmente, está retirado em razão do mal de Alzheimer.
Sérgio Cabral foi também político, eleito vereador do Rio por três legislaturas, nos anos 80 e 90. E foi em seu gabinete na Câmara Municipal que fui entrevistá-lo em junho de 1989 para minha monografia de fim de curso na PUC-RJ, sobre comentário esportivo. Foi a última entrevista de uma série que incluiu conversas com Sérgio Noronha, João Saldanha e Achilles Chirol (todas já publicadas aqui no Museu da Pelada). À época, o jornalista escrevia uma coluna diária em O Dia e participava da mesa-redonda de domingo na TV Educativa.
Cabral me recebeu com grande simpatia e rendeu um ótimo papo, que divido agora com os leitores do Museu.
Eu primeiro queria que você contasse como foi que começou no jornalismo esportivo.
Esportivo foi… Eu comecei em primeiro lugar fazendo um trabalho… Eu era do Jornal do Brasil, e houve a Copa do Mundo de 62, aí o pessoal do Esporte me chamou pra ser copidesque do Esporte durante a Copa. Portanto, foi uma coisa eventual. Como, aliás, as minhas incursões pelo esporte durante toda a década de 60 foram eventuais. Foi essa, depois eu participei de programa de televisão, mesas-redondas, eu era o vascaíno da mesa… É…. Em 71 fui ser editor do Jornal dos Sports. Fim de 71.
Você nunca chegou a ser repórter esportivo?
Não, nunca fui, nunca fui, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca. Depois, em 80, O Globo – eu escrevia sobre música popular no Globo, né? Parei de escrever, aí o Globo me chamou pra fazer uma coluna de esporte. Aí eu fiz até 86, quando fui demitido na greve.
É, eu soube disso… (risos)
É… (risos) Aliás, eu sou o único jornalista da história do Brasil que foi demitido duas vezes por causa de greve.
Por causa de greve?
É.
Ah, é?
Em 86, no Globo, e em 62, no Jornal do Brasil.
Por ter cumprido a decisão do sindicato.
É um orgulho que eu tenho.
De um tempo pra cá, você está na mesa-redonda da TVE.
Tá havendo greve lá.
Ah, por isso que não teve (mesa-redonda no domingo anterior)…
Exatamente. É um orgulho.
Tem greve…
É, exatamente. Nem saí de casa.
É dos jornalistas da TVE?
Não, é da TVE. Mas eu não quero furar greve de ninguém.
O que você acha que os comentaristas esportivos têm, quer dizer, qual é a autoridade que eles têm pra falar sobre futebol? Eles entendem mais de futebol do que o público em geral?
Não. Eles são jornalistas. Um dos setores do jornalismo é o comentário esportivo. Só isso. Ele não tem mais autoridade que ninguém. Às vezes até tem, porque você, sendo obrigado profissionalmente a se aprofundar em determinado assunto, você acaba geralmente entendendo mais do que os outros – até por razões emocionais, quer dizer… Uma coisa que eu acho muito curiosa, eu que sou há tantos anos comentarista esportivo, embora seja jornalista já há 30 e tantos anos, é que meus colegas comentaristas, o assunto principal deles é esporte, é futebol. Quando eu saio da televisão e pego uma carona no carro de um deles, a gente vem conversando, o assunto é futebol. Eu doido pra mudar de assunto até, muitas vezes (risos), mas eles querem comentar, querem reclamar, que o Otavio Pinto Guimarães (ex-presidente da Federação de Futebol do Rio e da CBF), que não sei quem, que tal time jogou errado… Eles continuam. As pessoas… se apaixonam. Agora, eles não são obrigados a ser melhor que os outros, nem sempre são, muitas vezes não são… Né?, eu acho até que às vezes são ruins… Mas isso depende: um bom jornalista ou um mau jornalista. O cara que quer posar de mais conhecedor que os outros não é um bom jornalista. Isso não é uma forma de fazer um bom jornalismo. Porque o conhecimento sai naturalmente. Você não tem que forçar uma barra, né?
Então não tem requisitos especiais pra ser comentarista?
Eu acho que tem. Você deve estudar, deve ser estudioso, deve acompanhar os acontecimentos internacionais, os acontecimentos nacionais, os acontecimentos locais, e deve estudar, deve realmente se aprofundar.
Você tem essa preocupação de se atualizar com táticas, por exemplo?
Tenho, tenho, tenho, tenho. Eu sei sobre táticas, sobre arbitragem… Isso tudo. Eu tenho, modéstia à parte, uma boa biblioteca sobre… E leio e gosto. Até porque, se eu não lesse e não gostasse, não estaria escrevendo sobre isso, não é por questão de honestidade, é porque eu seria um mau jornalista. Eu estaria inventando coisas, né? Eu não, não… Eu faço questão de me aprofundar. Eu acho que várias outras pessoas também são assim.
Por que você acha que, para o público, é importante existir a figura do comentarista? Ou ela não é fundamental?
Olha, eu acho importante o comentarista, não só de esporte como de qualquer outro tipo de comentário. Eu acho que o público nem sempre tem condições de se nortear, ele precisa saber certas opiniões, até pra ter a sua. Ele não deve nem… Ele não é obrigado nem deve até seguir a opinião dos comentaristas, mas ele deve saber a opinião das pessoas para, enfim, saber qual o caminho a tomar. Eu escrevi muitos anos sobre música popular, esse foi meu assunto…
Esse livro que você tá escrevendo é sobre música popular?
É, é sobre música. É. É uma biografia do Almirante (Henrique Foréis Domingues, o Almirante, importante cantor, compositor e radialista da Era de Ouro do rádio. O livro saiu em 91).
“A maior patente do rádio”.
É. E através da biografia dele eu tô montando uma história da música popular e do rádio. É um livro que eu tô… apaixonado. Mas… Eu, quando escrevi sobre música, eu percebi em mim, e era claro, que o que eu botava pra fora era fruto de um gosto que não tava só em mim, que foi um pouco herdada das leituras que eu tive de certos, de outros comentaristas, né? Tipo Sérgio Porto, Lúcio Rangel… Evidentemente, essas pessoas me influenciaram. Eu li Mário de Andrade, e sem dúvida nenhuma o que eu sou hoje é um pouco fruto dessas leituras. Então eu acho que um comentarista não tem uma posição negativa, eu acho que até positiva, na formação… na formação da cabeça das pessoas.
Mas você acha que o comentarista forma cabeças ou ele só orienta?
Ajuda. Ele ajuda. Ele dá subsídios.
Embora às vezes o torcedor possa discordar dele.
Claro, mas não só pode como deve. Deve. Aliás, aquele que discorda é exatamente sinal de personalidade, sinal de independência intelectual.
Você acha que os comentaristas têm a função de auxiliar na evolução do futebol?
Não. O comentarista tem a obrigação de ser um bom jornalista. E mais nada. O comentarista não tem que resolver problema. Se ele quiser resolver problema do futebol, ele vá trabalhar na CBF, ou vai pra Federação ou vai pros clubes. Ele tem que ser um bom jornalista. Se o que ele produz é bom para o futebol, ótimo. Mas, se não for, não tem grande importância. Importante é que ele seja um bom jornalista. Seja honesto, fale o que pense e não fale besteira.
Sugerir caminhos você não acha…
Sugerir é uma… A sugestão é uma das atividades que o comentarista tem. Ele sugere, mas não vai resolver, ele sugere. Você se lembra que a CBF foi ocupada aí por um bando durante três anos (refere-se à gestão Otavio Pinto Guimarães e Nabi Abi Chedid) e teve a reclamação total dos jornalistas. E ficou três anos. (risos) A gente pagou aí por uma porção de besteiras, de modo que nós tamos pagando até agora. E… Mas não foram os jornalistas que tiraram eles.
Não, quando eu perguntei se o comentarista também tinha a função de ajudar, seria na tentativa de ajudar, não necessariamente no resultado. A tentativa pode às vezes…
Sem dúvida, sem dúvida. Eu tenho certeza de que alguns treinadores já tomaram atitudes decorrentes da opinião de comentaristas. SEI disso.
Bom, você é um vascaíno notório…
Modéstia à parte.
Na hora de comentar um jogo do Vasco, você se sente à vontade, você fica mais preocupado?… “Não posso…”
Olha, eu faço o possível pra ser isento na hora de comentar. Né? O ideal pra mim seria que toda vez que eu fosse comentar um jogo do Vasco, eu abrisse da seguinte maneira: “Olha, pessoal, eu sou Vasco, mas… dois pontos.” E aí… O ideal seria isso. Pras pessoas saberem, né? Não tô enganando ninguém.
Se bem que no seu caso nem é necessário, porque todo mundo sabe.
É. Mas eu, na hora em que comento um jogo Vasco x Botafogo, Vasco x Flamengo, Vasco x Fluminense ou lá quem for, eu faço O POSSÍVEL pra ser isento. O possível até… pra ter crédito junto ao leitor. Isso é uma coisa que não… É um crédito que eu não quero perder. Eu me lembro em 82, na eleição, uma coisa muito frequente que aconteceu comigo, na hora em que tava fazendo panfletagem de rua – mas eu vi muitas vezes: “Olha, eu vou votar em você porque você é Botafogo, hein?”. Eu ouvi Botafogo, bastante. Claro, Vasco eu ouvi mais. Mas ouvi Botafogo bastante, ouvi Fluminense e ouvi Flamengo. Gente pensando que eu era… Depois de 82, eu fui trabalhar em televisão, mais constantemente, e aí, como vascaíno aberto e tal, já nesta eleição não foi tanto. Mas ouvi gente dizendo “Você, apesar de vascaíno, e tal, fala bem do meu time, e tal…”. E o caso do Botafogo é até explicável porque o time do Botafogo é o meu assunto predileto de cronista. Porque o Botafogo é um tema riquíssimo! Imagina essa coisa… Eu, domingo passado, escrevi uma crônica sobre uma prova de matemática que o professor aplicou naquele Centro Anísio Teixeira aos alunos dele. E era uma prova que só falava do Botafogo, de matemática! E só falava do Botafogo! Então, quer dizer, o Botafogo é um clube que pelo drama que vive, de 21 anos sem título, provoca esse tipo de reação, de imaginação. Então eu adoro escrever sobre o Botafogo. (Curiosamente, o clube se sagrou campeão carioca dali a poucas semanas.)
Mas voltando ao tema do clube. Por exemplo, você já se pegou na situação de comentar um… Você já comentou em rádio um tempo, né, pouquinho?
Pouco, é, pouco.
Em televisão, comentar jogo na hora, nunca?
Na hora, já. Já.
Mas você já se pegou na situação de comentar uma partida do Vasco e depois assistir ao videotape e tal e reformular a sua opinião? “Não, o que eu comentei não era bem isso…”
Não. Não. Bom, pode acontecer, mas não em função do meu vascainismo. Pode acontecer. “Estava impedido.” Aí você vai ver, não estava. Mas uma opinião deformada por causa do vascainismo, modéstia à parte, nunca aconteceu. Nunca. Nem em jornal, nem em… lugar nenhum. Nem rádio nem televisão. Eu não… Eu procuro ser o mais honesto possível, merecia cartão amarelo, merecia cartão vermelho, foi impedido, essas coisas.
Você acha então que essa tentativa de ser isento…
É bem-sucedida, modéstia à parte.
E com relação a essas frases feitas que tem no futebol? Você falou agora do Botafogo, tem a famosa frase “Há coisas que só acontecem ao Botafogo”. E outras frases, do tipo “Quem não faz, leva”, esse tipo de coisa, o que você acha disso?
Eu acho que toda atividade tem chavões. Os seus chavões particulares. Eu evito repetir. O Nelson Rodrigues, que foi um brilhante cronista esportivo, quando queria dizer uma besteira dessas, ele se socorria de um personagem que ele inventou.
O Gravatinha, o Sobrenatural de Almeida?
Não, era uma vizinha gorda e patusca. Né? E eu, quando quero usar uma besteira dessas, eu digo: “Como diria a vizinha gorda e patusca do Nelson Rodrigues, quem não faz, leva”. (risos)
É, porque são frases que não… Elas não são verdadeiras, né? Nem sempre acontece.
Não…
E no entanto elas se mantêm…
Porque é fácil, é um chavão, e o segredo do chavão é esse. Porque qualquer frase, por mais sábia que ela seja, ela é discutível. “A união faz a força.” Nem sempre. A união faz a confusão também. Depende. É uma… Enfim… O Nelson Rodrigues, aliás, pra citar o mesmo autor, dizia: “Toda unanimidade é burra”, o que se contrapõe um pouco à ideia de que a união faz a força. Eu acho que não, a gente pode discutir. Eu não me louvo nessas frases e acho que ninguém deve se louvar pra passar o seu pensamento. Isso não. Ela pode ser citada como um enfeite, né, um toquezinho ali, um toquezinho aqui, mas sem se segurar nela como se ela fosse uma coisa importante.
Você acha que a imprensa esportiva cria ídolos?
(Silêncio) Eu me lembro uma vez, eu estava num restaurante, com o Nelson Rodrigues e outros, e o garçom falou assim: “Vocês… Esse Pelé foi inventado pela imprensa! Isso é coisa de imprensa! Ele é um jogador igual aos outros! Todo jogador é igual!” E o Nelson Rodrigues falou assim: “Ah, quer dizer que você acha que o Napoleão Bonaparte e o general Eurico Dutra são a mesma coisa porque os dois são generais?” Eu acho que pode ser que a imprensa de vez em quando force a barra de algum deles, mas eu não me lembro de um erro grave. Eu acho que nessa tendência da imprensa de criar ídolos está uma representatividade da opinião pública. Acho que É assim. Esse é um desejo da opinião pública, quer dizer, a opinião pública também acha que aquele cara caminha pra ser um ídolo, etc. Acho que às vezes a imprensa demora a descobrir o cara. Um cara que… tá na cara que o cara é bom, mas a imprensa… A não ser um troço escandaloso: Pelé… Garrincha… Zico… Tostão… Não adianta, tá na cara que vai ser ídolo, um jogador excepcional.
Mas você não acha que às vezes surge um jogador jovem, e o cara faz duas ou três boas partidas, e aí tem logo um que diz “Esse é craque!”.
Tem UM que diz, tem UM que diz… Acho que não é um consenso. Eu já quebrei a cara achando que o sujeito ia ser craque e não foi. Eu me lembro que escrevi uma crônica no Globo sobre o Pingo, do Campo Grande. “Eu não tenho a menor dúvida de que vai ser craque.” Eu vi dois jogos dele e fiquei impressionado com o cara. Não, não foi, quebrei a cara e tal. Mas em compensação, o Geovani, desde os primeiros chutes no Vasco, eu vi que é craque. E esse demorou pra reconhecerem. Muito. Até hoje ainda tem gente… Eu acho um jogador genial.
Você, quando escreve uma crônica no jornal… No jornal nem tanto, porque O Dia tem um público mais ou menos dirigido, mas quando você tá falando na televisão, aí sim fala pra um público diversificado. Na hora da linguagem a ser utilizada, como é que você…
A minha. É a minha. Não mudo, é a minha de sempre. A minha linguagem é o que eu uso no Dia, na televisão, na Câmara de Vereadores, onde eu estiver. É essa linguagem.
Mas você tem a preocupação de fazer uma linguagem, vamos dizer, democrática, pra que todo mundo entenda?
Não, eu SOU democrático, eu sou democrático.
Ou é o seu próprio jeito de ser que já?...
Eu sou como eu sou, eu falo como eu sou em qualquer lugar que eu estou. Eu não tenho nenhuma preocupação especial de falar as coisas.
Voltando um pouco à questão da isenção, na hora da seleção brasileira numa Copa do Mundo, é fácil ser isento? Ou é mais difícil?
Olha, há um momento em que a isenção é difícil. Você fica torcendo pra que o jogador do seu time seja convocado e seja escalado. Mas há um outro momento que fala mais alto, e aí a paixão clubística cede terreno ao chamado patriotismo, né? A pessoa acaba ficando mais brasileiro do que vascaíno, rubro-negro ou lá o que for.
E aí? Dá pra…
Ah, dá, tranquilo, tranquilo. Eu agora, por exemplo, do Vasco, eu não tenho a menor dúvida de que o Geovani tem que entrar, seja qual for o time. Acho que Mazinho pode brigar ali com o Branco. Acho que dá pra brigar. E acho que Bismarck, a médio prazo, vai dar um jogador excepcional. A médio prazo. Ainda não. Tá chegando lá. É um menino de 19 anos. Mas vai chegar, sem dúvida que vai. Na Copa de 94, eu tenho a impressão que ele vai ser o melhor jogador do mundo.