Fatos que merecem um livro, uma série ou um documentário
Por Elso Venâncio
Na Copa de 1998, na França, Ronaldo Luís Nazário de Lima era o maior jogador do planeta. Aliás, melhor do mundo por dois anos consecutivos: 1997 e 1998.
Aos 21 anos, no auge da forma e da fama, o mundo se prepara para vê-lo em ação na sua primeira decisão de Mundial, no Stade de França. Inclusive, ele já tinha sido eleito pela Fifa o craque do Mundial, mesmo antes da grande final.
Há poucas horas do jogo, realizado no dia 12 de julho, porém, o atacante sofreu uma convulsão. Quase morreu.
Ele estava no quarto 290 do Chateau de Grande Romaine, em Lesingny, que acabaria virando atração turística. Foi socorrido pelo lateral-esquerdo Roberto Carlos, que dormia na cama ao lado, além de Edmundo e César Sampaio, que repousavam no 291 e foram chamados às pressas. Edmundo lembra:
“Desenrolaram a língua dele, deram um banho e o colocaram pra dormir.”
Na hora do lanche, Ronaldo aparece caminhando lentamente, meio abobado, meio sonolento. Toma um suco de laranja e come um bolo, sem sequer parecer se lembrar do que lhe houvera ocorrido. Ao falar ao celular, todos observaram o garoto, que há um ano tinha recebido o apelido de Fenômeno, durante sua experiência vitoriosa na Internazionale de Milão. O meia Leonardo, momentos depois, chamou Ronaldo e, caminhando pelos jardins do hotel, com habilidade, comunicou ao jovem a gravidade do acontecimento. Em seguida, o maior enigma da história das Copas.
Na porta do Chateau ficavam sempre mais de mil jornalistas – brasileiros e estrangeiros – acompanhando a seleção de futebol mais poderosa do mundo. Dentro do hotel havia um estúdio exclusivo da TV Globo. A qualquer sinal de saída de alguém, os jornalistas se movimentavam em busca de notícias.
Aí o grande mistério…
Já vetado do jogão, Ronaldo deixou o hotel com o médico Joaquim da Marta, mas ninguém o viu sair. O careca mais famoso do futebol, que se preparava para confirmar ao planeta todo o seu gigantesco talento, foi levado a um hospital de Paris sem que ninguém o reconhecesse.
Ninguém noticiou esse fato. Algo, para mim, surreal.
A Globo acompanhou a saída da seleção e o helicóptero da emissora seguiu o ônibus até a chegada ao estádio. Eu costumava ligar para alguém da delegação quando ela ia para os jogos, para checar se estava tudo bem. Nesse dia liguei para o Junior Baiano:
“Não posso falar” – ele desligou, repentinamente.
Achei estranho, mas não desconfiei de nada. Foi a única vez na história que não houve batuque no ônibus. Ninguém puxou o samba. Silêncio geral.
No estádio, Tino Marcos registrou ao vivo:
“Desce Bebeto, Dunga, Rivaldo, Edmundo, Roberto Carlos… Zagallo conversa com Lídio Toledo…”
E o Ronaldo? Como não sentir a ausência dele? Inexplicável.
Considero esse fato o maior erro, a maior gafe da imprensa brasileira e mundial. E me incluo nessa. Estava ao lado do Eraldo Leite, da Rádio Globo, na cobertura da seleção e entrevistamos um alegre e descontraído Fenômeno na véspera, após o treino. Lembro que o Mario Magalhães “Mariguella” apontou para um churrasco que a comissão técnica fazia ao lado do campo:
“O poderoso Américo Faria virou churrasqueiro!”
Tudo indicava uma vitória e o título de pentacampeão. Clima leve, descontração.
No dia da decisão, antes de seguirmos para Paris – a 35 km de Lesigny –, passamos na concentração e nada vimos de anormal. Engano nosso. A escalação oficial saiu a uma hora da decisão e de imediato liguei para o Gilmar Rinaldi, que passava pela pista de atletismo. Perguntei, aos gritos:
“E o Ronaldo?”
“Ele joga!”,garantiu, seco, dando fim à conversa.
Na verdade, Gilmar estava a caminho de Ricardo Teixeira, o presidente da CBF, para lhe comunicar a confusão ocorrida recentemente no vestiário.
Ronaldo chegara do hospital poucos minutos antes da seleção entrar em campo. Na verdade, quando os jogadores iniciavam o aquecimento. Foi direto vestir o material de jogo, já que os roupeiros chegam cedo e não sabiam de nada. O capitão Dunga bateu pé dizendo que Edmundo jogaria. Zagallo, inclusive, mudara a tática, não contava mais com o titularíssimo camisa 9. Ronaldo retrucou. Declarou que os exames nada apontavam de grave:
“Vou jogar!”
Reunião no vestiário. Ricardo Teixeira, Zico, Zagallo e Lídio Toledo presentes. Pesou a opinião do presidente:
“Se ele tá bem, por que não jogar?”
Em campo, desde o apito inicial assistimos a um Ronaldo pálido, apático, e a seleção visivelmente preocupada com o estado emocional e físico do ídolo, que absorvia aquele baixo astral. Pior, no comecinho da partida veio um choque brusco dele com o goleiro Barthez, numa disputa na área. Aquela trombada assustou nosso time inteiro.
Zidane, que ainda não havia marcado gols na Copa, fez logo dois, e de cabeça, fato raríssimo em sua carreira. O craque francês organizava o jogo, armava, mas não era muito de concluir. No final, França 3 a 0. Os donos da casa eram os novos campeões do mundo!
Boatos absurdos surgem após a derrota acachapante. Alguns garantem que o Brasil entregou a decisão em troca de dinheiro. Que a seleção deu a Copa de bandeja para poder sediar o Mundial de 2014. Para uns, a Nike impôs a escalação de seu garoto-propaganda, que não tinha a menor condição de jogar.
O futebol é o esporte que mais movimenta dinheiro no mundo. As receitas globais, segundo a empresa Sports Value, são superiores a 300 bilhões de dólares. A Copa é uma mina de ouro, por isso a FIFA sonha em realizá-la a cada dois anos.
Na coletiva de imprensa, um transtornado Zagallo chega assustado, rosto todo vermelho, e apontou para o companheiro Mauro Leão, do jornal O Dia:
“Tá satisfeito?”
Mauro balança a cabeça negativamente e responde.
“Eu não, alegre tá o Aime Jacquet…”
Jacquet era o treinador da França.
De repente, ninguém fala nada. Parecia um velório. Zagallo respira fundo e ninguém o questiona. O técnico, em seguida, encara uma surpresa imprensa cujo teor único dos questionamentos era o drama vivido por e com Ronaldo às vésperas do grande jogo da sua vida até então.
Esses fatos, o dia em que o “melhor do mundo” passou mal e isso influiu diretamente na derrota brasileira em uma final de Copa, merece um livro, talvez um documentário ou mesmo uma minissérie. Espero que não morra assim, sem maiores apurações, do nada, algo que mudou do dia para a noite a história da última Copa do penúltimo milênio.